Capítulo 1: Um Velho Caipira Vai à Capital
Bem cedo de manhã, num dojo enfiado no meio do interior remoto, meu velho começou a resmungar umas bobagens incompreensíveis.
— Beryl. Quando é que eu vou ter uns netinhos, hein?
— O que você tá esperando de mim aqui no meio do mato, pai?
Meu nome é Beryl Gardinant — sou um homem velho. Sem entrar em muitos detalhes, já faz muito tempo que atuo como instrutor num dojo rural de esgrima que vem passando de geração em geração. Você pode achar que eu tô escondendo o jogo, mas não tem mais o que dizer. Eu sou simplesmente um velhote num dojo do interior que ensina os outros a manejar a espada. Nada mais, nada menos.
— É seu dia de folga, e você começa o dia meditando. Desse jeito você não vai conhecer ninguém.
— E quem foi que me criou desse jeito, hein?
Desde que meu pai se aposentou e me passou o cargo de instrutor, esse tipo de bobagem é tudo o que ele fala. Embora... ele não seja o único a pensar assim — eu também queria encontrar alguém, caramba.
Como a minha família era do jeito que era, passei a vida toda brincando com uma espada de madeira, praticamente desde que me entendo por gente. Meus pais deram à luz um garoto saudável e me criaram direitinho, mas parece que eu não herdei o talento extraordinário do meu velho pra espada. Claro que me esforcei. Não é como se eu odiasse esgrima ou algo assim. E, acima de tudo, eu nunca encontrei outro hobby que me envolvesse tanto aqui no meio do nada.
Quando comecei meu treinamento, ainda criança, era movido por pura curiosidade. Isso continuou até o auge da adolescência, passando pelos meus vinte e tantos anos, quando minha maturidade alcançou meu crescimento físico e fortaleceu corpo e mente. Depois, nos meus trinta, me dediquei ainda mais ao aperfeiçoamento pessoal. E, com todo esse acúmulo de experiência, cheguei aos quarenta, tendo investido mais esforço no meu treinamento do que a maioria.
O resultado? Eu tinha habilidades um pouco melhores com a espada que a média, um físico que me permitia pelo menos me chamar de espadachim, e reflexos que podiam ser considerados bons pra minha idade. Só isso.
Se me perguntassem se eu estava satisfeito com isso, eu teria que dizer que não. Mas também não é como se eu estivesse frustrado com a vida. Esse era o fim da linha pra mim — eu estava estranhamente convencido disso. Talvez porque meu pai nunca depositou muitas esperanças no meu talento e me deixou crescer no meu próprio ritmo.
— Não tem nenhuma garota bacana entre seus alunos?
— Ah, qual é, pai. O dojo não é lugar pra paquerar.
Mais uma vez, ignorei as bobagens do meu velho. Provavelmente ele só falava essas coisas porque estava conversando com o próprio filho, mas sinceramente, ele sempre teve uma baita falta de tato.
Aliás, talvez por consideração à idade, meu pai me passou oficialmente a posse do dojo. E, desde então, percebi uma coisa: embora eu fosse só mediano com a espada, eu parecia ter bastante talento pra ensinar os outros.
Mesmo com nossa vila sob a proteção do reino, havia muitos perigos no interior. Um passo além dos limites da cerca da vila e você já se encontrava nas terras selvagens, cheias de animais ferozes e monstros perigosos. Claro, era raro monstros chegarem até a vila, mas o mundo aqui fora ainda estava longe de ser seguro.
A capital e outras áreas urbanas eram protegidas por muralhas imponentes e patrulhadas por cavaleiros e soldados. Mas aqui, nessa vila rural, nossas opções defensivas eram bem mais limitadas. Tinha gente como eu — um espadachim mediano tentando botar comida na mesa com um dojo — e alguns caçadores que se aventuravam nas matas. De vez em quando, soldados, aventureiros e afins passavam uma temporada aqui, mas era só isso.
Talvez por isso, mesmo aqui no fim do mundo, nosso dojo era até que bem procurado. As pessoas queriam aprender a se defender e adquirir habilidades que pudessem levar a uma carreira de sucesso. Infelizmente, magia não era comigo. Eu não sabia absolutamente nada sobre o assunto. Desde que nasci, só segurei espadas de madeira ou metal. Embora, mesmo no mundo inteiro, magos de verdade fossem uma raridade. Dizem que a capital tem um esquadrão mágico, mas os usuários de magia são pouquíssimos.
Ah, falando em alunos, uma vez ensinei uma garota muito bonita, com cabelos prateados reluzentes. Ela me olhou bem séria e disse: — Quando eu crescer, vou me casar com você, Mestre. Mas como ela era jovem demais pra eu levar aquilo a sério, só deixei pra lá.
Bom, me desviei do assunto. Eu estava falando sobre ensinar esgrima e como eu era um pouco talentoso como instrutor. Com uma boa demanda e uma oferta decente, meu dojo tinha até que bastante alunos, mesmo estando enfiado no interior. A gente ensinava de tudo — molecada barulhenta da vila, a filha do chefe da aldeia, e até nobres da capital com seus filhos. Às vezes eu pensava que devia ter vários outros dojos como o meu por aí, mas, no fim, o número de alunos estava diretamente ligado ao nosso padrão de vida. A gente cobrava mensalidade, afinal. O dojo definitivamente não era uma obra de caridade.
— Bom, sabe como é... já tá na hora de você demonstrar um pouco de piedade filial — reclamou meu pai.
— Eu herdei seu dojo, matriculei mais alunos e tô ganhando mais dinheiro. Se isso não é piedade filial, eu não sei o que é.
— Falta os netinhos.
— Ah, fala sério...
Ele tava com uma energia danada logo cedo.
De qualquer forma, eu já fazia as vezes de instrutor aqui havia um bom tempo. Entre os que se formaram no nosso dojo, alguns conseguiram bastante sucesso na vida, virando aventureiros de alto nível ou entrando para as ordens de cavaleiros do reino.
Alguns ex-alunos voltavam com frequência pra contar como andavam as coisas, enquanto outros mandavam cartas. Apesar de ter certo talento pra ensinar, eu sempre tive plena consciência das minhas limitações. Claro, eu ficava grato — era uma sensação bem quentinha no peito ver os antigos pupilos se preocupando comigo daquele jeito —, mas uma parte de mim achava que eles não precisavam ficar dando tanta atenção pra um velho do interior.
Sério, por que a comandante dos cavaleiros do reino tá me mandando cartas? Ela não tem coisa mais importante pra fazer? Receber atualizações de uma pessoa tão importante, muito acima da minha posição, só servia pra me lembrar do quanto alguns dos meus alunos tinham ido longe. No fim das contas, isso não fazia bem pro meu coração.
Se ao menos eu tivesse um pouquinho mais de talento com a espada... talvez, só talvez, eu também tivesse saído dessa vila.
— Dá pra pelo menos me dar um pouco de esperança, né?
— É, é... Se eu conhecer alguém, isso é.
De toda forma, sair daqui era nada mais que um sonho impossível. Eu sabia que minhas habilidades já tinham chegado ao limite e, nessa idade, nem cogitava mais a ideia.
Depois que meu pai saiu do dojo, senti uma brisa suave tocar minha pele. A manhã estava perfeita pra uma meditação.
— Haaah...
Aos poucos comecei a focar a mente pra dentro, mas fui logo puxado de volta à realidade ao ouvir o som de uma visita. Hmm, quem será? Hoje era dia de folga, então provavelmente não era nenhum dos meus alunos. Além do mais, a maioria deles eram crianças, e essas nem se davam ao trabalho de cumprimentar — já chegavam invadindo sem cerimônia.
— Com licença.
— Sim, sim, quem é?
Levantei — meus quadris pareciam estar cada vez mais pesados com o passar dos anos — e abri a porta do dojo. Do lado de fora, estava uma beldade de feições imponentes. Seus longos cabelos prateados esvoaçavam ao vento.
— Faz tempo, Mestre.
— Hmm, você por acaso é... Allusia?
Sua expressão nobre se desfez num sorriso suave.
— Sim, Mestre. É muito bom ver você de novo.
Certo. Mas por que, em nome de tudo, a grande comandante dos cavaleiros desta nação estava no fim do mundo, bem aqui no interior? Sério mesmo, por quê? Aparecer pessoalmente desse jeito obviamente ia dar um susto num velho como eu.
Quase engolindo esses pensamentos, falei:
— Faz mesmo bastante tempo. Quase não te reconheci.
— O senhor continua exatamente o mesmo, Mestre.
De repente, me vi numa típica situação de "garoto encontra garota", num dojo perdido no campo. Como seria fácil a vida se tudo pudesse ser resumido assim, né? Mas eu já estava velho demais pra ser chamado de garoto, e a Allusia não era tão jovem a ponto de ser chamada de garota. Ainda era uma bela mulher, claro. Infelizmente, eu já tinha passado da idade de viver sonhando com esse tipo de romance.
Ao norte do continente de Galean ficava nosso país, o Reino de Liberis. A capital era Baltrain — ali ficava a sede da Ordem de Liberion, que servia diretamente à monarquia.
E agora, a nova comandante dessa tal Ordem de Liberion, Allusia Sitrus, estava bem na minha frente.
Durante o tempo que passou no nosso dojo, ela foi dedicada e talentosa, com uma personalidade gentil. Mesmo quando era só uma garotinha, conseguia imitar minha técnica de espada só de me observar. Também tinha um certo dom pra cuidar dos outros — lembro bem de como se preocupava com os colegas. Era toda certinha, o que combinava muito pouco com esse dojo largado no meio do nada.
Allusia treinou no meu dojo por uns quatro anos. Em termos de idade, ela ficou aqui dos doze aos dezesseis. E nesse tempo, basicamente absorveu tudo o que eu tinha pra ensinar. Querendo se aprimorar ainda mais, deixou essa região isolada — a vila de Beaden — e partiu rumo à capital, Baltrain.
— Faz muito tempo desde que visitei o dojo — ela murmurou, com um ar claro de nostalgia na voz. — O mesmo vale pra Beaden... — Olhou por cima do meu ombro, espiando dentro do dojo pela porta.
— É verdade. Já se passaram quantos anos, hein?
Allusia não tinha nascido nessa vila. Pelo que soube, ouviu falar do nosso dojo em algum lugar e veio pra Beaden com os pais. Segundo me disseram, os dois eram comerciantes, e as roupas elegantes que usavam já entregavam uma certa riqueza. Parece que queriam que a filha tivesse o mínimo de preparo pra se defender sozinha. Uma coisa levou à outra e acabaram ficando por aqui por quatro anos, o tempo que ela passou treinando conosco.
Claro, era meio esquisito a filha de comerciantes virar comandante dos cavaleiros. Até hoje não faço ideia de como isso aconteceu. Aliás, nunca fui do tipo que fica fuçando sobre o passado dos meus alunos. Se eram menores de idade, eu verificava o que precisava, mas no geral, nunca recusei quem aparecesse por aqui. Pagando a mensalidade certinho, tava tudo certo pra mim.
— Ah, e o senhor tem lido as minhas cartas? — perguntou Allusia.
— Sim, tenho lido. Parece que você tá levando uma boa vida.
Desde que saiu do dojo, ela vinha me mandando cartas a cada alguns meses. Lendo elas, eu conseguia ter uma ideia de como andava o dia a dia dela. Mas nunca me passou pela cabeça que ela fosse aparecer aqui do nada. Na verdade, se ela tivesse dito algo em uma das cartas, eu teria me preparado melhor. Receber uma figura tão importante de surpresa foi um baita susto pra esse velho aqui.
Ela tinha mudado tanto desde a última vez que a vi. Pensando bem, Allusia devia estar agora nos seus vinte e poucos anos — provavelmente já chegando naquela idade onde a mente e o corpo alcançam sua plenitude. Parecia bem mais tranquila do que quando era criança, quase passando uma sensação de serenidade. Seus traços estavam mais firmes, e o corpo, agora, era o de uma mulher. Dava pra ver que ela tinha crescido de forma saudável desde que deixou o dojo.
Enquanto eu observava minha ex-aluna, meus olhos se fixaram na arma em sua cintura.
— Vejo que ainda tem aquela espada...
— Sim. É a lâmina preciosa que o senhor me presenteou, Mestre.
Allusia não estava usando a armadura imponente de uma comandante. Usava uma jaqueta de couro, algo bem mais casual. Ainda assim, trazia uma espada na cintura como símbolo de seu dever — e era uma lâmina que eu reconhecia. Eu havia dado de presente pra ela quando se despediu do dojo.
— Tenho certeza de que uma comandante dos cavaleiros poderia conseguir uma espada bem melhor — comentei.
— A definição de uma boa espada varia de pessoa pra pessoa. Essa aqui é boa pra mim. Essa é a minha espada.
— Entendo...
