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Chapter 01 - Vol 1: A Deusa e a Invocação

 Capítulo 1:

A Deusa e a Invocação

—VOCÊ TÁ QUERENDO ME DIZER QUE A GENTE TÁ EM OUTRO MUNDO?! MAS QUE PORRA É ESSA?!

A voz de Oyamada ecoou pela sala esculpida em pedra, ampla o suficiente pra comportar toda a turma do 2º C.

Quando abri os olhos, me vi ali — junto com a classe inteira — num lugar que parecia decorado com antiguidades... ou talvez adereços de algum filme de fantasia medieval. Os nichos nas paredes sustentavam lâmpadas que lançavam um brilho morno pela sala de pedra.

— Todos vocês foram escolhidos! — ressoou uma voz.

— Hã?! Você vai me dizer o que tá acontecendo, agora! — exigiu Oyamada, praticamente espumando de raiva.

Diante dele estava uma mulher usando uma tiara, completamente impassível diante da explosão dele.

Definitivamente, ela tem coragem.

A pele dela era suave, os cabelos, de um cinza claro. E os olhos... eram dourados? Lentes de contato, talvez? Mas o que mais chamava atenção mesmo eram as roupas — ou a falta delas. Ela usava algo como uma túnica curta, impecavelmente arrumada... mas que cobria quase nada. Parecia uma daquelas deusas ocidentais pintadas em quadros... ou talvez uma deusa desenhada por algum artista de anime.

— Claro, deixem-me explicar. Fui eu quem os convocou até aqui, afinal — disse ela. — Sou a Deusa Vicius.



Uma deusa…? Pera aí.

Alguns dos garotos começaram a cochichar nervosamente.

— Uou, isso aqui é tipo um daqueles isekais, né?

— Totalmente!

— Ah, para. É um sonho, cara.

— Então como é que tá todo mundo sonhando a mesma coisa?

— Tá real demais pra ser só sonho.

Então... é aquele clichê em que a classe inteira é invocada, né?

— Por que não me trouxeram sozinho?!

— Aff, nem fala...

— É, ela nem escolheu a dedo... só puxou o ônibus inteiro. Que droga.

Eu já tinha ouvido falar de livros e animes assim — histórias isekai, em que pessoas comuns são transportadas ou até mesmo renascem em mundos de fantasia.

Pelo menos a gente não virou bebê nessa.

Algumas garotas estavam em pânico.

— Onde diabos a gente tá?! Não tô entendendo nada!

— A gente tava no ônibus, né?

— A gente morreu?! Eu sou um fantasma agora, é isso?!

— Tá, beleza, me pegou! Onde tá a câmera escondida?

— Hã?! Meu celular, tipo, não liga mais!

— Cadê minhas coisas? Vocês acham mesmo que eu vou sobreviver sem minha maquiagem e minhas roupas?!

Acho melhor só entrar na onda por enquanto. Se for um sonho, uma hora eu acordo.

"…"

Levei a mão ao rosto e belisquei minha bochecha com força.

Ai!

Acho que não é um sonho... mas a parte boa disso tudo é que o timing foi perfeito pra mim. Parece que todo mundo já esqueceu o que rolou no ônibus.

Olhei em volta. Várias dezenas de homens vestidos como soldados de RPG cercavam a gente em círculo, armados com espadas e lanças.

Então não tem como resistir…

A turma inteira estava desarmada, obviamente. Mesmo com o físico do Kirihara, a força do Oyamada, as artes marciais da Sogou e as supostas habilidades de combate secretas das irmãs Takao, seria suicídio tentar enfrentar guardas armados. E não tinha a menor chance do nosso professor, Zakurogi, fazer algo — o único que a gente podia esperar que causasse alguma coisa era mesmo o Oyamada.

Zakurogi se levantou.

— Eu não sei o que está acontecendo aqui — proclamou, tentando usar uma voz de autoridade pra colocar ordem —, mas é evidente que devemos ouvir o que esta Deusa tem a dizer!

Mas toda a tentativa de liderança dele era arruinada pelo jeito descarado com que ele lançava olhares pro peito da Deusa — mesmo em outro mundo, Zakurogi continuava sendo o mesmo tarado de sempre.

— Obrigada, Sensei — disse a Deusa com um sorriso impecável. — Se todos estiverem prontos, permitam-me explicar.

E então ela começou a tecer uma história saída direto de um romance de fantasia. Aparentemente existia uma entidade maligna — chamada de “Rei Demônio”, ou algo assim — que tinha sido recentemente ressuscitada. Sempre que isso acontecia, o Reino de Alion realizava uma invocação de heróis do “outro mundo” para que se tornassem os “escolhidos” encarregados de derrotá-lo. A última invocação tinha sido há 200 anos, então essa história já tinha virado mais lenda do que realidade.

Essa capacidade de invocar heróis dava ao Reino de Alion um certo prestígio no continente — como ninguém sabia quando o Senhor do Mal poderia voltar, os outros países se mantinham do lado de Alion. E ainda mais respeitada que o próprio Reino era a Deusa Vicius, fonte desses heróis invocados. Nem mesmo o Rei de Alion podia tocar em um membro do Culto de Vicius.

Entre todos ali reunidos diante da Deusa, claro que Kirihara Takuto foi o primeiro a se pronunciar.

— Então você quer que a gente derrote esse tal Rei Demônio, é isso?

— Isso mesmo — respondeu a Deusa.

— Hunf. E se a gente não quiser?

— Então talvez nunca consigam voltar para casa.

— Tem como voltar?

— Tem, mas só se derrotarem o Rei Demônio.

— Por quê? — Kirihara perguntou, direto.

A Deusa fez sinal para um dos guardas, que lhe entregou um colar completamente negro.

— Para enviar vocês de volta, é necessário obter a Essência do Rei Demônio. Trata-se de um tipo muito especial de poder mágico. — Ela ergueu dois dedos. — Conhecemos apenas duas formas de conseguir isso. A primeira é diretamente da fonte — o coração do próprio Rei Demônio. A segunda é derrotando-o e reunindo a essência em forma cristalizada no momento da morte dele, usando este colar. Sem essa essência, em qualquer uma dessas formas, não posso realizar o ritual para mandá-los de volta ao mundo de origem.

— Eu tô cagando pro seu reino idiota e esse tal de Rei Demônio! Ele nunca me fez nada! Tô fora! — gritou Oyamada, claramente nada convencido com a explicação.

A Deusa se ajoelhou diante dele, ficando de joelhos no chão.

— Heróis, eu imploro humildemente. Por favor, salvem este mundo — suplicou ela.

— H-heróis? E-eu sou um herói também? — Oyamada pareceu surpreso. Talvez fosse porque estava acostumado a ser tratado como um moleque problemático por qualquer autoridade... ou talvez porque era bom demais ser chamado de herói por uma Deusa linda — de qualquer forma, ele se acalmou na hora.

— Vocês são nossos salvadores — cada um de vocês — declarou ela.

— C-com licença... — Sogou levantou a mão ao falar. — Posso fazer uma pergunta?

— Claro, à vontade.

— E-er... meu nome é Sogou Ayaka — disse ela, fazendo uma leve reverência.

— Oh! Que educação exemplar, Sogou-san.

— N-nem tanto...

— Por favor, continue. O que deseja perguntar?

— É-É que, como pode ver, somos todos pessoas normais. Duvido muito que alguém aqui tenha experiência de combate…

É… mesmo as habilidades da Sogou em artes marciais não devem servir de muita coisa numa luta real até a morte…

— Então... bem... a senhora continua nos chamando de heróis e salvadores, mas... sinceramente, não sei se vamos conseguir ajudar em alguma coisa.

— Isso não será um problema — respondeu a Deusa, com uma confiança inabalável. — Todos vocês possuem poderes especiais. Habilidades que nenhum outro humano possui.

— Mas... — Sogou gaguejou, — nós não temos. Eu não entendo...

— Claro que vocês não acreditam que possuem poderes — continuou ela no mesmo tom calmo. — Até porque... vocês não tinham. Não até serem invocados para este mundo.