Puxa vida. Isso me deixou feliz, mas também me pegou um pouco de surpresa. Saber que minha antiga pupila tinha um apego tão profundo àquela espada me deixou um tanto desconcertado. Mas, pensando bem, não era algo ruim ela ter esse carinho por um presente de despedida.
Quase todos os alunos que se formavam no meu dojo recebiam uma espada. Eu gostaria de poder dar algo melhor, mas infelizmente, aqui no interior, não havia estoque de espadas de alta qualidade. A quantidade e a qualidade tinham limite, afinal. A vila tinha um ferreiro, mas as habilidades e o equipamento dele eram de um típico ferreiro de interior, então não dava pra esperar obras-primas.
Eu não lembrava exatamente quantas pessoas eu tinha presenteado com espadas. Basicamente, eu as distribuía como lembranças de despedida sem muito critério. Se eu visse um ex-aluno com uma das minhas espadas pessoalmente, talvez eu conseguisse identificar, mas não tinha certeza—se, como no caso da Allusia, já fazia anos desde que tinham passado pelo dojo, ia levar um tempo pra lembrar. Afinal, mais alunos significavam mais dinheiro, e eu ganhei o suficiente pra mandar fazer e presentear todos eles com espadas. Não era de se espantar que eu não lembrasse de cada aluno imediatamente.
—E-Então? O que te traz aqui hoje? —perguntei. —Não lembro de você ter mencionado nada sobre uma visita.
Deixando de lado meus devaneios, voltei a focar na Allusia. Tentei me lembrar do conteúdo das cartas dela, mas não conseguia recordar dela dizer que viria me visitar. Ou... talvez conseguisse. Pensando bem, ela tinha escrito algo tipo: “Agora que tenho a oportunidade de conversar com figuras importantes do país, como nobres, estou trabalhando bem mais. Mas também aconteceram coisas boas. Por favor, aguarde com expectativa.”
Achei que ela mandaria outro relatório em outra carta, mas aí estava ela, em carne e osso. Muito além do que eu esperava.
—Ah, sim —ela disse. —Na verdade, tem algo que eu simplesmente precisava te contar pessoalmente.
—H-Hmm. O que seria?
Ela continuava sorrindo. Na verdade, parecia até mais do que antes. Era um sorriso realmente leve, sem nenhuma sombra por trás; mas, depois daquela enxurrada de emoções sobre a espada de despedida, uma parte de mim sentiu algo estranho escondido ali. Talvez fosse só impressão minha.
De qualquer forma, que boa notícia seria essa que ela queria me dar cara a cara? Hmm, eu nem fazia ideia. Se ela tivesse sido promovida de novo, era o tipo de coisa que dava pra avisar por carta. Mas já que ela veio pessoalmente, provavelmente envolvia a mim também—que assunto poderia envolver um velho de quarenta e tantos anos que vivia no meio do nada?
—Pra falar a verdade, além das minhas funções como comandante dos cavaleiros, fui honrada com o cargo de instrutora de esgrima da ordem.
—Hmm, isso é impressionante.
Allusia era incrível. Provavelmente se dedicou ainda mais ao treinamento depois que saiu do dojo, elevando suas habilidades a um novo nível. Sinceramente, só de ter se tornado comandante dos cavaleiros, ela já provava que tinha força de sobra pro título.
—Assim que fui nomeada, recomendei você para um cargo como instrutor especial da ordem. E agora recebi a aprovação oficial.
—Hã...?
O que ela acabou de dizer? Achei que tinha escutado uma coisa bem estranha agora há pouco. Ha ha ha—devo estar ficando gagá.
—E-Espere aí. Pode repetir isso?
—Sim. Eu recomendei você para um cargo como instrutor especial da ordem e recebi aprovação. Vim aqui pra te informar pessoalmente.
—Hmm?
Por quê? Por que um cargo desses? Eu não passava de um velho instrutor de espada num dojo no meio do mato. Por que alguém me mandaria pra Baltrain como instrutor especial de cavaleiros que carregam o peso da nação nas costas? Isso era responsabilidade demais pra mim. Que piada boa. E eu que achava que a Allusia era séria—surpreendente ver ela soltando uma dessas.
Decidi confirmar só mais uma vez.
—Espera... sério?
—O que eu ganharia mentindo sobre isso? —respondeu Allusia, com uma leve expressão de irritação. —Não acho nem um pouco estranho, considerando sua força, Mestre.
Mesmo com essa certeza dela, eu ainda achava que essa proposta não podia ser real.
—Você diz isso, mas minhas habilidades não são lá grande coisa...
—Lá vem você com essa humildade de novo.
Não era humildade—era verdade. Não que eu achasse que era fraco, longe disso. Se fosse, eu nem me interessaria por esgrima e não teria como ser instrutor. Ainda assim, parecia completamente fora de lugar eu ensinar os famosos cavaleiros da Ordem de Liberion.
Eu nem fazia ideia do que exatamente fazia um instrutor especial, mas, indo pelo nome, dava pra imaginar que envolvia orientar na esgrima. Mas... ensinar técnicas de espada pros melhores entre os melhores? Eu? Ela só podia estar brincando comigo. Toda essa situação parecia uma pegadinha de mau gosto.
—De qualquer forma... —continuei. —Me surpreende a ordem ter aprovado uma coisa dessas.
É. Digamos que a Allusia tenha superestimado demais minhas habilidades. A recomendação dela, por si só, não bastaria pra definir o professor pra um cargo tão importante. Eu não fazia ideia de como funcionava a administração de uma ordem de cavaleiros, mas no mínimo não podia ser tão simples a ponto de ela conseguir fazer mudanças por conta própria.
O fato de eu ter sido aprovado significava que alguém, talvez a própria organização, tinha considerado seriamente a recomendação da Allusia. Uma parte enorme de mim queria que eles cancelassem essa decisão imediatamente. Porém, o fato de terem analisado meu histórico e aprovado a recomendação significava que algum tremendo idiota tinha tomado a decisão final. Ir até essa pessoa e dar um soco bem dado estava fora de questão, mas eu pelo menos queria entender como isso foi aprovado.
—Não foi tão difícil assim —respondeu Allusia. —Um bom número dos seus antigos alunos agora faz parte das fileiras da ordem. Além disso, sua esgrima é bem famosa. Você tem uma reputação sólida como o Espadachim do Interior, o homem que formou muitos cavaleiros e aventureiros notáveis. Eu preferia omitir a parte do ‘interior’, mas... bem, Beaden não é exatamente próspera, né...
—Nossa, que engraçado —respondi, sem um pingo de humor na voz.
Eu nem conseguia rir. Quem eles estavam chamando de “Mestre Espadachim do Interior”? A primeira parte até que estava certa, mas a segunda era uma baita inconsistência. Vou repetir quantas vezes for preciso: eu não sou nada além de um humilde instrutor de dojo. Mesmo que fosse um pouco mais habilidoso com a espada do que a média, eu não era nenhuma lenda viva ou herói. Era só um caipira do interior, e não havia a menor chance de me tornar um mestre espadachim.
Mas Allusia estava insistente, e parecia até um pouco emburrada com a minha recusa. — Já falei que isso não é mentira nem piada...
—A-Aaah, desculpa. É que não parece real pra mim.
Eu não estava tentando animá-la nem nada, mas ela também não parecia estar mentindo, então, no mínimo, não havia motivo pra criticá-la. Embora, de fato, ela fosse culpada de uma coisa: recomendar alguém como eu, logo de cara.
—Mrgh. Mestre, o senhor ficou medroso desde que saí do dojo? — perguntou Allusia.
—De forma alguma. Agora, assim como antes, sou apenas um homem humilde.
Ela parecia ter uma opinião absurdamente alta sobre minhas habilidades, mas isso simplesmente não me descia bem. Não que fosse ruim ouvir isso, mas pensar que ela me considerava melhor do que eu realmente era... me deixava inquieto.
—Vamos supor que tudo que conversamos seja verdade. O que vai acontecer com o dojo? — perguntei. — Ainda tenho muitos alunos. Não posso simplesmente me mudar de uma hora pra outra.
Se já estava tudo aprovado, não tinha muito o que fazer. Mesmo assim, havia muitas coisas que eu precisava considerar com os pés no chão. Como mencionei, venho administrando esse dojo há muitos anos, e como instituição, ele existe há gerações. Mas, como não sou casado, era bem possível que a tradição acabasse comigo de qualquer jeito. De qualquer forma, eu não podia simplesmente abandonar o dojo do nada. Isso seria irresponsável demais, e meu pai já não estava mais na idade de sair por aí brandindo uma espada.
—Eu sei. Por isso o cargo é de instrutor especial — disse Allusia. — Não é necessário permanecer na sede da ordem. Você pode simplesmente ir até Baltrain algumas vezes por mês.
—E-Eu entendo... — Isso era mesmo permitido pra um instrutor especial?
—Então, pra acertarmos sua agenda, gostaria que me acompanhasse até a capital. A carruagem já está preparada, esperando fora da vila.
—Agora?!
—Hoje é dia de folga no dojo, não é?
—Ah, é, mas...
Ela estava certa, mas mesmo assim... E também, era um pouco assustador o fato de ela ainda lembrar dos horários do dojo. Droga. As coisas estavam indo rápido demais. Será que eu podia mesmo aceitar esse trabalho assim, sem mais nem menos? Eu não tinha deixado nada passar? Será que era certo aceitar essa história de “instrutor especial” que a Allusia me enfiou? Aliás, eu sequer tinha o direito de recusar uma nomeação da ordem? Qual era o peso legal dessa recomendação?
Essas perguntas começaram a dominar minha cabeça. Allusia sempre foi uma boa garota — disso eu não tinha dúvidas. Mesmo tendo sido minha aluna por apenas quatro anos, eu podia garantir que ela tinha um ótimo caráter. Mas será que ela sempre foi tão insistente assim? Dentre meus alunos, ela foi uma das que mais criaram um vínculo emocional comigo. Era fácil de ensinar e aprendia tudo com rapidez. Foi justamente por isso que dei uma espada pra ela como presente de despedida.
Fiquei encarando ela, perdido nesses pensamentos soltos. De repente, Allusia pareceu lembrar de algo — sua expressão mudou e ela puxou algumas cartas do bolso.
—Ah, certo — disse ela, estendendo os papéis. — Aqui está a carta de nomeação com o selo real, e este é o seu contrato de trabalho.
—Ah, é... beleza.
Sem dúvida. Aquele era o selo do rei. Isso aí é daquelas coisas que você simplesmente tem que obedecer, droga. Não dá pra recusar, droga. Allusia, sua...
◇
Entregando-me ao chacoalhar da carruagem, olhei pela janela. A paisagem não mudava muito durante a viagem. Planícies suaves se estendiam ao longo da estrada, com montanhas ao longe. De vez em quando, um rio ou algo assim dava uma refrescada no visual, mas essa estrada era longa demais pra ficar admirando a mesma paisagem repetida. Beaden era rural até não poder mais. A gente vivia bem, não passava necessidade, mas também não dava pra chamar aquilo de lugar animado. Sendo assim, da saída da vila até o começo da área urbana da capital, era só um mar de vazio do interior.
—Faz tempo que não vou pra capital — murmurei de canto de boca, já entediado com a vista.
Allusia percebeu meu comentário na hora. —Você terá muitas outras oportunidades de ir daqui pra frente.
Ela estava sentada ao meu lado e, pra ser honesto, o perfil dela era bem marcante. Tinha longos cabelos prateados e olhos amendoados. Seus traços nobres faziam parecer que uma estátua tinha ganhado vida. Comparada à minha última lembrança dela, estava bem mais feminina e madura... embora isso até parecesse minimizar o quanto ela tinha realmente mudado. Ela sempre foi bonita, mas agora, era uma beleza de tirar o fôlego. Não que eu fosse pensar besteira da minha ex-aluna, claro.
Meus pensamentos se voltaram à Ordem de Liberion. Eles eram famosos por ter um teste de seleção extremamente rigoroso. Mesmo morando no meio do nada, eu sabia disso — o que só mostrava o quanto os cavaleiros eram prestigiados.
A ordem era o símbolo de Liberis, então, naturalmente, tinha muita história e status social. Era também a maior força militar sob o comando do reino, e graças à sua habilidade absurda, servia como fator de dissuasão na estratégia diplomática da nação.
Em termos de pura força marcial, mercenários habilidosos ou aventureiros notáveis estavam mais ou menos no mesmo nível, mas esses grupos não estavam sob a jurisdição do reino. Havia também aqueles que simpatizavam com Liberis e poderiam ajudar o país em um momento de necessidade, mas não dava pra contar com eles numa emergência.
Um cavaleiro de Liberion tinha um leque bem amplo de deveres oficiais, desde manter a ordem pública na cidade até subjugar monstros gigantes. Eles eram extremamente populares entre os cidadãos. Muitos dos que bateram na porta do nosso dojô vieram com o objetivo de entrar na ordem. Embora... eu não soubesse quantos de fato tinham conseguido.
De qualquer forma, metade do motivo de um caipira como eu saber tanto sobre essas coisas era que a divulgação da Ordem de Liberion tinha chegado até o interiorzão. A outra metade do que eu sabia vinha das cartas da Allusia. Toda vez que eu recebia aquele calhamaço de papel, ficava me perguntando onde ela arranjava tempo pra escrever tanto. Afinal, ela era a comandante da ordem.
Como era uma organização extremamente importante pro país, sua comandante precisava ter habilidades excepcionais, ser popular e ter caráter à altura da posição. Será que a Allusia era uma mulher digna de uma reputação tão heróica assim?
— Então, hum, sobre o que o Mordea comentou... — disse Allusia, talvez lendo a intenção dos meus resmungos anteriores.
— Aaah, ele só tava brincando. Não se preocupa com isso. — Mordea era o nome do meu pai. Ele já tinha passado dos sessenta, mas ainda era bem ativo, tanto fisicamente quanto mentalmente. Embora, de vez em quando, reclamasse das costas.
A viagem até a capital era até que longa — a carruagem levava meio dia só pra chegar lá. Mesmo sendo um dia de folga no dojô, eu não podia simplesmente sair de casa por tanto tempo sem avisar, então expliquei a situação pro meu pai. Não havia razão pra mentir, então a Allusia me acompanhou pra conversarmos sobre os detalhes, mas...
— Ha ha ha ha! Pois não é uma honra?! Vai arrumar uma esposa na cidade enquanto estiver por lá. Que tal essa belezura aí do seu lado?
Foi o que ele disse. Ele realmente não tinha noção nenhuma de tato. Até hoje eu fico impressionado com o fato de que ele conseguiu conquistar a minha mãe com esse senso de humor. Eu sabia que ele se preocupava comigo estar solteirão nessa idade, mas tentar me empurrar pra Allusia era meio forçado. Em termos de aparência, status e habilidade, ela me superava em tudo.
— Entendo... Ele só estava brincando? Eu não... — murmurou Allusia.
— Hm? Disse alguma coisa?
— Não. Não liga pra mim.
— É mesmo? Sério, desculpa pelo meu velho.
Depois de me desculpar pelo comportamento vergonhoso da família, voltei a olhar pra paisagem. Não que eu fosse justificar o que meu pai disse, mas essa era uma viagem rara pra Baltrain. Provavelmente não tinha problema eu relaxar um pouco.
Deixando de lado encontros românticos predestinados ou coisa do tipo, talvez fosse bom comprar um souvenir pros meus pais. E aproveitando, não seria má ideia adquirir uma boa espada. Hoje em dia, eu só empunhava espada durante os treinos, mas ainda assim era ideal ter uma arma de qualidade. Eu também não tinha nenhum outro hobby, e sendo um tiozão de quarenta e poucos anos que viveu só pra espada, não tinha ninguém além da família pra presentear. Dá pra dizer que eu não tinha por que gastar dinheiro com mais nada — não havia sentido em guardar mais dinheiro no bolso do que o necessário.
— Ah, sim. O que vamos fazer quando chegarmos à capital? — perguntei.
— Primeiro, vou te apresentar aos membros da ordem. Depois, vamos definir sua agenda de aulas. E, se der tempo, gostaria que assistisse um pouco do nosso treinamento.
— Entendido. Meu velho vai encher o saco por causa dessa visita, então se der tempo, eu queria comprar um pre—
Ela me cortou. — Vamos resolver esses detalhes assim que chegarmos. Eu te levo até as lojas.
— C-Claro. — Parecia que ela respondia minhas perguntas antes mesmo de eu fazê-las. Meio assustador...
Eu estava um pouco nervoso com a chance de ver o treinamento dos cavaleiros tão cedo, mas não dava pra ter ideia da habilidade deles sem ver com os próprios olhos. O tempo não para, e também não dá pra voltar atrás. Deixando os problemas futuros pro "eu do futuro", decidi me concentrar nas partes boas.
Era uma oportunidade rara de estar acompanhado de uma beldade daquelas, praticamente desperdiçada comigo. Sendo bem honesto, havia umas pequenas — ou melhor, enormes — suspeitas de que tinha algo estranho rolando, já que eu ainda não tava convencido de que realmente merecia o cargo de instrutor especial. Mas, de qualquer forma, ela era minha ex-aluna fofa.
— Falando em souvenirs, o Mordea gosta de alguma coisa em especial? — perguntou Allusia.
— Sim. Apesar da idade, meu velho adora um pãozinho cozido no vapor, então...
E assim, até a carruagem chegar em Baltrain, me deixei levar por uma conversa fiada com a Allusia.
◇
— O senhor Beryl Gardinant irá colaborar conosco como instrutor especial da ordem. Espero que todos se dediquem ainda mais nos treinamentos a partir de agora.
A voz firme que ouvi ao meu lado vinha de Allusia Sitrus. Diferente de quando estávamos conversando há poucos instantes, seu tom agora era autoritário e carregado. Era isso que chamavam de voz formal? Seria difícil pra mim imitar.
Havia dezenas — talvez mais de uma centena — de membros da ordem reunidos diante de mim. Todos vestiam conjuntos idênticos de reluzentes armaduras de placas prateadas, emanando uma presença incrivelmente opressora. Os cavaleiros eram compostos por homens e mulheres de diversas idades, mas, à primeira vista, nenhum parecia ser tão velho quanto eu. Fazia sentido. Seria difícil continuar como cavaleiro depois dos quarenta, quando o corpo começava a se deteriorar de verdade. Eu também preferiria passar os dias à toa no interior, e não na linha de frente dos conflitos.
— O Sr. Gardinant é forte demais para que eu sequer seja considerada uma oponente à altura. Foquem toda a energia de vocês no treinamento.
Aquilo foi um pouco demais, mas eu não queria chamar atenção à toa me intrometendo. Já estava exposto ao olhar de todos ali — intervir teria sido exagero demais.
Mesmo entre todos os meus alunos, Allusia sempre foi excepcionalmente talentosa e aprendeu muito rápido. Foi por isso que a reconheci relativamente depressa, mesmo após tanto tempo sem vê-la. Ela tinha deixado uma impressão tão forte como pupila que era impossível esquecê-la, embora eu tivesse certeza de que agora ela já me superava.
— Mestre, se puder, diga algumas palavras aos cavaleiros.
Depois de me perder por alguns instantes em reminiscências, a conversa de repente se voltou para mim. Hã? Sério? Eu não tinha preparado nenhum tipo de discurso. Se Allusia esperava que eu falasse algo, teria sido bom me avisar antes.
Não que eu pudesse reclamar de nada naquele momento. Então, fiz exatamente o que Allusia pediu. De algum jeito, evitei os olhares todos direcionados a mim e improvisei uma saudação.
— Uh... Como já ouviram, meu nome é Beryl Gardinant. Não sei o quanto minhas técnicas podem ser úteis a vocês, mas farei o possível para ajudar no que for necessário. Conto com todos.
Depois da minha fala, os olhares dos cavaleiros se intensificaram ainda mais. Hmm... Parece que oitenta por cento está desconfiado, e os outros vinte por cento estão esperançosos. Entre os olhares duvidosos, alguns chegavam até a ultrapassar o ceticismo e entrar no território da hostilidade.
Talvez fosse realmente um exagero terem me nomeado como um tal de instrutor especial... Esse velho aqui já estava começando a se preocupar. Embora, pensando bem, também parecia estranho que alguns ali estivessem realmente esperançosos. Vários daqueles olhares otimistas vinham de rostos vagamente familiares. Eu não tinha confiança suficiente para identificar cada um, então, considerando o clima tenso da sala, decidi não chamar ninguém. Provavelmente eram ex-alunos meus, mas seria embaraçoso se eu estivesse enganado.
Desde minha chegada em Baltrain, até a ida ao escritório da Ordem de Liberion e a minha apresentação diante de todos, tudo tinha ocorrido tranquilamente até então. Havia quatro ou cinco cavaleiros de guarda na entrada do prédio, mas como Allusia era a comandante dos cavaleiros, foi reconhecida de imediato e deixada passar. Por algum motivo, isso também se estendeu a mim, e me deixaram entrar sem fazer perguntas. A comandante dos cavaleiros realmente era impressionante.
A gente não tinha dado nenhuma volta pela capital depois da chegada — fomos direto para o escritório da ordem — mas só de observar as ruas no caminho, já dava pra perceber o quanto o lugar era próspero. Havia bastante movimento de pedestres nas ruas largas e bem pavimentadas, o que me deu uma boa ideia da vitalidade da cidade. Deixamos a carruagem estacionada em um ponto que parecia ser específico pra isso, e ali perto, vi o que pareciam ser lojas de lembrancinhas. O plano era que Allusia me levasse até lá depois.
Era óbvio que aquele ambiente era completamente diferente de Beaden. Era até ridículo comparar uma vila no meio do nada com a capital, mas não consegui evitar.
Allusia voltou a falar, e minha mente retornou à sala cheia de cavaleiros.
— Vamos organizar a programação de treinamento — anunciou. — Todos, retornem aos seus postos.
Com isso, aparentemente, a reunião tinha acabado. Eu já estava inquieto com todos aqueles olhares em cima de mim, então fiquei aliviado que tivesse terminado rápido.
— Mestre, vamos? — disse Allusia, num tom de voz subitamente mais suave.
— Aah, uhum.
Pelo visto, ela não sentia mais necessidade de manter a voz formal. Havia uma certa imponência nela, que lhe caía muito bem. Ela realmente tinha se tornado uma mulher impressionante.
— C-Comandante! Um instante, por favor!
Bem quando achei que já íamos sair daquele lugar — que parecia uma espécie de praça central — uma das cavaleiras correu até nós, toda apressada.
— Kewlny, com calma. Um cavaleiro deve sempre manter a compostura.
A cavaleira chamada Kewlny respondeu com um enérgico “Sim, senhora!” antes de se virar para mim. Tinha um cabelo castanho-claro deslumbrante, cortado em um bob curto, e passava uma impressão extremamente animada. Pelo visual, parecia alguns anos mais nova que Allusia. Seus olhos eram azuis — grandes e fofos, o que a fazia parecer ainda mais jovem e cheia de energia. Também era bem mais baixa que Allusia. Francamente, dava pra dizer que ela era pequena. No geral, ela passava a impressão de uma cachorrinha alegre. Essa imagem ficou marcada na minha memória.
— Kewlny? Fico feliz em ver que está bem.
— Sim! Quanto tempo, Mestre!
Essa garota — Kewlny Crucielle — também era uma ex-aluna do nosso dojo. Ela só tinha passado dois anos lá, ainda menos tempo que Allusia, mas sua energia e simpatia ficaram tão fortes na minha memória que era impossível esquecê-la.
Eu não tinha lhe dado uma espada como presente de despedida. Ela tinha talento com a espada, mas dois anos não foram o suficiente para que eu lhe ensinasse tudo. Porém, sendo agora o instrutor da ordem, provavelmente teria a oportunidade de treiná-la pessoalmente de novo. Se possível, queria acompanhar seu progresso até o ponto em que pudesse entregar a espada que não dei naquela época.
— Então se tornou uma cavaleira exemplar. Estou orgulhoso de você.
— N-Nem tanto! — respondeu, nervosa. — Ainda tenho um looongo caminho pela frente!
A paixão de Kewlny por entrar na ordem era ainda mais evidente que a da Allusia. Eu me lembrava nitidamente dela gritando “Eu vou entrar pra Ordem de Liberion, me aguarde!” enquanto se dedicava intensamente aos treinos. No fim, seu sonho se realizou. Não poderia pedir mais que isso.
Depois que a elogiei com sinceridade, ela começou a agitar os braços, toda atrapalhada. A imagem de um rabinho invisível balançando animado veio à minha mente com total nitidez. Sim. Uma cachorrinha. A Kewlny realmente era um bálsamo pro coração.
— Kewlny, temos assuntos a tratar. Volte ao seu posto.
Ah, a Allusia voltou a usar aquela voz formal. Ela até que tinha um ponto... mas o nosso “assunto” era sair por aí procurando lembrancinhas. Esse velho aqui só queria se livrar das obrigações logo pra poder aproveitar um pouco do passeio.
— Ah, desculpa... Mestre! O senhor vai ter um tempinho mais tarde? — perguntou Kewlny.
— Hm? Vamos ver... Se der, gostaria de dar uma volta pela cidade — respondi.
— E-Então! Eu posso ir jun—
— Eu vou acompanhá-lo — disse Allusia, cortando ela sem dó nem piedade. — Kewlny, volte para seus deveres, agora.
Por que você sempre tem que responder antes da pessoa terminar de falar?! A Kewlny ficou toda encolhida! Parecia um filhotinho molhado na chuva!