Eu não sei bem como descrever isso, mas… parece que ela sabe exatamente o que a Sogou vai dizer antes mesmo dela abrir a boca. Ela disse que já convocou heróis pra salvar o mundo antes, né? Será que todos reagem assim no começo? Talvez ela já esteja acostumada a responder exatamente essas perguntas do mesmo jeito — até com as mesmas palavras.

— Eu não aguento mais!! — gritou Oyamada. — Não tem como isso aqui ser outro mundo de verdade. Vocês tão filmando a gente agora, né?! Isso não tem graça! Quem escreve essas merdas? Eu vou matar esse cara!

— Tragam-no. — Ignorando o surto do Oyamada, a Deusa fez um gesto para os guardas de novo.

Depois de um tempo, um homem em frangalhos foi escoltado até a sala. As mãos dele estavam presas por correntes, e ele parecia inquieto, cercado por guardas que o empurravam com as pontas das lanças.

— Q-que que é aquilo? — perguntou uma das garotas, apontando com as mãos trêmulas pro outro lado da sala.

Aquilo não era uma pessoa.

Era um lobo de três olhos.

Pelo menos, eu acho que era um lobo…

A criatura era enorme, com três olhos dourados brilhando e pelagem vermelha como vinho. Usava uma coleira grosseira presa a uma corrente pesada, segurada com força por um guarda musculoso.

— Esse tipo de besta não existe no seu mundo, existe? — perguntou a Deusa.

— C-com certeza vocês só pintaram um lobo! Vai se foder, isso é uma fantasia ou sei lá! Morre logo! — Oyamada já tinha decidido o que pensar.

A Deusa fez outro sinal.

— Grrr… Grrrawrrr!!

O homem em frangalhos recuou ao perceber o que estava prestes a acontecer.

— Não!! P-paaa—!

O lobo de três olhos saltou para o ataque, as garras rasgando sua presa.

— Aaaaaah—!!

Uma das garotas gritou, e o som agudo ecoou pela câmara de pedra.

— Urraaagh! Guuh! Aaah—

Os gritos do homem cessaram de repente, e ele ficou imóvel. O lobo começou a devorar o cadáver, rasgando a carne com os dentes.

Um dos garotos vomitou.

Mas o que aconteceu em seguida acabou com qualquer dúvida que a gente ainda tinha.

A Deusa estendeu o braço na direção do lobo e começou a falar.

— Ó fogo sagrado exorcizante, em nome da Deusa Vicius cumpra teu dever e purifique este monstro!

Um círculo brilhante se formou no ar diante da mão estendida dela.

— Fireball!

Num instante, o lobo foi engolido por chamas brancas. Lutou, se contorceu tentando escapar, mas logo foi consumido pelo fogo e virou cinzas. O cheiro de carne queimada encheu a sala.

Os garotos, que tinham se juntado num canto, começaram a cochichar entre si.

— A-aquilo foi magia de verdade, né?

— Quer dizer feitiçaria?

— Q-qual a diferença…?

— Então ela tava falando a verdade sobre o lance de "outro mundo", huh…

— Ela mostrou a prova rapidinho, meu Deus…

— Foi incrível! Ainda tô em choque…

— Meio empolgante, até…!

Era estranho — eles não pareciam tão perturbados assim. Tavam agindo como se isso fosse só uma forma emocionante de sair da rotina chata do dia a dia.

Por outro lado, algumas das garotas tinham começado a chorar. Outras desabaram no chão de medo. A maioria só estava em choque.

— Q-que foi isso…?

— Deve ser CG. Ou truque de luz, sei lá. Né?

— Urgh… esse cheiro de carne queimada… Tô passando mal.

— Não…!

— E-eu não aguento mais! Quero ir pra casa…

Até o Kirihara parecia surpreso. Não com medo, claro, mas genuinamente impressionado com o que acabou de ver. Oyamada só parecia irritado, mas dessa vez com ele mesmo. Ele tava se agarrando à ideia de que tudo isso era falso, mas agora tinha sido provado o contrário, sem sombra de dúvida. Ser forçado a aceitar essa realidade o deixava furioso.

Sogou suava frio, claramente abalada, mas tentando esconder isso com todas as forças. Estava consolando uma das garotas que chorava, dizendo palavras calmas, tentando tranquilizar. Provavelmente achava que precisava ser forte como representante da turma.

Mesmo numa hora dessas… a Sogou é durona.

A irmã mais velha da Takao começou a conversar com a gêmea.

— Entendo… então este é mesmo um mundo completamente diferente do nosso. Talvez, por agora, seja mais fácil pensar nisso como se estivéssemos em outro planeta. Partindo desse princípio, precisamos considerar o melhor curso de ação, Itsuki.

— Você tá tão calma numa situação dessas… você é incrível, Aneki — respondeu Itsuki.

— Encare isso como parte do seu treinamento mental. Em vez de desperdiçar tempo com pessimismo e pânico, tentando negar a realidade que tá bem diante dos nossos olhos, devemos aceitar a situação e analisar as regras do novo ambiente pra garantir nossa segurança. Não podemos deixar que nossas emoções atrapalhem o raciocínio lógico nem que a sensibilidade excessiva nos torne lentos. Agora, devemos carregar apenas as emoções absolutamente indispensáveis.

— E-eu nunca vou conseguir te alcançar, Aneki… Você é de outro nível…

— Continue treinando com afinco, Itsuki. Você vai conseguir.

— Tudo bem… vou dar o meu melhor, Aneki.

Elas tavam calmas demais… tipo, num nível absurdo. Mas pensando bem, acho que elas já pareciam de outro planeta desde o começo.

Yasu parecia confuso, mas olhando melhor… havia um leve sorriso se formando nos lábios dele.

Isso é estranho…

A expressão do Zakurogi era mais fácil de entender — o queixo dele tava caído como aquela estátua da "Boca da Verdade" que a galera enfia a mão.

— E-então vamos fazer o que a Deusa mandou! A gente não vai sair do lugar se não confiar nela, então vamos assumir que tudo o que ela disse é verdade! — Zakurogi balbuciou, ainda tremendo de medo por causa da combustão espontânea que acabou de presenciar. Se tivesse uma bandeira branca por perto, ele com certeza já estaria abanando feito louco.

O corpo do homem e as cinzas que restaram do lobo foram varridos e levados pra algum lugar. A gente foi conduzido até um pedestal na altura da cintura, com um cristal em cima, e mandaram que colocássemos a mão nele, um por um — parecia ser algum tipo de teste.

Até os nossos piores encrenqueiros agora estavam obedecendo quietinhos. Quando a Deusa se preparou para nos chamar pelo número da chamada, alguns assistentes encapuzados se aproximaram para ajudá-la. Essa Deusa tinha esfregado na nossa cara o quão perigosa era a situação em que nos metemos — eu, pelo menos, não fazia a menor questão de desafiá-la, e só podia imaginar que o resto da turma pensava igual.

Fico imaginando o que ela faria se eu tentasse alguma coisa... Talvez me lançasse aquela magia de fogo... ela parece ser do tipo que consegue o que quer de qualquer jeito, e claramente tem poder pra isso.

Primeiro da fila, Amakawa colocou as mãos sobre o cristal. Depois de um momento, ele brilhou com uma luz azul, e um burburinho se espalhou pela galeria. A Deusa sorriu e juntou as mãos com elegância.

— Você tem potencial — disse ela.

Os outros-mundanos encapuzados que rodeavam a Deusa se esforçavam para nos examinar, os olhos brilhando sob a luz do cristal enquanto cada um dos nossos colegas passava por sua vez. Os testes continuaram mais ou menos do mesmo jeito, até chegar em Oyamada.

Quando ele tocou o cristal, ele brilhou com uma luz vermelha ofuscante — a mais intensa até então.

O que será que significam essas cores?

— Que luz forte! — exclamaram os encapuzados, em tom de reverência.

— Oh! — disse a Deusa, animadíssima. — Isso é simplesmente maravilhoso!

— Não entendi direito, mas... acho que mandei bem no teste, né? Tô começando a curtir essa história de outro mundo! Oyamada tá com tudo por aqui! Acho que vou ter que ser herói por todos vocês!