Preferi guardar esses pensamentos pra mim e oferecer algumas palavras de consolo.
— Aaah... Kewlny, é assim mesmo, então...
Eu nem sei se é assim mesmo... mas, fazer o quê? A pressão da Allusia era pesada demais. Parecia que não ia rolar mesmo de nós três fazermos compras juntos.
— Erk, tá bom... — A cabeça da Kewlny caiu, desanimada, por um instante, mas logo ela voltou ao normal, cheia de energia. — Mestre! Baltrain é um lugar incrível, então aproveite bastante!
— É, valeu. — A rapidez com que ela se recuperou era igualzinha quando ela treinava no nosso dojo.
— Então vamos, Mestre — disse Allusia.
— C-Certo. Até mais, Kewlny.
Depois de me despedir da minha ex-aluna em miniatura, Allusia me conduziu para fora do escritório da ordem. O distrito central de Baltrain, onde ficava o escritório, concentrava muitos prédios do governo. Hoje não ia dar pra andar com calma por ali, mas eu ainda queria fazer isso um dia com mais tranquilidade.
Pouco depois de sairmos, nós dois chegamos a uma fileira de lojas de lembrancinhas perto do ponto de carruagens.
— Essa loja vende doces e afins — explicou ela. — É bem popular entre o pessoal da ordem também.
— Hmm, doces? Nada mal.
Mesmo assim, eu ainda me sentia meio mal com a Kewlny. Se sobrasse tempo mais tarde, talvez fosse legal levá-la pra um passeio pela cidade. Embora... essa ideia meio que me dava a imagem de estar passeando com um cachorro...
— Essa é a Allusia mesmo... Estamos chamando atenção pra caramba — comentei.
— A Ordem de Liberion é muito respeitada entre o povo — respondeu ela, sem demonstrar nenhum sinal de desconforto.
Dava pra ver que ela estava agindo como sempre — no bom sentido. A caminhada do escritório até as lojas nem tinha sido tão longa assim, mas a beleza e a popularidade dela se destacavam demais em Baltrain. Muita gente parava pra olhar enquanto passávamos. Claro, a maioria desses olhares era cheia de respeito ou admiração, mas alguns estavam carregados de curiosidade.
— Aliás, não é meio estranho andar por aí com um cara como eu? — perguntei.
— De jeito nenhum. O senhor está pensando demais, Mestre.
A maior parte da curiosidade estava direcionada a mim. E eu entendia o porquê — a famosa comandante dos Cavaleiros de Liberion andando ao lado de um velho qualquer. Era óbvio que isso chamaria atenção. Ninguém veio puxar conversa, mas eu sentia vários olhares curiosos sobre nós, mesmo enquanto dávamos uma olhada nas lojas.
— Isso aqui tá quase virando um encon—
— Hm? Disse alguma coisa? — perguntei.
— Não. Nada, não. Ah, e que tal isso aqui? — Allusia apontou para alguns doces assados. Pelo visto, eu imaginei ela resmungando ao meu lado.
— Vamos ver... Hm, parece gostoso, e deve durar um tempo.
Eram docinhos bem simpáticos, do tipo que meus pais com certeza iriam gostar. E o melhor: eram baratos. E vindo de uma recomendação da Allusia, era praticamente garantia de que estavam bons. Não que eu ligasse muito pra isso.
Com a escolha feita, chamei o atendente:
— Com licença! Vou querer dois desses aqui.
— Na hora! Obrigado pela preferência! — disse ele com empolgação, empacotando os doces rapidinho enquanto lançava olhares furtivos pra mim e pra Allusia.
Como eu pensei... uma beleza como a dela não combina nada com um velho feito eu.
Depois de pagar e sem saber muito bem o que fazer em seguida, pensei em procurar alguma espada ou coisa do tipo. Já que estávamos ali, né? Mas então, de repente, ouvimos uma voz atrás de nós...
— Quem diria, a grande comandante da nação fazendo compras com um homem. Que decadência.
A voz era absurdamente hostil. Allusia também ouviu, e os dois viramos ao mesmo tempo.
— Lysandra... — murmurou Allusia. — O que você quer?
— Ah, nada demais. Só estava pensando no tanto de tempo livre que você deve ter — respondeu a tal Lysandra, com um tom altivo. Ela continuava encarando Allusia, e tanto o tom quanto a expressão eram puramente de desprezo.
Olhei bem pra ela. Era mais alta que a Allusia — na verdade, tinha quase a minha altura, o que era bem alto pra uma mulher. Os cabelos escarlates, cortados na altura dos ombros, pareciam chamas. Os olhos vermelhos brilhavam com a mesma intensidade de um fogo aceso. Sua beleza era a de alguém com um espírito indomável. Pra ser direto, ela era tipo um homem bonito com peitos.
Na cintura, carregava duas bainhas largas — provavelmente de espadas largas. Então ela era adepta de um estilo com duas espadas? Isso era bem raro. A armadura no peito era bem prática, nada muito ornamentado como as armaduras dos Cavaleiros de Liberion, mas passava a imagem de uma verdadeira guerreira. No peito, exibia uma placa preta que indicava sua patente.
No continente de Galea, existia uma ocupação conhecida como "aventureiros". As pessoas que faziam disso sua profissão estavam sob a jurisdição de uma organização chamada guilda dos aventureiros, que atravessava fronteiras e abrangia uma gama ainda mais ampla de atividades do que as ordens de cavaleiros. Desde recados para o povo comum até escoltar mercadores, exterminar monstros, investigar ruínas e masmorras, ou até mesmo partir em missões por terras desconhecidas, os aventureiros viajavam por todo o mundo, sem se prender ao conceito de identidade nacional. Ser um aventureiro estava entre os empregos dos sonhos mais desejados do mundo.
No entanto, nem todos conseguiam perseguir esse sonho. A guilda atribuía patentes com base nas habilidades do aventureiro. Basicamente, era impossível aceitar uma missão de patente superior à sua. Isso servia para evitar que as pessoas acabassem gravemente feridas — ou até mortas — ao tentar algo além de suas capacidades. A única maneira de subir de patente era do jeito lento e constante: concluindo trabalhos e passando em um exame de promoção aplicado pela própria guilda.
Da mais baixa à mais alta, as patentes eram: branca, bronze, prata, ouro, platina, oceano e preta. Lancei outro olhar para a plaqueta da mulher e meus olhos se arregalaram. Preta! Sério?! Placa preta! Era a primeira vez que eu via alguém com essa patente pessoalmente. Lysandra era absurdamente forte.
Aventureiros já haviam passado por Beaden antes, mas a maior patente que já tínhamos visto aqui no fim do mundo era a ouro. Havia pouquíssimos aventureiros de patente oceano ou superior, e eles geralmente viajavam o mundo todo lidando com os trabalhos mais difíceis. Encontrar um por acaso era praticamente impossível.
— Pode parar de tentar encontrar defeitos em mim? — disse Allusia. — Cumpro corretamente meus deveres profissionais.
— Hmph. Sei... É que você não vê nada do mundo quando fica trancada o tempo todo na capital, sabia?
A conversa entre as duas continuava esquentando, completamente me ignorando. Ao que parecia, essa tal de Lysandra não via Allusia — ou melhor, a ordem como um todo — com bons olhos. Eu não fazia ideia do porquê, mas sinceramente, merecia um pouco de empatia por estar preso entre o que provavelmente eram duas das espadachins mais fortes do mundo. A pressão que elas emanavam não era brincadeira.
— Não temos tempo pra ficar de papo aqui. Mestre, vamos — disse Allusia. Ela claramente não estava a fim de aturar mais aquilo e provavelmente queria encerrar a conversa logo.
— C-Claro — respondi. Também não curtia muito ser encarado por uma aventureira de patente preta, então obedeci na hora.
— Hmph, parece até que você pescou esse homem da rua. Por que tá chamando ele de mes...tre?
Foi a primeira vez, desde que ela apareceu, que Lysandra olhou direto nos meus olhos. O olhar afiado que ela lançava na nossa direção de repente virou confusão e perplexidade.
Hã? Quê? Eu fiz alguma coisa? Tenho quase certeza de que não. Eu só tava ali pra comprar uns pãezinhos. Não tinha motivo pra fazer cara feia pra mim.
— Hã? Uhm... Mestre... Beryl...?
— O quê?
Pera aí. Eu não conhecia nenhum bonitão com peitos.
No impulso do momento, gaguejei:
— V-Você deve estar me confundindo...
Na mesma hora percebi que não era a melhor coisa a se dizer — era bem rude acusar alguém de estar confundida quando a pessoa te olha nos olhos e te chama pelo nome.
— N-Não! De jeito nenhum eu te confundiria com outra pessoa! — insistiu Lysandra, correndo até mim.
Eita. Droga. Eu realmente não me lembrava dela. Já que ela me chamou de “Mestre”, devia ter estudado com alguém, mas não me recordava de ter ensinado esgrima a uma mulher tão... cheia de vida. Ela devia, com certeza, estar enganada. Beryl era um nome até comum, então devia estar pensando em outra pessoa.
Mais importante que isso: estar tão perto de alguém com a patente mais alta era intimidante demais. O rosto dela se aproximava. Minhas pernas quase fraquejaram.
— Desculpa, mas não me lembro de ninguém como você — disse.
— N-Não pode ser... Você não se lembra de mim...? — perguntou Lysandra, os olhos antes confusos agora tingidos com um leve tom de desespero.
Não que eu pudesse fazer muita coisa com ela me olhando daquele jeito — eu simplesmente não tinha nenhuma lembrança dela.
— Já se passaram vinte anos... Mas mesmo assim...! — murmurou Lysandra, curvando os ombros.
Vinte anos... Isso era bastante tempo. Foi mais ou menos na época em que fui promovido a instrutor no dojô, então devia ter sido outra pessoa quem ensinou ela. Afinal, naquela época eu tava tão focado em dar conta da nova função que nem dava pra lembrar de tudo.
Enquanto eu me perdia nessas memórias, Lysandra segurou firme meus ombros.
— Mestre, sou eu — disse ela, a voz baixa, mas o rosto visivelmente desesperado. — Selna Lysandra. Você se lembra de ter resgatado uma garotinha toda esfarrapada há muito tempo e ensinado ela a usar a espada?
— Hmm?
Uma garotinha esfarrapada...? Selna?
— Ah.
Era ela...? Será...?
De fato, aquilo tinha acontecido há mais ou menos vinte anos. Um dia, enquanto eu patrulhava pela vila, encontrei uma garotinha toda ferida, arrastando a perna enquanto se arrastava em direção à vila. Não havia nenhum adulto por perto. Julgando que aquilo não era uma situação comum, levei-a comigo, e como não havia nenhum responsável para contatar, acabamos criando ela por um tempo.
Nosso dojô já tinha treinado muitos alunos na época do meu pai, então tínhamos uma certa folga nas despesas. Criar uma criança não foi problema. Além disso, não era como se a gente pudesse simplesmente deixá-la lá, e como eu não tinha filhos, meus pais acabaram se apegando bastante a ela.
Eu tinha imaginado que ela fosse filha de algum comerciante ou viajante. Os ferimentos que ela havia sofrido não tinham vindo de uma briguinha ou algo assim — eram feridas causadas por monstros ou feras selvagens. Naquela época, embora isso não fosse exatamente comum, também não era algo raro — especialmente no interior.
A garota estava com o espírito completamente abatido, então, pra distraí-la um pouco, acabei colocando ela junto das outras crianças no dojô, pra participar das aulas. Ela era tão quietinha. Quando perguntei o nome dela, tudo que respondeu foi “Selna”.
Ainda assim, ela se interessou pela espada e se dedicou de corpo e alma aos meus ensinamentos. Eu nem tinha a intenção de treiná-la de verdade no início, mas como ela tinha perdido os pais, não tinha mais nada a que se agarrar. Ver ela se jogando com tanta paixão naquilo, como se quisesse se livrar das mágoas do passado, realmente me emocionou.
Ela ficou sob meus cuidados por uns três anos. Durante uma viagem à capital, meu pai conversou com uma organização que lidava com casos como o dela. Depois que ela deixou o dojô, eu fiquei torcendo pra que tivesse sido adotada e pudesse ter uma boa vida.
Tudo isso aconteceu bem antes da Allusia começar a frequentar nosso dojô.
— Você é... aquela Selna? — perguntei.
— Sim! A mesma Selna que você acolheu e ensinou a manejar a espada! — respondeu ela, com o rosto se iluminando de uma hora pra outra.
Sério? Não dá pra saber mesmo como as coisas vão se desenrolar nesse mundo, né?
— Nossa, eu realmente não te reconheci — falei. — Desde que cheguei aqui, encontrei alguns dos meus antigos pupilos, incluindo a Allusia, mas você tá completamente irreconhecível.
Achei que ela estaria levando uma vida simples na capital. Jamais imaginei que se tornaria uma aventureira que viajava o mundo todo. Foi um choque pra esse velho aqui. Além do mais, quando criança, ela era tão quietinha. Parecia mais o tipo que combinava com um jardim florido do que com uma vida de batalhas. Foi realmente surpreendente vê-la agora, parecendo mais uma leoa feroz.
— Eu queria visitar Beaden e te dar notícias, mas depois que comecei a trabalhar como aventureira, nunca surgiu uma oportunidade... — disse Selna. — Nunca imaginei que a gente se reencontraria assim.
— Não se preocupe com isso — respondi. — Fico só feliz de ver que você está bem.
A pressão que a Selna exalava continuava intensa como sempre, mas saber quem ela era me deu firmeza o bastante pra lidar com aquilo. Embora, sinceramente, eu já estivesse torcendo pra ela soltar meus ombros.
— Mas afinal, o que você tá fazendo em Baltrain, Mestre? — perguntou Selna.
— Aah, sobre i—
— Lysandra — cortou Allusia. — A partir de hoje, Mestre Beryl foi nomeado instrutor especial da Ordem de Liberion. Ele está escalado para ajudar no treinamento da ordem. Sendo assim, solte-o imediatamente.
Allusia! Por que você tem que ficar interrompendo e respondendo pelas pessoas?! Bom, pelo menos a explicação estava certa, então essa parte tudo bem... mas mesmo assim...
—Mestre Beryl... treinando a Ordem de Liberion...?
—Isso mesmo. Inclusive tenho uma carta de nomeação com o selo real — disse Allusia.
Ai! Ai! Ai! Selna apertou ainda mais meus ombros. A força dela era fora do normal, digna de sua reputação como aventureira de ranking negro. Eu realmente queria que ela me soltasse.
Graças à Selna, a loja de souvenirs tinha sido subitamente tomada por uma atmosfera perigosa. Minhas condolências ao lojista. Não era como se fosse minha culpa, mas eu sentia que precisava me desculpar mesmo assim.
Selna deu uma olhada na carta. — Tch. Selo real? Parece que não é falsa, então.
—O que eu ganharia mentindo sobre isso?
—S-Selna, pode me soltar? — pedi.
Daquele jeito, as coisas iam piorar... de várias formas. Quer dizer, já fazia um tempinho que a Selna estava absurdamente perto de mim. Ela tinha uma beleza andrógina, mas do ponto de vista do meu estado mental, eu era um animalzinho encarado por um monstro feroz.
—A-Ah. Me perdoe, Mestre. Eu não estava pensando — disse Selna, finalmente me soltando.
Bom, acho que reencontrar alguém depois de tantos anos e ser esquecido deve ser um choque bem grande. Ainda assim, falando de forma direta, ela tinha mudado demais. Ter reconhecido ela de primeira seria o mais estranho, na verdade.
—Mestre, agora que está na capital, por favor, faça uma visita à guilda dos aventureiros também — disse Selna. — Posso te ajudar com várias coisas. Se quiser, posso até te guiar até lá.
Allusia balançou a cabeça. — Não. Ele vai andar pela cidade comigo depois disso, então não tem espaço pra você se meter, Lysandra.
—O quê? Você já nomeou ele como esse tal de instrutor especial ou lá o que for. Vai poder ver ele bastante depois de hoje. Eu, por outro lado, acabei de reencontrá-lo depois de tantos anos, então o papel de acompanhante deveria ser meu.
—Não. Já faz tempo que ele veio à capital, então não conhece o local. Faz muito mais sentido a ordem, que atua diretamente daqui, ser a responsável por guiá-lo.
Por algum motivo, Allusia e Selna começaram a discutir sem nem parar pra respirar.
Alguém me salva.
◇
—De qualquer forma, fiquei surpreso que você virou uma aventureira — eu disse.
—Hee hee, eu também me surpreendi — respondeu Selna. — Meus pais atuais me tratam bem, mas percebi há um tempo que precisava colocar em prática as técnicas de espada que você me ensinou.
—Lysandra, você tá perto demais — cortou Allusia.
—Olha quem fala — retrucou Selna. — Você é quem não desgruda dele.
—A-Ah, calma, calma — murmurei. — Nada de brigas.
Allusia estava à minha direita e Selna à esquerda. A maioria chamaria isso de "ter uma flor em cada mão", mas eu me sentia mais como um animalzinho acuado entre duas feras selvagens. A pressão vinda dos dois lados era intensa.
Estávamos andando juntos agora. Depois que saímos da loja de souvenirs, mencionei que queria procurar uma espada — o que levou Allusia e Selna a discutirem sobre quem me apresentaria ao melhor ferreiro.
Na verdade, eu estava feliz de rever Selna depois de tanto tempo. Por isso, não consegui me forçar a me despedir dela imediatamente. Ao contrário dos cavaleiros que ficam estacionados na capital, é raro encontrar uma aventureira que viaja (literalmente) o mundo todo. Ainda mais uma de ranking negro. Pelo visto, Selna havia terminado uma missão em terras distantes e retornado a Baltrain, estando com tempo livre hoje. Acabei perguntando se queria nos acompanhar.
Ficar discutindo sobre quem deveria ser meu guia era perda de tempo. Eu também queria voltar pra Beaden ainda hoje, então tempo era precioso. Mas, tão focado em acalmar os ânimos, deixei passar um detalhe importante.
—As pessoas estão mesmo encarando... — murmurou Selna, ajeitando os cabelos vermelhos. — Bom, acho que faz sentido.
Pois é, esse era o problema. Fui eu quem sugeriu que fôssemos todos juntos, então só podia culpar a mim mesmo por essa imprudência.
—Não consigo me acostumar com esses olhares... — murmurei.
—Mestre, um dia, todos esses olhares serão direcionados só a você — disse Allusia.
Selna assentiu. — Apesar de me incomodar, concordo com Sitrus. Quando sua fama como instrutor se espalhar, esse tipo de atenção vai te seguir por todo lugar.
—Ha ha ha...
O jeito como me colocavam num pedestal era insano. “Grande instrutor”? Que piada. Eu não era nada demais, só um caipira chato do interior. Provavelmente essas duas nem iam me ouvir se eu dissesse isso.
Olhei em volta, discretamente. Só vi olhos. Olhos e mais olhos voltados pra nós. A comandante dos cavaleiros da Ordem de Liberion e uma aventureira de ranking negro — ambas com habilidades e aparências de ponta — andando com um velhote. Claro que isso chamaria atenção.
Dava pra ouvir o pessoal cochichando: “É a Comandante Allusia,” “Aquela ali não é a Lâmina Gêmea Lysandra?” e “Quem é aquele velho no meio delas?” Era um pouco demais.
Selna tinha um apelido absurdo também. Lâmina Gêmea? Que da hora. Como esperado, ela realmente lutava com duas espadas. Eu não tinha ensinado nada disso a ela, então a força atual dela não tinha nada a ver com meu treinamento, né?
—O ferreiro que vou te apresentar é fornecedor oficial da ordem — disse Allusia. — Todas as obras dele têm altíssima qualidade, então adquirimos praticamente todo o nosso equipamento com ele.
—H-Hmm. Tô ansioso pra conhecer.
Enquanto eu aguentava os olhares curiosos dos passantes, aparentemente já tínhamos chegado no ferreiro recomendado por Allusia. Com a mente tão ocupada, nem consegui lembrar o caminho que fizemos até aqui. Será que tava tudo bem?
—Oooh, se não é a senhorita Sitrus.
— Bom dia. Gostaria de dar uma olhada em algumas espadas.
— Mas é claro, claro.
Um ferreiro musculoso e simpático espiou da oficina nos fundos, acompanhado de alguém que parecia ser seu aprendiz.
— Ah, sim, conseguimos um minério de ótima qualidade recentemente — disse o ferreiro.
— Entendo. Então, como foi oferecido anteriormente, a ordem gostaria que esse minério fosse usado na forja de nossos equipamentos.
Ser fornecedor dos cavaleiros não era mentira. Allusia e o ferreiro começaram a conversar animadamente sobre alguma coisa. Notei também que ele não parecia curioso sobre o motivo de estarmos nós três juntos ali. Talvez ele já estivesse acostumado a receber visitas de figurões. De todo modo, agradeci por isso. Olhares curiosos e julgadores eram difíceis de aguentar para um velho como eu.
— Hmm... Essa lâmina é impressionante. — Peguei uma das espadas expostas na loja. Era pesada na mão, mas muito bem equilibrada, o que tornava o peso agradável de manejar. Também era absurdamente afiada. A habilidade artesanal estava à altura dos elogios de Allusia ao trabalho do ferreiro.
— Mestre, vejo que ainda prefere uma espada longa — comentou Selna, observando enquanto eu encarava a lâmina na minha mão.
— É. — Levantei a espada. — É adequada para ensinar e, acima de tudo, fácil de manusear.
No fundo, eu era um sujeito bruto, então houve um tempo em que admirava aquelas espadas enormes de duas mãos, como as bastardas, ou o estilo de duas lâminas que Selna usava. Mas mesmo tendo testado cada estilo, no fim das contas, me firmei na espada longa. O equilíbrio e o comprimento da lâmina eram perfeitos pra mim. E as habilidades necessárias para manejá-la eram versáteis — em outras palavras, quando você aprende a usar uma espada longa, consegue aplicar esse conhecimento em praticamente qualquer outro tipo de espada.
O ferreiro terminou sua conversa com Allusia e então se voltou para mim.
— Gostaria de testar o fio?
Hmm, um golpe de teste, hein? Segurar uma boa lâmina realmente dava vontade de testá-la. Esse ferreiro entendia os sentimentos de um espadachim. E o timing dele foi perfeito — um ótimo comerciante.
— Posso dar uma golpeada aqui mesmo na loja? — perguntei. — Se sim, aceito a gentileza.
— Sim, temos um espaço para isso nos fundos. Por aqui, por favor.
Dada a oportunidade, queria mesmo testá-la, então deixei o ferreiro me levar. Fomos até a parte de trás do prédio.
— A esgrima do Mestre Beryl... — murmurou Allusia. — Faz tempo que não a vejo.
— Digo o mesmo — concordou Selna.
As duas nos seguiram como se fosse a coisa mais natural do mundo.
Por favor, não façam isso. Eu realmente não quero ter minha esgrima avaliada pela comandante dos cavaleiros da Ordem de Liberion e por uma aventureira de ranking negro...
Não que eu pudesse dizer isso em voz alta. Estava com medo demais.
O ferreiro me levou até uma área ampla nos fundos, onde vários postes de palha estavam enfileirados. Provavelmente ele também testava suas próprias espadas ali, uma vez que ficavam prontas.
— Ali está — disse ele, apontando. — Fique à vontade.
— Obrigado. Então vamos lá...
Concentre-se.
Segurei a espada reta à minha frente, encarando o poste de palha. O fio de uma espada era proporcional à força de vontade do espadachim.
Mais fino. Mais fino. Afine meu espírito ao limite.
Esperei que as ondulações na minha mente se acalmassem completamente.
— Shah!
Meu espírito afiado como uma lâmina percorreu a espada, que atravessou o poste como uma faca de cozinha passando por tofu. A metade superior do poste caiu no chão sem oferecer a menor resistência.
Hmm, nada mal!
Ter uma espada bem feita era mesmo algo maravilhoso. O retorno que senti foi de outro nível, e o peso era ideal pra mim. Mesmo com só um golpe, fiquei satisfeito. Considerei até comprar a espada ali mesmo.
— Como sempre, Mestre.
— Que incrível. Pensar que você é tão bom assim.
Ah, eu tinha esquecido que as duas estavam comigo. Bom, o objetivo da concentração era justamente esse: esquecer o que está ao redor e focar na espada. Nem percebi que estavam me observando, mas agora já era.
— Digo, qualquer um com um mínimo de interesse por esgrima consegue fazer isso, né? — falei.
Essas duas realmente me elogiavam demais. Tudo o que fiz foi cortar um simples poste de palha. Não diria que qualquer um que já tenha balançado uma espada conseguiria... mas ainda assim, era algo simples pra quem tem um pouco de talento. Felizmente, eu tinha esse “pouco” de talento — e devia isso ao meu pai.
— Qualquer um pode cortar um poste de palha, sim — disse Allusia. — Mas fazer isso com tanta limpeza...
Selna assentiu.
— Como Sitrus disse. Não me lembro de já ter visto um corte tão perfeitamente limpo.
— Ah, qual é — vocês estão exagerando demais.
Os elogios exagerados me deixaram envergonhado. Consegui me concentrar bem hoje, então, mesmo pelos meus padrões, o golpe foi bom. Mas, sinceramente, ainda não conseguia ver tudo aquilo que elas diziam.
— Haaah... — Allusia pareceu decidir que discutir comigo não ia levar a lugar nenhum, então se virou para o ferreiro. — E você, senhor? O que achou da esgrima dele?