Ai, céus... “com tudo”? Continua sendo um mala, como sempre... mas também não dá pra culpar o cara. Aquela pedra brilhante basicamente disse que ele é o melhor. Quem não ficaria feliz ouvindo isso?

Oyamada reinou por uns trinta minutos, no máximo. Aí foi a vez do Kirihara colocar as mãos no cristal.

— I-impossível! I-isso não pode ser...! C-como...?!

Um clarão dourado iluminou o salão — os encapuzados deram um pulo pra trás, assustados.

Ka-crack!

O cristal se despedaçou e caiu no chão em mil pedaços.

— P-pensar que alguém poderia quebrar o cristal de medição! — exclamou um dos encapuzados, limpando o suor da testa com empolgação.

— Tanto faz. Isso quer dizer que foi bom, né? Não tô surpreso — respondeu Kirihara, sem emoção.

A Deusa abriu um sorriso largo e bateu palmas com entusiasmo.

— Isso é maravilhoso, Kirihara-san! Você é da Classe S, a classificação mais alta possível!

Classe S? Parece importante.

— Achei que esse era outro mundo — vocês ainda usam nota com letra por aqui? — perguntou Kirihara, desconfiado.

— Usei termos com os quais estão familiarizados, para facilitar o entendimento — explicou ela.

— Hmm. E por que o S é o mais alto?

— O "S" vem de "special", é claro.

Kirihara coçou a cabeça.

— Hunh. Certo... mas também não fiz nada de especial. Só encostei no cristal, igual todo mundo.

O fã-clube do Kirihara olhava pra ele com ainda mais admiração.

— Ele é demais! Sabia que ia tirar a melhor nota!

— Takuto-kun continua sendo especial até em outro mundo~! ♪

— Ele é maravilhoso!

— Me protege, Takuto-kun!

Kirihara soltou um suspiro irritado.

— Quebrar um cristal não me faz especial... foi só um negócio que aconteceu, né?

Oyamada se aproximou da Deusa, ansioso.

— E-eu sou de que classe, então?! Eu sou incrível, né?!

— Você é Classe A, Oyamada-san.

— E o que vem depois do A?!

— Seria a Classe S.

— A um passo do topo... — disse ele, rangendo os dentes. — Tsc... Sabia que eu não ia conseguir bater o Takuto...

A Deusa fez sinal para trazerem outro cristal, enquanto os cacos do antigo eram retirados.

As medições continuaram.

— I-isso é impossível...! Isso é—!

Mais uma onda de espanto percorreu os encapuzados quando Sogou Ayaka foi chamada. Sua luz brilhou em um tom prateado intenso e então...

BOOM!

O orbe explodiu em pó, lançando uma nuvem fina em todas as direções.

— Cof, cof—O-o cristal... de novo?! Nunca vi uma reação assim, Deusa! — engasgou um dos encapuzados.

A Deusa voltou a sorrir, abanando o pó do rosto com graça.

— Dois heróis Classe S no mesmo grupo... isso é realmente extraordinário.

Então Sogou e Kirihara têm o mesmo nível de poder... Eles são mesmo os protagonistas da turma do 2-C.

Com outro cristal substituto, os testes voltaram a acontecer. As próximas surpresas foram as irmãs Takao — embora, pensando bem, nem foi tão surpreendente assim. A luz de Itsuki brilhou em amarelo, bem mais forte que a de todos os anteriores. Dava pra ver a empolgação crescendo nos olhos da Deusa.

— Mais uma Classe A — isso faz duas! Incrível, de verdade! Dois heróis Classe S e dois Classe A... esse grupo já tem o maior potencial que já vi!

Depois, Takao Hijiri colocou as mãos no cristal, espalhando uma luz branca que iluminou toda a sala por alguns segundos antes de se apagar.

— I-isso é inacreditável... — disse a Deusa, olhos arregalados, tremendo de empolgação como gelatina em terremoto. — T-três heróis Classe S...! Normalmente, é sorte ter um! Esses são os melhores resultados que já vi! — Com lágrimas nos olhos, ela abriu os braços em êxtase, estufando o peito generoso com orgulho.

Acho que ela gosta de exagerar um pouco.

— Muito bem, prossigamos! O próximo, por favor! — anunciou ela com mais um gesto grandioso.

Depois das irmãs Takao, os resultados voltaram a ser medianos por um tempo, e a reação do público foi bem menos animada.

Até que chegou a minha vez — Mimori Touka.

Fiquei diante do cristal, nervoso, sentindo que estava sendo analisado e julgado. Encostei as mãos na superfície do orbe.

Engoli em seco.

Sob minhas mãos, uma luz fraca começou a surgir dentro do cristal. Era suave — fraca, até. De cor roxa.

Dourado, prateado, preto, branco... eram cores que eu sempre associei a algo especial.

Roxo, hein...

Até agora, fui o único com resultado roxo.

O que isso significa…? Essa é a luz mais fraca que alguém teve até agora, não é?

—Próximo! Coloque as mãos sobre o cristal!

A Deusa nem sequer reagiu — simplesmente seguiu em frente, me ignorando completamente. Foi a primeira vez que isso aconteceu também.

Nem um comentário? Sério?

—Com licença, mas… minha classe é—

—Próximo~!

Ignorado. De novo. É como se eu nem estivesse aqui.

Voltei lentamente para o meu lugar.

Um figurante. Até nesse mundo, é só isso que eu sou, hein?

Mas essa é a realidade. Não é como se ser invocado para outro mundo fosse tornar alguém como eu especial. Isso sou eu.

Eu sou Mimori Touka. Isso deveria bastar. Mas sempre existe uma hierarquia, em todo tempo e lugar. Ela está sempre lá, e você nunca pode escapar.

Depois do meu teste, vieram mais alguns resultados medianos — todos aparentemente melhores que o meu, pelo menos. A Deusa continuava comentando animadamente cada medição, mesmo que acabasse repetindo “Oh, que esplêndido!” várias vezes.

Por fim, o último estudante deu um passo à frente para ser avaliado.

—Parece que encontramos todos os mais promissores na primeira metade — disse ela, levando a mão à bochecha. — Mas três heróis Classe S e dois Classe A…? Simplesmente maravilhoso. Não posso esperar mais que isso — seria ganância!

O último estudante era Yasu Tomohiro. Ele colocou a mão trêmula sobre o cristal, respirou fundo e engoliu seco. Observando-o, porém, dava para perceber uma confiança silenciosa por trás da ansiedade. Era como se Yasu soubesse que seu destino estava nas mãos do orbe, e aceitar isso dava a ele uma certa calma.

As figuras encapuzadas recuaram em choque.

—I-isso não pode ser!

O orbe foi engolido por uma escuridão absoluta, soltando fumaça negra que subia até as vigas do teto.

—Deusa! E-ele pode ser…

—Parece que sim. Faz muito tempo desde que vi o cristal reagir assim… não acontecia desde que o Herói das Trevas causou aquele alvoroço anos atrás.

A boca de Yasu se curvou em um sorriso, que logo se tornou um sorriso arrogante. Então, ele soltou uma risada.

—Eu sabia… Já estava na hora — disse Yasu. Uma mudança repentina tomou conta dele — em um instante, o Yasu nervoso que eu conhecia desapareceu. Com ousadia, ele se virou para a Deusa.

—Diga minha classificação, Deusa!

—Você é um herói Classe A — ela respondeu.

—Hmph. Mesmo que o Oyamada. Achei que essa fumaça sinistra me colocaria pelo menos em S, mas tudo bem…

Oyamada se endireitou, indignado, e se virou para Yasu.

—Como é que é, Yasu?! Quer tentar de novo, mas com um pouco de respeito dessa vez? Só porque teve um resultado razoável já tá se achando?!

Por um momento, Yasu recuou — talvez por hábito. Mas logo se recuperou e voltou a sorrir com desafio.

—Estamos no mesmo nível, você e eu.

—O quê?!

Agora era a vez de Yasu. Ele estufou o peito e se aproximou de Oyamada.