Agora que parava pra pensar, ele também estava assistindo. Olhei em sua direção. O dito ferreiro estava me encarando, os olhos desfocados e a boca entreaberta. Ele tava bem? Comecei a me preocupar.
— Aaah... — Depois de alguns segundos de silêncio, ele conseguiu soltar uma pergunta: — Você é um mestre espadachim famoso vindo de terras distantes?
Não, caramba! Já falei que sou só um velho caipira sem graça!
◇
— Certo então, Mestre. Até outro dia.
— Hmm. Obrigado por hoje, Allusia.
Tínhamos voltado ao ponto de parada de carroças em Baltrain. Depois de agradecer à comandante dos cavaleiros por ter me acompanhado o dia todo, subi em uma carroça.
Após visitar o ferreiro recomendado pela Allusia, a Selna queria me levar até um outro ferreiro que tinha ligações com a guilda dos aventureiros. Infelizmente, não havia tempo suficiente. Se eu ficasse até mais tarde, não conseguiria mais pegar uma carruagem de volta pra casa.
Mesmo que a ordem pública fosse relativamente boa nos arredores da capital, passar várias horas em uma estrada rural à noite ainda era um risco considerável. Normalmente, uma carruagem teria um escolta à noite. Mas se você economizasse essa taxa, podia acabar encontrando bandidos, animais selvagens ou, no pior dos casos, monstros. No interior, à noite, o perigo era real.
A carruagem até Beaden havia sido paga graças ao status da Allusia, mas ainda assim era caro demais bancar um escolta noturno. Não queria abusar dela, e gastar meu próprio dinheiro com isso ia esvaziar minha carteira, então decidi deixar pra lá.
A Selna estava relutante em se despedir, mas aparentemente tinha recebido uma convocação da guilda dos aventureiros — nos despedimos praticamente logo depois de eu testar a espada longa.
Lembrei das palavras dela na despedida.
— Sério, os administradores da guilda são uns carrascos... Mestre, preciso ir. Quando voltar pra capital, faça o favor de passar na guilda. Pretendo ficar por aqui um tempo.
— Beleza, pode deixar. Se cuida, Selna.
A guilda dos aventureiros, hein? Aquele lugar não tinha nada a ver comigo. Beaden era isolada demais pra acontecer algo que exigisse um pedido de aventureiros — quando apareciam umas feras ou monstros, meus alunos e eu resolvíamos. E ainda tínhamos meu pai, se fosse preciso.
Mas não me incomodaria em visitar a Selna. Além disso, era possível que algum dos meus alunos tivesse virado aventureiro também. Então considerei passar pela guilda da próxima vez que fosse à capital.
— Certo, conto com você — disse ao cocheiro.
— Igualmente — respondeu ele. — A estrada é meio longa. Pode relaxar.
Me recostei no assento. Ninguém pegava carruagem até o interior a essa hora, então na prática, essa aqui estava reservada só pra mim. Diferente da ida até a capital, não tinha outro passageiro pra fazer companhia, o que deixava tudo meio entediante. E como já estava escuro, nem dava pra observar a paisagem, como tinha feito durante o dia.
Diante disso, resolvi tirar um cochilo. Nessas horas, não tem jeito melhor de matar o tempo. Fechei os olhos. Parte por causa do cansaço de ter andado por tudo quanto é canto hoje, acabei pegando no sono na hora.
— Senhor. Senhor. Chegamos a Beaden.
— Mmm... — Acordei meio grogue, sacudido pelo ombro. Olhei pela janela e vi que o sol já tinha se posto completamente. — Aaah, já chegamos?
Uhum, dormi como uma pedra. Bom, tudo bem.
Virei pro cocheiro. — Desculpa por isso, e obrigado.
— Não foi nada. O senhor devia estar cansado. Se cuide.
Desci da carruagem, e mesmo tendo ficado fora por menos de um dia, bateu uma baita sensação de nostalgia. Só visitar a capital já era um baita evento pra mim, e ainda tive reencontros emocionantes, um atrás do outro, com a Allusia, a Kewlny e a Selna.
Isso com certeza era motivo pra comemorar, mas estar em uma cidade estranha e reencontrar pessoas depois de tanto tempo também era uma experiência mentalmente exaustiva.
— Certo, hora de ir pra casa e... Hm?
Beaden era no meio do nada. A essa hora, eram poucas as casas com as lâmpadas acesas. Todas as lojas já estavam fechadas, e no máximo dava pra ver alguma luz vinda de hospedarias. No entanto, depois de andar um pouco e chegar na minha casa, vi uma luz vindo do dojo.
— Isso é raro. Temos visita?
Ver uma luz acesa em casa até vai, mas no dojo, a essa hora, era bem incomum. Duvidava que meu velho tivesse ficado até tarde treinando com a espada ali. Curioso com o que estava acontecendo, fui direto pro dojo.
— Voltei — anunciei, deslizando a porta. — Tem alguém aí?
Esse dojo agora é meu, então não precisava fazer cerimônia.
— Yo — respondeu meu pai, com um aceno de cabeça. — Finalmente voltou.
Ao lado dele estavam algumas pessoas que eu definitivamente não esperava ver: um jovem e uma mulher de aparência tranquila, que segurava um bebê nos braços.
— Mestre! — gritou o jovem. — Quanto tempo!
— Olá. Obrigada por nos receber — disse a mulher.
— Ora, se não é o Randrid — respondi. — Faz tempo mesmo.
— Sim! Que bom ver que o senhor continua igualzinho, Mestre!
Deixando a mulher desconhecida de lado por enquanto, cumprimentei o jovem, que me retribuiu com entusiasmo. Ele tinha traços inteligentes e cabelo loiro curto. Embora não fosse musculoso, tinha um físico equilibrado, ideal pra empunhar uma espada. Ele — Randrid Patlocke — era um dos formados do nosso dojo.
Se não me falhava a memória, ele devia estar perto dos trinta agora. Seu jeito simpático combinava com sua expressão amigável, e ele também era bem habilidoso com a espada. A maioria dos alunos do dojo variava entre crianças e jovens adultos, então ele atuava como um dos veteranos.
Foi mais um dos que receberam uma espada de despedida minha. Depois de seis anos aprimorando as habilidades no dojo, ele foi pra Baltrain, dizendo que queria se tornar aventureiro. Não havia motivo aparente pra ele vir até Beaden de novo.
— E quem é essa ao seu lado? — perguntei.
— Permita-me apresentar — Randrid se virou para a mulher e o bebê. — Esta é minha esposa, Fanery, e meu filho, Jayne.
— Sou Fanery Patlocke — disse ela. — Ouvi dizer que meu marido é muito grato ao senhor.
— Prazer em conhecê-la. Sou o Beryl.
Fanery fez uma reverência. Sério? O Randrid casou? Ele já era adulto, claro, mas ainda era bem mais novo do que eu. Vê-lo casado — e ainda por cima com um filho — foi um baita choque.
— Enfim, o que te traz aqui hoje? — perguntei.
Tinha quase certeza de que ele não tinha vindo só pra apresentar a esposa e o filho. Se fosse só isso, teria nos visitado (ou avisado de outro jeito) quando se casou. Não conseguia entender por que ele veio à nossa vila justo agora.
— Bom, pra falar a verdade, desde que a Jayne nasceu, comecei a considerar me aposentar da vida de aventureiro — disse Randrid.
— Hmm... — assenti. — Entendo seu ponto de vista.
Randrid era um aventureiro de rank platina. Considerando o cenário geral dos aventureiros, isso o colocava acima da média. A opinião comum era que rank ouro já significava ser um aventureiro completo, e qualquer coisa além disso era sinal de talento ou sorte. Claro que só sorte não levava ninguém até o platina — alcançar esse nível era prova de muito esforço.
Sinceramente, achava meio desperdício ele largar tudo. Mas ser aventureiro era um trabalho perigoso. Um sonho, sim, mas sempre acompanhado de riscos. Em resumo, Randrid escolheu a família em vez das próprias ambições.
— É uma escolha sua. Não cabe a mim julgar. Só não se arrependa depois — aconselhei.
Randrid trocou um olhar rápido com a esposa e respondeu, animado:
— Claro que não!
Parecia mesmo que ele não tinha arrependimento nenhum. Que bom.
— E o que vai fazer agora? — perguntei.
— Sobre isso... tô pensando em me mudar pra cá, pra Beaden — respondeu Randrid. — Afinal, foi graças a você que cheguei tão longe. Vim hoje justamente pra dar meus cumprimentos.
— É mesmo?
Essa vila era no meio do nada, mas era um lugar ótimo pra criar uma família com tranquilidade. Tinha trabalho pra todo mundo, e a escassez de comida não era um problema por aqui.
— Ah, e ouvi uma coisa do grão-mestre — disse Randrid. — Você virou instrutor especial da Ordem de Liberion, né? Parabéns!
— S-Sério... Valeu. — Fiquei meio sem jeito — ser esse tal de instrutor especial ainda não parecia real pra mim.
Aliás, por grão-mestre ele se referia ao meu pai. De vez em quando, quando eu precisava sair por outros motivos, o velho ainda dava aulas no dojô. Ele já tinha me passado o comando do lugar, mas eu não via isso como intromissão nem nada. Na verdade, ajudava bastante. Eu odiava como ele não tinha tato nenhum pra falar da minha vida, mas no dojô ele mandava bem.
— Beryl, estava conversando com o Randrid enquanto esperava você voltar — disse meu pai.
— Hm? Sobre o quê?
Ele parecia estar se divertindo. Dava até uma impressão jovial. Mas sempre que o velho fazia essa cara, eu já sabia que vinha bomba. O que será que estavam tramando?
— Sobre o dojô — começou ele. — O Randrid vai cuidar dele.
— Hã?
O quê?
— Vai se instalar em Baltrain e cumprir seu dever.
— Hah?
O quê?
— E aproveita e não volta até arrumar uma esposa. Me dá um neto logo.
— Ah?
Quêêêê?!
— Quê?! Uh?! — gritei, chocado. — Que história é essa, velho?!
Mas a resposta do meu pai foi indiferente:
— Tem que perguntar? Acabei de explicar.
Ops. Esqueci que o bebê do Randrid tava ali também. Melhor não gritar muito. Mas ainda assim, como não ficar chocado com isso?! O que raios o velho tava falando?!
— Por favor, deixe o dojô comigo — disse Randrid. — Mesmo sem ser digno, vou fazer o meu melhor!
— Ah, é... bem, hmm...
Randrid já era carta fora do baralho. Provavelmente o velho já tinha convencido ele de tudo. Embora fosse meu ex-aluno, ele também se dava bem com o meu pai.
— É isso aí — disse meu velho. — Pode passar a noite aqui, mas amanhã mesmo vai pra capital cumprir sua missão.
— Eu posso passar a noite? Essa não é a minha casa também...? — murmurei, derrotado diante da atitude displicente do meu pai.
Eu o conhecia bem. Quando ele ficava assim, era impossível fazê-lo mudar de ideia. A opinião dele era inabalável. Sempre achei que o velho era meio sem noção, mas nunca imaginei que ele fosse me expulsar da própria casa.
Não queria aceitar essa decisão como se fosse algo decidido por outra pessoa, mas as coisas já tinham ido longe demais e não havia nada que eu pudesse fazer. Convencer meu pai? Missão impossível. Mas ainda assim... eu realmente, realmente não queria aceitar isso.
Enquanto tudo aquilo caía a ficha, percebi que precisava começar a arrumar minhas coisas. Felizmente, eu não tinha muito o que levar. Na verdade, com uma espada e dinheiro pra viajar, eu me virava. E agora eu era instrutor especial da ordem, então, por ora, não precisava me preocupar com o sustento.
Meu pai me encarou com intensidade:
— Tô esperando grandes coisas de você, Beryl.
— Prefiro nem perguntar o que exatamente você tá esperando...
De costas pra ele, saí do dojô desanimado, sem opção a não ser voltar pro meu quarto.
◇
— E foi isso que rolou. Cara, tô perdido.
— Que maravilh— digo, que terrível, né?
No dia seguinte, depois de ser educadamente expulso de casa e do dojô pelo meu pai, lá estava eu de novo diante da Allusia. Estávamos em uma sala da sede da ordem. As paredes eram brancas e só tinha uma mesa com cadeiras. Não era exatamente um lugar deprimente, mas longe de ser luxuoso. O fato de a ordem não esbanjar mostrava que era bem administrada. Não que eu achasse que a Allusia sairia desviando verba pra viver no luxo, de qualquer forma.
Eu havia voltado para Baltrain com minha espada, todos os meus pertences e uma boa quantia para cobrir despesas de viagem. Ainda bem que economizei um dinheiro decente. No fim das contas, foi uma boa ideia não ter comprado aquela espada ontem. Eu até tinha grana pra isso, mas aquela lâmina era bem cara e teria deixado minhas economias meio capengas no futuro. Só que, é claro, eu nunca teria imaginado que as coisas acabariam desse jeito.