—Somos ambos heróis Classe A, né? Iguais. Então por que não nos damos bem? — Ele sorriu com deboche, a voz cheia de provocação. — Que tal, Oyamada~?

—Você acha que é melhor que eu?! Vou te matar, Yasu! Eu vou—!

Num instante, a Deusa apareceu entre eles, círculos mágicos surgindo em suas mãos de novo.

É quase como se ela estivesse apontando uma arma para eles…

—Vocês dois são ótimos heróis Classe A, então me poupem da rivalidade. Permitirei pequenos desentendimentos, mas de forma alguma aceitarei que heróis lutem entre si. Está claro?

A Deusa sorriu.

—Todos os nossos heróis Classe A são recursos valiosos para mim, afinal.

Oyamada congelou. Yasu deu um passo para trás. Me arrepiei só de ver a cena.

Ela ia mesmo matar os dois?

Eu sei que ela me intimida, mas é mais do que isso… Deve ser assim que é encarar um predador. Estou paralisado. Nem vontade de correr eu tenho.

—Então está resolvido, não é? Agora, deixem-me mostrar como usar seus poderes.

***

—Status Open!

Aquelas palavras ecoaram por todos os lados, sobrepondo-se e se misturando no ar.

Dizer essa frase fazia padrões surgirem na palma da mão, e uma tela holográfica aparecia sobre ela.

—Saquei! É assim que a gente confere as habilidades, né? Igualzinho a um jogo!

—Lá vem o clichê de stats de isekai!

—Que troço é esse? É a árvore de habilidades?

—Mas nada disso parece real, né? Tipo, combina direitinho com um VRMMO!

Os garotos conversavam animadamente enquanto mexiam nas novas telas.

—Ei, nerds — a gente não manja muito de jogos, então é bom ensinarem a gente, beleza?

—Funciona meio como um celular… A gente consegue lidar com isso, né?

—Parece total um jogo de rede social, né? Será que os bônus de login dos meus jogos de casa valem aqui também?

—Pelo menos não tem atributo de beleza ou algo assim!

—O que é uma habilidade?

—São tipo golpes especiais, acho?

—Uau, tipo um golpe que mata de uma vez? Isso é insano!

—Ah, entendi! Tira o “S” e sobra “K-I-L-L”! Que medo!

Alguns minutos atrás, essas mesmas garotas estavam chorando por causa do incidente com os lobos. Algumas até vomitaram.

Já estão de pé de novo, é? Isso foi rápido.

—Eu criei um sistema de status eficiente que deve ser fácil para vocês se adaptarem. Como Deusa, posso facilmente fazer esse tipo de alteração para atender às suas necessidades e traduzir suas novas habilidades para algo que compreendam.

Isso explicava por que tudo parecia tanto com um videogame — todo mundo na classe tinha pelo menos alguma familiaridade com esse tipo de coisa. A tela de status até tinha um visual de menu de celular.

Dá pra se acostumar com isso. Acho que uma Deusa pode basicamente tudo.

—I-isso é… Dragonic Buster?! — exclamou uma figura encapuzada, espiando por cima do ombro do Kirihara, espantado. — Incrível! Kirihara-dono já consegue usar uma de suas habilidades! E esses status… isso realmente é uma habilidade de nível 1?!

—Então, é tipo… tão dizendo que eu sou bom? — respondeu Kirihara.

—Heróis que conseguem usar suas habilidades logo no nível 1 são raros—consigo me lembrar de pouquíssimos em invocações passadas!

—Hmm. Parece que não é lá grande coisa, pra falar a verdade.

O grupinho de garotas se virou para ele novamente, com olhares de adoração e desejo.

—O Takuto é incrível demais...

—Até a personalidade dele é perfeita! Ah, Kirihara-kun...!

—Ele é tão humilde!

—Mesmo em outro mundo, dá pra contar com ele!

—Quero ficar com você! Casa comigo!

O próximo alvoroço entre os encapuzados veio de perto da Sogou.

—A-Árvore de habilidades da Sogou-dono! Nunca vi só um único ramo assim! Isso é uma Árvore de Especialista!

—Especialista...? —respondeu Sogou.

Ela claramente não entendia muito de jogos—tava penando até com o vocabulário básico.

Bom, não que eu soubesse o que é uma Árvore de Especialista também. Mas soa impressionante.

—Oyamada-dono e Yasu-dono também são verdadeiros heróis de Classe A! Seus status estão muito acima da média, mesmo no nível 1! E Oyamada-dono tem +500 de Vitalidade! —disse a Deusa, emendando direto numa explicação sobre os atributos.

Aparentemente, os status exibidos não eram tudo que definia o quão forte a gente era. Tínhamos atributos-base e modificadores de atributo, mas só os modificadores apareciam na nossa tela de status. O atributo-base vinha de antes da invocação—era tipo uma representação da nossa força no mundo original. Somando o modificador ao atributo-base, dava o valor atual daquele atributo.

Será que isso quer dizer que a gente poderia cair pra 0 de HP e ainda sobreviver por causa do atributo-base oculto? Hmm...

A explicação dos status levou a uma sessão de perguntas e respostas com a Deusa, e foi aí que a conversa mudou de vez. Ninguém mais tava interessado na invocação em si. Agora, todo mundo só pensava nos próprios status e em aprender mais sobre esse novo mundo.

Bom, pelo menos os mais fortes estavam se engajando. Outros já tinham perdido a vontade de continuar e se reuniam num canto da sala, meio apagados.

Desabando em desespero. Mergulhados na tristeza. Incapazes de aceitar a realidade.

Existiam várias maneiras de acabar naquele canto...

—Não consigo ver direito! —reclamou outro encapuzado. Olhei de relance e vi que ele rondava as irmãs Takao.

—Q-quê que tem com essas duas...? É como se... elas emanassem algum tipo de presença estranha...

—E são lindas também—quase tão lindas quanto a Sogou-dono! Arrisco dizer que podem ser tão celestiais quanto a renomada Seras Ashrain!

—Tomem cuidado pra não subestimá-las—elas são heroínas de Classe S e Classe A!

Parece que até o pessoal desse mundo se sentia incomodado com a aura única que as irmãs Takao carregavam. Os encapuzados tentavam espiar os status delas mantendo uma boa distância.

Até esses caras ficam desconcertados com as irmãs Takao, hein?

A irmã mais velha observava seus perseguidores com calma.

—Se isso pode nos dar um jeito de voltar pro nosso mundo, então aprender a usar esse sistema estranho de status a nosso favor deve ser nosso objetivo imediato, Itsuki. Assim que formos liberadas pra circular, reuniremos mais informações.

—Sou meio burrinha, então só vou te seguir, Aneki —respondeu Itsuki.

—Reconhecer a própria ignorância é o primeiro passo rumo à iluminação, Itsuki.

—Heh heh, não posso evitar... nasci com músculos no lugar do cérebro.

—Isso foi bem divertido, Itsuki.

—D-divertido...? Você é sempre tão séria, Aneki...

—Acho que sou uma pessoa séria, sim.

Será que elas ficaram minimamente abaladas com tudo isso...? Eu preciso aprender a ser mais como elas.


— Status aberto!

Vamos dar uma olhada... Meus status são...

— Hã?

***

Touka Mimori
Nível 1
HP: +3 MP: +33
Ataque: +3 Defesa: +3 Vitalidade: +3
Velocidade: +3 Inteligência: +3
Título: Herói de Classe E

***

Meus status estão... muito baixos.

Ela disse que o Oyamada tem +500 de vitalidade, né? Meu MP é o único que passa de três...

Herói de Classe E... se isso for em ordem alfabética, devo estar bem no fim da lista.

Meu coração afundou.

Eles ainda escreveram meu nome errado — é Touka, com "U". E esse tracinho estranho aí faz parecer que sou estrangeiro... talvez tenha a ver com a pronúncia desse mundo? Mas sério, nem como herói invocado em outro mundo conseguem acertar meu nome. Eu sou figurante até aqui.

Cadê a árvore de habilidades, afinal?

Fiquei encarando, como se algo fosse aparecer se eu olhasse por mais tempo.

— Não tem nada — suspirei.