— Preciso arrumar um lugar pra ficar primeiro — falei. — Desculpa, mas vou precisar contar com sua ajuda nessa.
— Tudo bem, eu não me importo...
Por causa da personalidade do meu pai, quando ele tomava uma decisão, não tinha volta. Minha mãe era minha última esperança, mas aparentemente estava do lado dele. E eu não podia dizer muita coisa quando os dois estavam me pressionando em coro por netos. O que foi que eu fiz pra merecer isso?
O velhote ainda conseguiu conquistar o Randrid. Ele me deu um baita sorrisão e disse: — Mestre! Torcerei por você com tudo! — Fica difícil dizer qualquer coisa quando alguém é tão otimista assim. Os olhos gentis da Fanery também foram difíceis de encarar.
— A-Allusia? Tem alguma coisa errada?
Eu não tinha nenhum contato especial em Baltrain. E, pra falar a verdade, tava me sentindo mal por depender dela assim... mas a Allusia era basicamente a única pessoa em quem eu podia confiar agora. Vim procurar conselhos, mas ela parecia imersa em pensamentos. Imagino que não devia ser uma boa imagem pro instrutor especial da ordem estar nessa situação.
— Suponho que... minha casa esteja fora de cogitação? — disse Allusia depois de um longo silêncio.
— Obviamente!
Eu tava tentando entender o que ela tava pensando tão seriamente, mas essa ideia tava fora de questão, claro. Seria ruim de várias formas diferentes o comandante dos cavaleiros morar junto com um velhote. Não queria manchar a reputação da ordem (nem da Allusia) assim.
— Infelizmente, a ordem não tem muita experiência com assuntos assim — disse Allusia. — Uma aventureira como a Lysandra talvez saiba mais sobre isso.
— Verdade... agora que você falou nisso...
Fazia sentido. Aventureiros pegavam trabalhos em todo canto do mundo, então provavelmente tinham mais experiência em arrumar onde ficar. Eu nunca tinha passado pela guilda dos aventureiros antes, mas a Selna tinha insistido pra eu visitar. Se eu pedisse, ela provavelmente me indicaria algum lugar.
— Queria garantir uma hospedagem ainda hoje, então vou pra lá agora mesmo — falei.
— Nesse caso, eu te mostro o caminho. Fica perto do escritório.
— Valeu, isso ajuda.
Nos levantamos. Joguei minha bagagem nas costas, enquanto Allusia só pegou a espada, e saímos do escritório.
— É logo ali — ela disse, apontando.
— Era realmente perto, hein.
Logo chegamos à filial da guilda dos aventureiros do Reino de Liberis. Era mesmo bem próxima do escritório da Ordem de Liberion. Tínhamos andado só um quarteirão. Nem levou cinco minutos.
A guilda não era tão grande quanto o prédio da ordem, mas ainda era um dos maiores de Baltrain. Mesmo quando o prédio ainda era só uma mancha no horizonte, dava pra ver aventureiros entrando e saindo. Parece que os negócios estavam indo bem.
— Vamos? — disse Allusia.
— É...
Dava um certo nervosismo entrar pela primeira vez num lugar desconhecido. Ignorando completamente meu estado mental, Allusia abriu a porta com total naturalidade e entrou como se estivesse em casa. Fui atrás, meio atrapalhado.
Por dentro, havia um saguão espaçoso com um balcão no meio. Em cada lado do balcão, havia uns painéis de avisos, e atrás do painel da direita havia uma escada que levava ao andar de cima. À esquerda parecia ser uma área social — vários aventureiros estavam jogados por ali em mesas redondas, matando o tempo.
Como esperado de aventureiros, eles não ficaram me olhando torto como o povo da cidade. Ah, mas aquele cara ali fez uma cara de surpresa. Provavelmente se assustou ao ver a Allusia. Ela, por outro lado, ignorou todos os olhares e foi direto até a recepcionista no balcão.
— Com licença, poderia chamar a Gêmea das Lâminas, Selna Lysandra, pra mim?
A recepcionista piscou, claramente tensa e confusa. — S-Sim. Um momento, por favor.
Bom, o comandante dos cavaleiros da Ordem de Liberion não costuma aparecer na guilda dos aventureiros, e aqui estava ela, pedindo por uma aventureira de rank negro. Era natural pensar que algo sério tava pra acontecer se essas duas estavam envolvidas.
Mas na real? Só estavam tentando arrumar hospedagem pra um velho. A vida não é fácil.
— Sitrus, se for alguma besteira, eu juro que vou— — Selna descia as escadas com uma expressão meio irritada, mas assim que me viu, seus olhos se arregalaram. — Mestre?!
— Y-Yo, Selna. Faz um dia, né — Nunca pensei que fosse encontrá-la de novo tão cedo. Tava até meio constrangedor ficar ali parado na guilda desse jeito.
— Não tem nada de “besteira” na minha visita — disse Allusia. — De certa forma, é de extrema importância.
Os olhos da Selna continuaram cravados em mim. — Eu não imaginei que você fosse aparecer tão cedo.
— Desculpa pelo susto — respondi. — Aconteceu uma coisa inesperada.
— Hmm... bom, não faz sentido ficar aqui embaixo, então subam. Você vem também, Sitrus?
— Obviamente.
Eu, sinceramente, não via nada tão “óbvio” assim na Allusia querer acompanhar. Eu só queria uma ajudinha pra encontrar um lugar onde ficar — por que parecia que precisava de uma equipe de elite pra resolver isso?
De qualquer forma, se todo mundo ia subir, melhor irmos logo. Os olhares ao redor estavam pesados. Um velho chegando com a comandante dos cavaleiros da Ordem de Liberion e pedindo por uma aventureira de rank negro, sem sequer marcar horário. Aí a tal aventureira (que era da mais alta patente) me tratava com um respeito fora do comum. Isso era suspeito até demais.
Allusia e Selna não pareciam se incomodar, mas aquilo tudo me deixava profundamente incomodado. Por isso, queria sair daquele clima o mais rápido possível.
Não dava pra saber se Selna percebia como eu estava me sentindo, mas, de qualquer forma, ela subiu as escadas de volta. Aproveitando a rota de fuga, subi logo atrás. O segundo andar não era um saguão — era apenas um corredor reto com portas alinhadas dos dois lados.
— Por aqui. Tem uma sala de reuniões — disse Selna.
— Tem certeza de que a gente pode usar? — perguntei.
— Tá tranquilo. Basicamente tenho permissão pra usar à vontade enquanto estiver hospedada.
— Isso que é ser rank negro, hein. — Balancei a cabeça, impressionado. — Tapete vermelho total.
— Tudo graças à sua orientação, Mestre.
Como assim? Não fazia a menor ideia do que ela queria dizer com isso.
Assim que chegamos na sala de reuniões, Selna se virou pra mim.
— Então? O que você precisava?
— Aaah, sobre isso...
Todos nos sentamos e eu dei a ela a mesma explicação que tinha dado pra Allusia. Era meio vergonhoso falar sobre isso, pra ser sincero. Aquele maldito velho...
— Entendo. Se for o caso, conheço algumas estalagens baratas mas de boa qualidade — disse Selna. — Se possível, uma perto da guilda seria melhor em termos de segurança pública.
— Espera aí, Lysandra — Allusia interrompeu. — O Mestre Beryl vai ficar indo e voltando do nosso escritório, e do ponto de vista da segurança, seria muito mai— Muito mais conveniente se ele ficasse perto da minha casa.
— O quê? — Selna arregalou os olhos. — Você tá dizendo isso por birra? A guilda dos aventureiros e o escritório da ordem ficam lado a lado, então em termos de conveniência, esse bairro faz muito mais sentido.
As duas começaram a discutir de novo em ritmo acelerado, sem nem parar pra respirar. Francamente, eu não ligava muito pra onde acabaria indo. Só queria que me apresentassem alguma hospedagem.
No fim, apesar da breve briga, estabeleci minha base em Baltrain, não muito longe da guilda e do escritório da ordem.
◇
— Aqui é o salão de treinamento.
— Hmmm. É bem legal. Espaçoso também.
No dia seguinte, depois de garantir uma estalagem, Allusia me guiou até o salão de treinamento dentro do escritório da ordem. Falando nisso, eu estava hospedado numa estalagem baratinha a pouca distância do escritório e da guilda — logo depois da rua principal. Também ficava perto de feiras e muitos restaurantes, e ganhava pontos por estar perto de algumas forjas. Decidi não pensar muito sobre o motivo de a Allusia estar tão estranhamente emburrada com isso.
Além disso, uma “estalagem barata e de qualidade” na visão da Selna era uma “estalagem relativamente cara e boa” na minha. Acho que a renda de uma aventureira de rank negro era bem maior que a minha. Não era tão caro a ponto de eu não conseguir ficar lá, mas como planejava passar um tempo em Baltrain, achei melhor controlar os gastos. A guilda e o escritório ficavam bem no centro da cidade, então as hospedagens da região acabavam sendo mais caras.
Selna insistiu que eu podia ficar num lugar muito melhor, mas eu bati o pé dizendo que aquilo ali já estava bom demais pra mim. Não ligava pra vida de luxo. Contanto que o lugar tivesse o básico, não tinha do que reclamar. Afinal, vim do mato, esse tipo de coisa não me incomodava.
— Em geral, todo mundo treina aqui quando quiser — explicou Allusia.
— Uhum, parece mesmo.
Voltando a atenção pro salão, vi vários cavaleiros já se dedicando aos treinos. Alguns estavam atacando bonecos de madeira, outros duelando, outros fazendo exercícios, e outros apenas descansando. Realmente, usavam o espaço livremente no próprio ritmo.
— Atenção, pessoal! — gritou Allusia, sua voz poderosa ecoando pelo salão. Todos pararam o que estavam fazendo. — Nosso cronograma foi adiantado. O Sr. Beryl vai começar a nos orientar a partir de hoje. Espero mais dedicação de todos nos treinos a partir de agora.
— Perdão pela interrupção. Espero poder trabalhar bem com todos vocês — acrescentei.
Nossa, os olhares estavam perfurando minha alma. Já tinham me apresentado antes, mas dava pra ver que muitos estavam com aquela cara de “quem diabos é esse cara aí?”. Era compreensível. Um velho qualquer aparecendo do nada era mesmo meio problemático. O silêncio tomou conta do salão.
Então, depois de alguns segundos, um jovem quebrou o silêncio e se aproximou da gente.
— Um instante, Comandante.
— Henbrits? O que foi? — perguntou Allusia.
Esse cara tava focado num boneco de madeira até agora há pouco. Tinha pele morena, nariz marcante e olhos amendoados. Pela musculatura visível sob a camisa, dava pra ver que o corpo dele era bem treinado.
— Somos o orgulhoso Esquadrão de Libérion — declarou. — Nosso instrutor precisa ter habilidades à altura. Não duvido das capacidades do Sr. Beryl, mas... por favor, nos mostre uma demonstração de sua força.
O tal Henbrits me encarou como se quisesse me atravessar com o olhar. Ah, agora tudo fazia sentido. Foi ele quem me lançou aquele olhar hostil na apresentação de ontem. Não estava exatamente me menosprezando, mas dava pra sentir claramente o espírito forte dele perguntando sem palavras: “Quem esse velhote pensa que é?”
— Allusia, esse é...?
— Henbrits Drout — respondeu. — Ele é o tenente do Esquadrão de Libérion.
— Hmm, o tenente, é? — murmurei. Então ele era um figurão de verdade. Intimidador.
— De qualquer forma, é uma boa oportunidade pra demonstrar sua verdadeira força, Mestre.
— Hã?
Sério?
— Sr. Beryl, sei que isso é rude, mas por favor, me conceda a honra de um duelo — disse Henbrits, me entregando uma espada de madeira.
Sem chance de recusar agora — só me restava aceitar o desafio.
— Isso vai ser ótimo — disse Allusia. — Vamos chamar os outros cavaleiros também?
— Hã?
Sério mesmo? Se isso desse errado, todo mundo poderia descobrir minha verdadeira força e ficar decepcionado. Não que eu estivesse preocupado em manter as aparências nem nada. Mas ainda assim, seria bem vergonhoso ser praticamente executado na frente de todos os cavaleiros. Não dava pra reclamar, no entanto. Eu já era o instrutor especial deles.
A vida é difícil, hein.
—Estão os dois prontos?
—Estou, sim.
—Também estou...
Usando sua autoridade como comandante dos cavaleiros, Allusia reuniu todos os cavaleiros de folga. Aparentemente, a batalha simulada entre Henbrits e eu aconteceria na frente de um público considerável. Allusia atuaria como juíza, embora provavelmente só quisesse um lugar na primeira fila.
Enquanto me preparava para o duelo, meus ouvidos captaram algumas conversas ao redor.
—Ei, o que tá todo mundo fazendo aqui?