Tentei deslizar pra baixo como todo mundo fez, mas nada apareceu — só um espaço vazio. Só tinha a raiz lá embaixo, um quadrado com o rótulo “Habilidades Únicas”. Todos os outros tinham um diagrama simples de ramos subindo, mostrando todas as suas habilidades, mas o meu era só um toco.

— Nem uma folhinha saindo daqui, hein.

— Oh, céus! — exclamou a Deusa.

— O quê?!

De repente percebi ela atrás de mim, espiando minha tela de status por cima do meu ombro.

— Licença, mas... tem algo de errado com meus status? — perguntei.

Nenhuma resposta. Ela simplesmente voltou para os outros e continuou respondendo às perguntas deles.

— Ignorado, hein?

“Adultos têm o direito de ignorar suas perguntas. Entendeu?”
Essas eram as palavras sábias do meu antigo professor, Takagawa-sensei. Acho que se aplicam aqui também.

— Até aqui, eu sou só um figurante.

E daí? Classe E parece ruim, mas ainda sou um herói, certo? Deve ter algum lugar pra mim aqui. Vou viver à margem nesse mundo também, como um NPC ou algo assim. Ficar na minha e me virar, como sempre fiz.

Sentei no chão de pernas cruzadas, pensando, e fiquei mexendo nos meus painéis de status.

— Ah, então é assim que funciona.

Se eu clicar aqui, aparecem minhas habilidades únicas, pelo visto.

— Vamos ver...


Habilidade Única: Aplicar Efeito de Status / Disponível para uso


Hã. O Kirihara ganha “Destruidor Dracônico” e eu fico com “Aplicar Efeito de Status”? A minha parece bem sem graça em comparação.

— Hmm? Minha árvore de habilidades... tá ao contrário?

Tentei deslizar pra cima.

— Opa, tá crescendo pro outro lado.

A árvore de todo mundo crescia pra cima, mas a minha era feita de umas linhas fracas pendendo abaixo da raiz — tão fracas que eu nem tinha notado antes. Mas apesar das linhas quase apagadas, as informações das habilidades estavam bem visíveis.


Paralisar: Nível 1
Sono: Nível 1
Veneno: Nível 1


Então eu tenho três dessas habilidades de “Aplicar Efeito de Status”...?

Eu jogava alguns RPGs e joguinhos de celular, então pelo menos os nomes são familiares.

A dúvida é se elas são boas ou não. Eu sou Classe E, então provavelmente são uma porcaria, né? Mas um daqueles caras de capuz não disse que usar habilidades no nível 1 era incrível? Beleza... você consegue... hora de perguntar pra Deusa o que tá rolando. Cadê ela?

Ela tava falando com alguém — não era um dos encapuzados, no entanto. Me escondi instintivamente atrás de uma coluna.

Argh, por que tô me escondendo desse jeito? Ser ignorado duas vezes mexeu comigo mais do que pensei. Preciso ser corajoso... respira fundo.

Certo, tô pronto.

Reuni toda minha coragem e determinação pra sair de trás da coluna e... nem consegui dar um passo na direção dela.

— Ouvi dizer que tem um Classe E no meio deles.

Tão falando de mim?

— O que devemos fazer, Vicius?

Ele tá usando o primeiro nome da Deusa...? Quem é esse cara?

— Não se preocupem. Até os heróis de Classe E têm um papel a cumprir — ela respondeu.


Dez minutos depois, não pude deixar de notar que o número de guardas tinha aumentado bastante. Pelo menos trinta a mais do que da última vez que contei... e os novos pareciam ainda mais durões que os anteriores.

A quantidade, e a expressão séria dos guardas novos, diziam tudo — eles definitivamente não iam deixar a gente escapar.

Ou talvez... não vão deixar eu, especificamente, escapar?

Os guardas claramente estavam me vigiando — vinham se aproximando de ambos os lados.

— Fiquem atentos — nenhum de vocês tente nada — disse um guarda à minha direita, segurando o cabo da espada. — Vocês podem ser heróis de outro mundo, mas recém-invocados desse jeito, não têm chance contra nós.

Então eles vão cortar a gente se fizermos besteira...

— Heróooooiis~! Por favor, sigam para a próxima sala! — ordenou a Deusa. A turma foi atrás dela quando ela se virou para nos guiar.

—P-pessoal... sigam o que a Deusa diz, tá...?

Zakurogi ainda tentava liderar a turma, mas dava pra ver que ninguém mais ligava pra ele. O teste de medição de cristal o classificou como Classe D — a Deusa tinha explicado que adultos acima dos 25 anos tinham mais chance de cair nas classes mais baixas, por isso preferiam invocar pessoas mais jovens.

A classificação baixa causou uma mudança em Zakurogi — toda aquela postura de liderança dele tinha sumido, e os alunos praticamente pararam de vê-lo como guia. Por que veriam? Ele estava abaixo deles nessa nova hierarquia, e não é como se tivesse conquistado a simpatia da turma com sua personalidade ou talento como professor lá na Terra. A Deusa facilmente assumiu o papel de nossa “professora”.

Fomos levados até uma sala com um grande círculo mágico desenhado no chão.

— O aluno cujo nome eu chamar, por favor, venha até o centro do círculo — anunciou a Deusa. — Ah, e depois que resolvermos esse último assunto, todos terão um tempo para relaxar!

Aquela última declaração foi recebida com sorrisos e um alívio palpável — sem dúvida, a cabeça de todo mundo devia estar girando desde que chegamos aqui. Finalmente, um descanso de tudo isso.

Oyamada levantou a mão.

— Pra que serve essa sala, afinal?

— Para a cerimônia — respondeu a Deusa.

— Cerimônia? Você vai invocar mais alguém aqui, então? — perguntou Kirihara.

Ela bateu levemente as mãos e sorriu.

— Too-ka Mimori-san — anunciou. — Por favor, entre no centro do círculo.

— Hã…? Eu?

Eu me lembrei do que a Deusa tinha dito antes…

“Não se preocupe. Mesmo os heróis da Classe E têm um papel a cumprir.”

Engoli em seco.

O que ela quer que eu faça…?

— Nnh! — Fiquei paralisado, apavorado demais para dar o passo.

— Anda. — Senti a ponta de uma lança pressionar minhas costas, vinda de um dos guardas. — Quer morrer?

Não tem pra onde fugir… Tô com um pressentimento péssimo sobre isso, mas nem se eu quisesse, conseguiria lutar.

Escoltado pelos guardas, fui até o círculo mágico. Juntei coragem e falei.

— Com licença, Deusa?

— Sim? — ela respondeu.

Pelo menos dessa vez ela não está me ignorando. Acho que é mais difícil escapar disso quando todo mundo tá prestando atenção em mim.

— O que é isso? Por que eu tô indo primeiro?

— Too-ka Mimori, de todos os heróis da classe 2-C, você é o mais fraco.

É, eu sei. Sou o único Classe E, né?

— Desde o início dos tempos, os heróis de menor rank nunca foram úteis. Pelo contrário, costumam se agarrar aos colegas mais fortes e arrastá-los pra baixo com sua incompetência. Então, eventualmente, decidi que todos os heróis que caírem na Classe E… devem ser eliminados.

— O quê…?

Eliminados…?

— Infelizmente, fazer isso aqui e agora causaria um choque desagradável nos outros heróis invocados — alguns deles podem ter algum apego inconveniente por você, afinal. No passado, tentei transportar os heróis da Classe E para uma cela aqui no palácio, pra matá-los em segredo, mas mesmo assim as notícias vazaram e causaram confusão entre os figurões. Por isso cheguei a essa solução… — a Deusa abriu os braços, magnânima — dar aos heróis de menor rank uma chance de redenção.

— Uma chance de me redimir…? O-o que isso quer dizer?

— Esse círculo mágico de teletransporte vai te mandar para as ruínas — ela declarou.

— Ruínas…?

— Se conseguir atravessar as ruínas e chegar à superfície, prometo não interferir mais com você. Alion concederá sua vida.

— E-essas ruínas… são perigosas?

— Quem sabe? Bom, a maioria dos criminosos perigosos de Alion são mandados pra lá pra cumprir pena, mas — não preciso responder esse tipo de pergunta pra você~.

Ela… tá falando sério…?

Mesmo que a Deusa estivesse tentando ser vaga, a resposta era bem clara — ninguém voltava vivo das ruínas. Era um lixão — uma forma conveniente de se livrar dos prisioneiros sem ter que puxar o gatilho. As ruínas faziam o serviço.

Ou talvez monstros como aquele lobo de três olhos…

— Talvez você ainda não tenha entendido sua situação. Tenho certeza de que o nome das ruínas vai te ajudar — disse a Deusa, devagar e deliberadamente. — Elas se chamam… Ruínas da Descarte.

Baixei a cabeça e cerrei os punhos.

Descarte… por que isso tá acontecendo…?

— Ah!

Ainda tinha uma coisa — um último raio de esperança! Talvez isso me salvasse!

— Deusa!

— Sim?

— Eu tenho algo pra te dizer! M-minha habilidade! Eu já consigo usar minha habilidade única!

A Deusa levou a mão ao rosto.

— E…?

Hã? Por que ela não tá reagindo…?

— E-eu conferi o painel de status, e tá escrito “disponível para uso”! Isso é bom, né?!

— Se fosse uma habilidade de Classe A, talvez…

— Minha habilidade se chama “Aplicar Efeito de Status”! Acho que me permite, tipo, paralisar ou envenenar inimigos—

A Deusa apenas suspirou.

— Escuta aqui… neste mundo, magias de efeito de status são praticamente inúteis.

O tempo parou.

— Hã…?

Inúteis?

— Elas quase nunca funcionam. Raramente têm efeito até nos monstros mais fracos, que dirá em inimigos médios ou mais fortes. E mesmo se, milagrosamente, uma funcionar, os efeitos são mínimos e a duração extremamente curta. Foi assim todas as vezes.

— I-isso não pode ser—

— Em outras palavras, você tirou a carta errada, como é de se esperar de um herói Classe E. — Ela brincava com o próprio cabelo enquanto falava. — E tenho que dizer, seus modificadores de status são absolutamente patéticos. Não há esperança de que melhorem muito, mesmo com o aumento de nível — não me surpreenderia se você evoluísse mais devagar do que um humano totalmente mediano.

Então… por que você me chamou de herói? Você me traz até aqui, me chama de herói… e depois me joga fora, assim?!

— M-mas espera! Isso de “descartar” não é meio demais—

— Urgh.

Fui interrompido por um som de desgosto.

— Isso é patético.

Era o Kirihara.

— Você tá desperdiçando meu tempo. Eu podia estar fazendo qualquer outra coisa agora, mas tenho que ficar ouvindo isso? A gente te deixava em paz quando você ficava se arrastando pelos cantos, e é assim que você retribui? — Ele soltou um suspiro irritado. — Acaba logo com isso. Tá todo mundo esperando por você. As garotas estão cansadas, tá vendo? Eu sinto pena delas — você não sente?

As meninas pareciam totalmente encantadas com as palavras dele.

— K-Kirihara-kun!

— Ele é tão gentil!

— É como se soubesse exatamente o que a gente quer, antes mesmo de falarmos! Tão atencioso!

— Quem esse Mimori-kun pensa que é, afinal?! Ele devia saber ler o clima do lugar!

— Ha, ele não sabe ler o clima — é praticamente feito de ar!

— Pfft! Verdade — que hilário!

— Para de choramingar!

— Acaba logo com isso!

— Estamos cansados, para de perder nosso tempo!

— Não sabe a hora de desistir?!

Os garotos já tinham se juntado à bagunça também. Oyamada estava sorrindo. Então, alguém saiu da multidão e veio na minha direção.

Era Yasu Tomohiro… com compaixão nos olhos.

— Você tá bem, Mimori? — ele disse, colocando as duas mãos nos meus ombros.

— Y-Yasu...

Os olhos dele se estreitaram.

— Espera aí, Mimori. Escuta o que você tá dizendo.

— Ahn? O-o que…? — gaguejei.

— É Yasu-san. Você é da Classe E, o fundo do poço. Eu sou da Classe A. Mostra um pouco de respeito. — A compaixão sumiu dos olhos de Yasu, dando lugar a uma nova expressão — ele me olhava como se eu fosse sujeira grudada na sola do sapato, como se tivesse certeza absoluta da sua superioridade.

***


Quando foi mesmo?

O Oyamada tinha acabado de espancar o Yasu. Eu vi só o final — Yasu tava caído no chão, e o Oyamada cuspiu nele antes de ir embora.

Criei coragem e fui até lá. Yasu tava coberto de lama — lembro de ter pensado que o Oyamada tinha passado dos limites dessa vez.

— Você devia mesmo falar com um professor ou alguém acima disso. Alguém que não seja o Zakurogi.

Ele não respondeu.

— Vai, eu vou com você. Isso foi demais, até pro Oyamada. Tipo, eu também morro de medo dele, mas também tô… com raiva. Ele não pode continuar impune.

Estendi a mão, tentando ajudar ele a levantar.

— Vamos resolver isso logo, Yasu.

— Por que tem que ser você?! — Yasu explodiu. Ele deu um tapa na minha mão. — Ninguém me trata com superioridade, Mimori! Muito menos você!

— O-o quê…? — fiquei paralisado.

— Você acha que é melhor do que eu?! Vai se ferrar! Eu sou melhor que você, pelo menos!

Foi aí que eu percebi.

Eu sou ar.

Sou um NPC.

Não tô nem no topo nem no fundo — nem chego a estar na escada. Ninguém liga se eu tô aqui ou não. Mal sou notado, só parte do fundo do cenário.

Mas o Yasu não era como eu. Ele tava no fundo da hierarquia da escola, mas ainda fazia parte dela, e nunca parou de pensar na posição dele ali.

— Você não é melhor do que eu! Não preciso da sua piedade, entendeu?! Isso me irrita pra caramba! Vai morrer logo, Mimori! Sai da minha frente!

Talvez tenha sido aí que percebi isso pela primeira vez.

A hierarquia de tudo.


Yasu se aproximou de mim.

— Era o que eu esperava — murmurou. — Eu sabia… sabia que uma virada tava chegando, sabe? Eu ia dar a volta por cima. Ia entrar numa faculdade de primeira, conseguir um emprego top, ter sucesso na vida — diferente desses idiotas. Pelo menos metade deles já tá abaixo de mim. Um bando de imbecis míopes, que não enxergam o quadro maior — sacou?

Ele parecia outra pessoa… ou será que esse era o verdadeiro Yasu Tomohiro?

Eu só tinha visto esse lado dele uma vez.

— Vai morrer logo, Mimori! Sai da minha frente!

Aquele era o verdadeiro ele?

Ele continuou o desabafo, quase sussurrando.

— Oyamada é um lixo, claro, mas o Kirihara não é muito melhor. Os dois são arrogantes. E todos aqueles idiotas metidos a bons samaritanos — tomara que adoeçam e morram. Os únicos que prestam nessa sala são a Ayaka, o Hijiri e o Itsuki. O resto é tudo lixo. Ralé do caramba.

Ele tava até chamando as meninas pelos primeiros nomes agora — lembro de quando ele gaguejava todo pra falar “Sogou-san”.

— Aaaah… isso foi bom — ele disse no meu ouvido. Depois virou as costas e se afastou, acenando com a mão.

— Enfim. Boa sorte aí — imagino que não vai durar muito, herói lixo.

Fiquei parado, em silêncio. Agora eu entendi. Yasu tava eufórico e precisava contar pra alguém. Não podia falar com o resto da sala, mas Mimori Touka, herói da Classe E, tava prestes a ir embora pra sempre e morrer. Ninguém acreditaria em mim se eu tentasse desmascará-lo — qualquer coisa que eu dissesse ia soar como o último chororô de um fracassado que não aceitava o próprio destino. Yasu me usou como válvula de escape segura pra se gabar.

— O que você disse aí, Yasu? — perguntou Oyamada, com um sorriso torto.

— Ofereci pra ouvir as últimas palavras dele — Yasu respondeu, de boa — mas não adianta. Ele nem quis escutar. É mais inútil do que eu pensava.

Eu só fiquei lá, congelado.

O-o que foi isso? O que eu fiz pra merecer…?

Nada fazia sentido. Era absurdo. Senti uma raiva indignada crescendo dentro de mim, pronta pra explodir.

A Deusa virou as palmas das mãos em direção ao círculo mágico.

— Que comece a cerimônia.

O chão sob meus pés começou a brilhar.

Não adianta. Ninguém vai me salvar, e essa Deusa de coração frio não vai ter piedade.

Os guardas ao redor do círculo mágico prepararam seus arcos, e as figuras encapuzadas levantaram as mãos na minha direção, abaixando as cabeças.

— Se tentar sair do círculo mágico, meus guardas vão matar você. — A Deusa sorriu em tom de aviso. Nenhum dos meus colegas se mexeu pra me ajudar — ninguém teve coragem de sair da linha com guardas armados ao redor, e o próprio Kirihara, o topo da hierarquia, já tinha me condenado.

É mais do que isso — quem arriscaria a própria vida por um figurante? Ninguém. Quem se importa se um NPC morrer? Essa é a história da jornada dos heróis escolhidos pra derrotar o Rei Demônio. Eles não precisam de Mimori Touka pra isso.

THUD.

A Deusa jogou algo aos meus pés.

— O que é isso…? Uma bolsinha de couro?

— Isso — ela disse — é o seu item único. Quando heróis são invocados, um item mágico único aparece junto com cada um deles. Essa bolsinha vagabunda é a sua.

Virei aquela coisa frágil nas mãos.

— Meu… item mágico…

Um murmúrio inquieto se espalhou pela turma 2-C — era a primeira vez que a gente ouvia falar de itens mágicos. Mas, como sempre, a Deusa tinha uma resposta preparada.

— Não se preocupem! Enquanto vocês ainda dormiam após a invocação, eu recolhi os itens para mantê-los em segurança — eles estão esperando por vocês na sala ao lado. Com certeza serão extremamente eficazes assim que vocês os tiverem em mãos!

Essa Deusa… ela sabia exatamente o que tava fazendo. Se a gente tivesse acordado da invocação com itens mágicos poderosos nas mãos e decidisse se rebelar, isso podia causar problemas pra ela. Por isso ela tirou os itens de nós — por precaução.

A Deusa riu.

— Esses itens mágicos são só mais um motivo pra amar a invocação de heróis! Bem, de qualquer forma — disse ela, com o olhar voltando para mim e minha bolsa —, eu até tentei colocar um pouco de mana nela, mas parece que essa sua bolsinha patética só serve mesmo pra brilhar.

— Luz?

— É, uma lanterna, eu acho? As ruínas são escuras, então deve ser útil pra você em breve. Tem um cristal condutor de mana preso nela, então você pode despejar mana dentro da bolsa. Se conseguir sair inteiro lá da superfície, pode até vender isso e viver um tempinho com o dinheiro! Maravilhoso! — A Deusa abriu os braços mais uma vez enquanto se virava pros outros.

— Todos vocês viram o que acabou de acontecer aqui? Eu ofereci misericórdia a Too-ka Mimori! Até os mais baixos entre os baixos merecem uma chance! Eu sou uma Deusa compassiva, bondosa até com os fracos. Eu me rebaixo até a abençoar um herói de Classe E antes de descartá-lo!

Ela se virou pra mim.

— Mas o resto de vocês não precisa da minha compaixão! Todos vocês são melhores que Too-ka Mimori! Cada um de vocês é poderoso à sua maneira!

O círculo mágico brilhava cada vez mais forte, e a voz da Deusa se elevava junto.

— Todos vocês são heróis, mas mesmo entre heróis, existe uma hierarquia! Imagino que alguns estejam preocupados com seus rankings, ou achando que não são tão bons quanto os outros! Por favor, não temam! Todos vocês foram escolhidos! Cada um de vocês é extraordinário! Olhem! Olhem para Too-ka Mimori!

A sala inteira virou pra me encarar ao mesmo tempo.

— Ele também é, sem dúvidas, um herói... mas ele é diferente de vocês! Todos vocês são Classe D ou acima! São melhores que ele! Têm uma vantagem inata neste mundo!

— Não se preocupem. Até os heróis de Classe E têm um papel a cumprir.

Foi aí que eu entendi o que ela quis dizer com aquilo.

Eu sou um sacrifício. Os heróis de Classe S e A já se sentem bem consigo mesmos, mas as Classes B a D provavelmente estavam se sentindo inferiores, inseguros com suas classificações medianas. Mas se existe alguém abaixo deles, como eu, sempre vão ter alguém pra desprezar e se sentirem superiores. Eles podem se afirmar.

“Pelo menos eu sou melhor que o Mimori Touka. Ainda bem que não fui jogado nas Ruínas de Descarte. Eu ainda tô aqui. Eu sou um dos sortudos.”

Essa é a cerimônia que a Deusa montou pra eles. Uma grande mentira. Uma ilusão. E eu sou o bode expiatório. É por isso que ela faz questão de deixar claro que eu também sou um herói — mesmo entre heróis, eles foram os escolhidos.

— Droga…

Então esse é o meu “papel a cumprir”, é? Provavelmente tem monstros ainda piores do que aquele lobo de três olhos nas Ruínas de Descarte. Tudo que eu tenho são magias inúteis e estatísticas miseráveis.

Eu vou morrer.

— Espera, por favor—! — uma voz se ergueu.

Olhei pra cima e vi Sogou Ayaka caminhando com determinação na direção da Deusa.

— Isso tá errado! Mimori Touka é um dos nossos colegas! — protestou ela.

— Ei, ei! Não seja grosseira, Sogou! — disse Zakurogi, se colocando entre ela e a Deusa.

— Você é nosso professor orientador, Zakurogi-sensei! Se controle! É seu dever proteger os alunos que estão sob seus cuidados!

— Q-que diferença isso faz agora?! Você é uma garota inteligente, por que não consegue ver a realidade do que está acontecendo?! Não tem nada que possamos fazer por ele… — rebateu Zakurogi. — E-e a culpa é do Mimori mesmo! Ele é Classe E!

— Ele não escolheu ser Classe E! Por que todo mundo tá de boa com isso?! Não podemos deixar ela mandar ele pras Ruínas de Descarte ou—!

— Sogou-san, Classe S, não é? — interrompeu a Deusa. — Você não me deixa escolha.

Os braços dela caíram, e num instante, já estava atrás da Sogou.

— Atemi!

Ela desceu a mão rapidamente na nuca da Sogou.

— Nh?!

Sogou girou numa manobra digna de mangá de luta. Usando o impulso da rotação, aparou a mão da Deusa com a própria.

Aquelas são técnicas de artes marciais antigas?

Sogou assumiu uma postura de luta impressionante.

— Eu não vou cair tão fácil assi—ghhh!

O punho da Deusa acertou como um martelo o estômago da Sogou.

— O primeiro golpe foi só uma distração. Achou mesmo que era meu ataque principal?

— Aah…Nggh…

Os olhos da Sogou reviraram enquanto ela caía no chão e permanecia imóvel.

— S-Sogou…

Percebi que estava estendendo a mão na direção dela. Eu sabia que ela só estava cumprindo seu papel de representante da turma... mas mesmo assim, significava muito que ela tenha tentado me ajudar.

Ao mesmo tempo, eu nunca me senti tão patético e impotente como naquele momento.

A Deusa chamou algumas mulheres para colocarem a Sogou inconsciente em uma maca e a carregarem para fora da sala.

— Ela é uma heroína Classe S. Tratem-na com o máximo cuidado, ou eu farei vocês desejarem nunca terem nascido. Entendido?

As mulheres assentiram, apavoradas, e levaram Sogou para fora.

— Vamos continuar.

Enquanto a Deusa retomava sua cerimônia, eu conseguia ouvir meus colegas da turma 2-C cochichando entre si.

— A Sogou-san é tão gentil…

— A Deusa foi meio assustadora, né?

— Ela derrubou a Sogou-san com um só golpe…!

— Mesmo com aqueles movimentos, a Deusa não consegue derrotar o tal Rei Demônio?

— O quão forte esse cara é…?

Kirihara estava com uma carranca. Oyamada tinha o desagrado estampado no rosto. Até o Yasu estava com a mandíbula cerrada de raiva.

— Todos! Atenção, por favor! Olhem bem para esse herói antes que ele seja descartado! É isso que espera aqueles sem poder, os fracassados e rejeitados! Mas vocês, vocês são os vitoriosos! Olhem para ele com pena e pensem bem no destino terrível que aguarda os fracos!

A Deusa os incentivava.

Não quer acabar como ele? Fique forte. Cumpra seu dever comigo.

— Vai… se ferrar.

Quase sem perceber, eu já estava com o braço levantado, apontado pra Deusa. Ela arqueou a sobrancelha e olhou pra mim, de cima.

— Ora, ora.

Estendi a mão na direção dela, imitando os movimentos que ela fez quando carbonizou o lobo de três olhos. Alvo travado.

—P-paralisar!

Joguei minha única arma contra ela. Nem sabia se aquilo funcionaria. Eu simplesmente… surtei. Tive que fazer alguma coisa. Toda a minha raiva foi descarregada naquela única palavra.

—Isso foi bem rude da sua parte —disse a Deusa com calma.— Você realmente achou que isso ia funcionar?

Sem efeito.

—Aaah… —meu braço caiu, mole, ao lado do corpo.

—Deixe-me explicar de um jeito que até mesmo um herói de Classe E consiga entender —disse a Deusa, estreitando os olhos.— Eu mantenho uma “Bolha de Dispersão” protetora ao meu redor o tempo todo… o que me torna completamente imune a magias de alteração de status.

Pena. Desprezo.

—E aí está. Os momentos finais do herói perdedor.

O círculo mágico começou a tremer.

Eu sabia o que estava vindo… a qualquer momento, seria teleportado.

—Destruidor Dracônico.

Um clarão repentino de branco. Uma luz grossa, como um raio laser, passou por mim, quase atingindo meu ombro. Virei, assustado, e vi um buraco se abrindo na parede atrás de mim com um estrondo gigantesco!

—Heh, parece que o meu funciona.

Kirihara tinha usado sua habilidade única de Classe S.

Ele… estava tentando me acertar? Nem sei dizer.

—A habilidade do Mimori era tão patética que eu fiquei me perguntando se a minha era parecida. Mas parece que causa bastante dano mesmo quando eu não tô nem me esforçando. Foi mal pelo buraco na parede.

Kirihara me olhou com um desprezo indiferente, como se eu fosse uma mancha nojenta que ele não conseguia tirar da roupa.

—Sai logo da frente, lixo de Classe E.

—!

Eu sei… não dá pra esperar que alguém vá contra a Deusa por minha causa. Não tem nada que vocês possam fazer. Mas… é sério que essa é a última coisa que você tem pra me dizer, Kirihara? Eu sou seu colega de classe, condenado à morte. E é isso?

—Incrível! —exclamou uma das figuras encapuzadas.— Que poder, e ainda por cima no nível 1! Você será um herói empolgante de se acompanhar, Kirihara-dono!

—Hã? —Kirihara pareceu distraído.— Tá aparecendo uma mensagem dizendo que meu nível de habilidade aumentou ou algo assim.

—Inacreditável! —gritou outra figura encapuzada.— Subir de nível com um único uso?! Seus modificadores de status são impressionantes! Nada parecido com esse herói patético de Classe E!

A luz ao meu redor ficava cada vez mais intensa. O tempo estava acabando. Lágrimas começaram a se formar nos meus olhos. Cerrei os punhos com força ao lado do corpo.

—Que merda…

Oyamada começou a rir que nem um maluco.

—Ah, então o heróizinho de merda já desistiu?! Hahaha!! Isso é o que eu chamo de karma, hein?! Não devia ter tentado bancar o valentão comigo no ônibus! É uma pena que eu não vá poder ver você morrer, Mimori!

Não era só tristeza—toda uma mistura de emoções fervia dentro de mim. Medo… e raiva.

—Abandone suas preocupações mundanas e entre em um sono tranquilo, Too-ka Mimori… —disse a Deusa com um ar de satisfação.

Levantei a cabeça e abri os olhos.

Os rostos dos meus colegas estavam cheios de arrogância e desprezo, as vozes eram zombeteiras e cruéis. Todos estavam contra mim—bem, talvez nem todos, mas eu não tinha tempo nem discernimento para separar aliados de inimigos. Tudo que eu via quando abria os olhos eram pessoas me olhando de cima.

Não… aquelas duas não. Elas não fazem parte disso.

—O que você acha, Aneki?

—Escória. Todos eles.

As irmãs Takao se viraram rapidamente e foram em direção à porta.

—Vamos, Itsuki. Eu entendo o que a Deusa Vicius está tentando fazer, mas isso tudo é de extremo mau gosto.

—Sinto muito pelo Mimori, mas a gente não tem poder pra impedir a Deusa agora. Então, tipo… tchau! Não quero assistir, então vamos pra próxima sala, tá?

—O-o-onde vocês acham que estão indo?! —gritou uma das figuras encapuzadas atrás delas. As irmãs Takao o ignoraram, então os guardas começaram a se mover na direção delas.

—Deixem-nas —ordenou a Deusa.

—Mas, Deusa—! —um dos guardas protestou.

—Não acho sensato forçar essas duas a cooperar. Afinal, elas são heroínas de Classe S e A. Tenham cuidado ao lidar com elas… especialmente com a de Classe S.

Parece que nada atinge essas duas…

A Deusa se voltou para mim.

—Vamos terminar logo com essa teleportação, sim? Too-ka Mimori, tem alguma última palavra?

Últimas palavras, hein?

Senti aquilo se dissolver.

O filtro que eu sempre mantinha ativo se desfez, e algo que eu mantinha trancado lá no fundo—o verdadeiro Mimori Touka—veio à tona. Eu o segurava dentro de mim o tempo todo… vivia como alguém inofensivo, que não fazia mal a ninguém. Morrendo por dentro só pra conseguir sobreviver.

Mas, no fundo, eu sempre soube o que estava fazendo. O verdadeiro eu sempre esteve lá. Um lado tentava ser uma boa pessoa, mas o outro, mais violento, sempre esteve à beira de escapar.

Eu mantive meu verdadeiro eu enjaulado esse tempo todo.

[…]

Chega. Quem se importa agora? Tá tudo tão ferrado, e mesmo assim…

Olhei pra baixo e senti meu rosto se contorcer num sorriso selvagem.

Comecei a rir.

—Vai se ferrar, sua Deusa nojenta.

Até me surpreendi, mas… foi libertador.

Meus colegas pareciam chocados. A Deusa estava impassível, os olhos como poços escuros e sem fundo.

—Ocultei a verdade por compaixão, mas… se é assim que você me retribui, não vejo motivo pra continuar me contendo. Usei o nível mais baixo das Ruínas do Descarte para me livrar de muitos guerreiros fortes porém inadequados ao longo dos anos. Nenhum deles saiu de lá com vida. De tempos em tempos, envio uma patrulha à entrada das ruínas para verificar um marcador secreto que me avisa caso alguém escape… mas esse marcador nunca foi ativado. Ninguém jamais sobreviveu às ruínas.

A Deusa sorriu de orelha a orelha.

—Espero que você morra de forma feia e patética, Too-ka Mimori.

Uma luz forte e pálida me envolveu.

—Compaixão? —cuspi.— Ah, claro. E por isso você nem quis responder minhas perguntas antes, né?

Fitei a Deusa—alvo travado.

—Se eu voltar vivo… é melhor estar preparada.

—Se você voltar? Ha! Que piadista! Um último suspiro digno de um trapo descartável.

Senti algo estranho… a cabeça leve. Minha visão escureceu.

Será que aquela Deusa nojenta ainda consegue me ver?

Too-ka Mimori, herói descartável… mostrou o dedo do meio.


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