—Você não ouviu? O novo instrutor, o Beryl, vai enfrentar o tenente Henbrits numa batalha simulada.
—Sério? Acho que finalmente vou ver a esgrima do tenente de novo, faz tempo.
Hm. Parece que esse pessoal tem bastante confiança nesse tal de Henbrits.
Apesar da aparência e comportamento joviais, estava claro que Henbrits se dedicava de corpo e alma à espada. Também dava pra perceber que ele tinha suas reservas quanto à minha chegada repentina como instrutor especial. Eu entendia o lado dele. Mais cedo, ele mencionou o grande orgulho que tinha pela ordem — claro que seria difícil aceitar um velhote aparecendo do nada e se enturmando com eles. Se eu estivesse no lugar dele, provavelmente teria pensado a mesma coisa.
—Sr. Beryl, que tenhamos um bom duelo — declarou Henbrits.
—É, digo o mesmo. Tô ansioso por isso.
Ficamos de frente no centro do salão de treinamento e nos curvamos um para o outro. Hmm, a postura dele é impecável. Entendi por que ele não tinha uma opinião muito favorável sobre mim, mas dava pra perceber que ele não era uma má pessoa. Ao nosso redor, senti os olhares empolgados e expectantes dos outros cavaleiros. Bem, a maioria dos olhos estava em Henbrits. Era fácil ver o quanto ele era popular, seja pela habilidade, seja pelo caráter.
Aqui e agora, o tenente comandante da Ordem de Liberion ia cruzar espadas comigo. Isso deixava todo mundo empolgado, mesmo sendo só uma luta simulada. Sério, como é que isso chegou a esse ponto? Eu sou só um caipira chato do interior. Mas agora, não dava mais pra evitar o desafio. Eu precisava, pelo menos, me esforçar o suficiente pra não me humilhar se perdesse.
Concentra.
Empunhei minha espada de madeira à frente. Henbrits me encarava com um olhar hostil — dava até pra ver um toque de sede de sangue nos olhos dele. Droga, agora eu ia ter que ir com tudo.
—Comecem!
A voz de Allusia ecoou pelo salão de treinamento. Henbrits avançou com tudo na mesma hora. Meus olhos acompanharam os movimentos dele, e o barulho ao nosso redor sumiu de uma vez. Não é que o pessoal tivesse ficado em silêncio — eu só tinha bloqueado tudo. Meus sentidos estavam focados unicamente no adversário e nos ataques que vinham.
As ondas na minha mente se acalmaram, ficando tão tranquilas quanto a superfície de um lago sereno. Eu o observava. É, o espírito de luta dele era impressionante. Mas... ele era só um pouquinho impulsivo demais.
De repente, Henbrits avançou com um grito firme.
—Haah!
Hmm. Um golpe ascendente, mas é só uma finta que leva a um corte na lateral esquerda do torso, aposto. Não era um movimento ruim, mas ele avançou demais com a perna da frente. Se o ataque fosse lido ou desviado, ele ia ter dificuldade pra escapar do contra-ataque.
—Shah!
A espada de madeira dele veio exatamente como eu previa, e eu interceptei o golpe por cima. Eu podia ter recuado pra desviar, mas se fizesse isso, estaríamos de volta à estaca zero. Além disso, minha leitura estava certa, então era uma boa oportunidade pra parecer estiloso.
Essa ganância me empurrou pro ataque. O som forte das espadas de madeira colidindo ecoou pelo salão. Diferente de um golpe em estocada, um ataque no torso perdia bastante força se sua trajetória fosse desviada logo de cara, então nem precisei fazer muita força no contra-ataque. Após acertar a espada de Henbrits por cima, girei a ponta, desviando sua arma e apontando-a numa direção que o impedia de usar força total num novo golpe. Meu plano era deixá-lo completamente exposto e fora de equilíbrio.
—O quê?!
Ooh, essa expressão é uma obra-prima, Henbrits. Mas que pena — minha espada não vai te dar tempo pra processar isso.
Mantive o impulso da arma, cortando o ar numa linha reta em direção ao pescoço de Henbrits. Teria sido legal seguir até o fim, mas parei o golpe antes de fazer contato. Não havia necessidade de concluir aquilo. Além disso, com o ângulo e a velocidade que eu vinha, um golpe no pescoço exposto poderia ser bem perigoso. Minha leitura dele tinha sido boa demais.
—Uau, o instrutor conseguiu contra-atacar? Impressionante...
—Tá de brincadeira... Ele previu o corte do tenente?
Putz. Eu conseguia ouvir o burburinho ao redor de novo. Meu contra-ataque foi tão certeiro que acabei perdendo um pouco o foco — uma falha da minha parte como instrutor. Preciso me concentrar. Não posso me envergonhar depois de ter chegado tão longe.
No momento em que abaixei a espada do pescoço dele, Henbrits avançou de novo.
—Ainda não terminei!
Uma guarda alta pra um corte no ombro direito, acho eu.
Essa abordagem focava em avançar com pura força bruta. Mas ele fez outra escolha infeliz: um ataque poderoso concentrado em uma única direção era extremamente fraco contra pressão lateral. Então, segurei minha espada de madeira na vertical contra a dele e desviei o golpe que vinha de cima. Eu não tinha uma guarda na espada, então precisava tomar cuidado para não prender minha mão nisso. Henbrits era forte pra caramba, então rebater o golpe dele de qualquer jeito podia me colocar em perigo.
— Hup! E... lá vai.
Desviei o corte diagonal dele, torci os ombros e então desferi um golpe com a minha mão dominante.
— Hrk?!
Droga... Era pra eu ter parado antes, mas acabei acertando bem no queixo dele. A cabeça do Henbrits foi jogada pra trás.
— D-Desculpa! Tá tudo bem? — gritei em pânico, mas os olhos dele ainda estavam em chamas, cheios de vontade de lutar. Pelo olhar, dava pra ver que esse combate de treino ainda não tinha acabado.
— T-Tô bem! — Henbrits gritou.
— Hmm, que bom.
Ótimo, ele não tá sangrando. Mas eu tinha acertado o queixo dele com o punho da espada numa velocidade considerável. Não ia sair ileso disso. Ainda assim, como ele deu o sinal verde, aparentemente não era um problema. Pelo menos não tinha nenhum ferimento visível.
Dei um passo pra trás, iniciando uma pequena pausa. A luta não tinha terminado, mas se a gente voltasse logo ao combate, o Henbrits ia acabar se machucando demais.
— Como você é absurdamente rápido — ele murmurou. — Eu achava que era bem rápido...
— Vou considerar isso um elogio — respondi. — Mas no meu caso, é mais previsão com base na experiência. Não é nada tão impressionante assim.
Sem dúvidas, o estilo do Henbrits era incrivelmente veloz. A confiança dele era bem justificada. No entanto, mesmo não sendo tão forte, eu já tinha acumulado bastante experiência em duelos com espada. Henbrits ainda era jovem. Ter esse nível de habilidade com a idade dele já era impressionante, mas quando se tratava de ler os movimentos do oponente, eu ainda parecia ter vantagem. Meu trunfo — ou seja, minha capacidade de prever os movimentos dele e contra-atacar — vinha de anos de exposição à esgrima.
— Lá vou eu! — ele rugiu.
Opa, acho que a pausa acabou. Henbrits estalou o pescoço levemente e correu na minha direção com ainda mais energia, como se dissesse que estávamos começando do zero. Desta vez, ele estava ainda mais rápido que antes. Ele tinha um bom instinto pra esgrima. Isso mostrava o quanto ele se dedicava, e me fez perceber o tanto de treino que provavelmente fazia.
Uma postura baixa, golpe de baixo pra cima. Desvio com meio passo pro lado.
Outro passo pra dentro e um golpe no torso no movimento de retorno. Bloqueio com minha espada.
Ah, ele deixou o rosto exposto de novo. Será que ataco o pescoço mais uma vez? Não, repetir o mesmo truque seria meio arrogante.
Opa, lá vem um golpe giratório. Nada mal como combinação. A velocidade dele também tá ótima. Acho que vou me inspirar nele e fazer um giro também.
— Quê?!
Da posição em que eu estava, não conseguia ver o rosto do Henbrits. No momento em que ele girou, eu também girei, passando pelas costas dele. Sabia que ele estava surpreso. Afinal, a espada dele parou no ar.
— Mais um ponto pra mim.
Desci minha espada de madeira na parte de trás da cabeça desprotegida dele. Um som seco ressoou no crânio dele.
— Ai?!
— Consegue continuar? — perguntei.
Esse tinha sido meu primeiro bom duelo em muito tempo. Talvez por isso, eu estava um pouco animado demais. Normalmente, eu nunca pressionaria meu oponente pra continuar.
— Claro que sim! — Henbrits gritou, avançando pela quarta vez.
E assim, Henbrits e eu cruzamos espadas por bons dez minutos. No final, ele caiu de joelhos, ofegante, e aceitou a derrota com um tom genuinamente frustrado.
Caramba, isso demorou. Quero dizer, duelos normais não duram tanto assim. Sua resistência é insana, Henbrits.
Ainda assim, foi meu melhor treino em muito tempo. E de quebra, consegui manter minha dignidade. Nada mal.
— U-Uau!
— O tenente, de todas as pessoas, não conseguiu acertar nem um único golpe?!
— Que velocidade de reação absurda...
No momento em que deixei de me concentrar, ouvi vozes ao meu redor. Ah, vai... nem era pra tanto, né? Sinceramente, a velocidade e a força do Henbrits eram impressionantes. Mas os movimentos dele eram diretos demais, então só aproveitei as brechas pra acertar meus próprios golpes. Não fiz nada de especial.
— Foi uma exibição esplêndida, Mestre — disse Allusia, sorrindo com admiração sem fim.
— Aaah, valeu, Allusia. — Peguei a toalha que ela me entregou de repente e comecei a enxugar o suor.
— Hm-hmm. — Ela se virou para Henbrits, com um olhar desafiador. — E então? O que achou?
— Estou completamente derrotado — respondeu ele. — Pensar que ele é tão forte assim... Peço desculpas pela minha grosseria inimaginável, senhor Beryl.
— Tá tudo certo — respondi. — Sinceramente, faz sentido questionar as qualificações de um sujeito como eu que apareceu do nada.
A hostilidade do Henbrits tinha desaparecido por completo, e o jeito como ele me olhava agora era totalmente diferente de dez minutos atrás. Mas o que realmente se destacava era a expressão vitoriosa da Allusia. Isso era meio... constrangedor. Eu até torcia pra ela parar.
— Bom, pelo menos parece que tem coisa que eu posso ensinar pros cavaleiros — murmurei, tentando mudar de assunto. — Que alívio.
— Lá vem essa humildade de novo — Allusia retrucou na hora. — Todos aqui têm muito o que aprender com o senhor, Mestre.
Eu não tava tentando ser humilde nem nada — era só um velho com um pouco de talento pra esgrima e um tempo de reação um pouco acima da média. Dessa vez, minha percepção conseguiu interpretar com facilidade o estilo do Henbrits.
A diferença de idade entre mim e o Henbrits equivalia à diferença de experiência. O jeito como eu montava estratégias em lutas um contra um não era algo que se aprendia de um dia pro outro. Provavelmente, se a gente tivesse a mesma idade, o resultado da luta teria sido outro. Em outras palavras, só venci porque tinha mais anos de prática.
— Todos já estão reunidos, então podemos passar para o seu momento de instrução? — sugeriu Allusia.
— Claro, vamos nessa — concordei.
Dava pra perceber que os outros cavaleiros também estavam me olhando de forma diferente agora. Pelo menos, era bem mais fácil sem todos aqueles olhares desconfiados. Por dentro, eu não passava de um velhote chato, mas ser tratado com consideração era algo pelo qual se podia agradecer. Além disso, ensinar fora do dojo era uma experiência bem nova.
— Primeiro, acho que vou dar uma olhada geral e tentar avaliar o nível atual de cada um — falei.
— Hee hee, pegue leve com eles, Mestre.
Olhei ao redor da sala e fui recebido com respeito, admiração e um certo nervosismo. Hmm, mesmo que os céticos tenham sumido, isso tá meio...
— Todo mundo de acordo com isso? — perguntei para o grupo.
— S-Sim! — responderam os cavaleiros, meio tímidos.
— Ahm... Não precisam ficar tão tensos assim, tá? — Nem precisava tanto respeito. Mesmo sendo o instrutor especial agora, eu continuava sendo só um velhote humilde.
Bem, tanto faz. Se a gente se der bem, eles vão acabar relaxando com o tempo.
◇
— Em comemoração à nomeação do senhor Beryl como nosso instrutor especial, um brinde!
— Saúde! Viva!
Depois do nosso primeiro dia de treino, fui com o subcomandante até uma taverna próxima da sede da ordem. O grupo era formado por mim, Allusia, Henbrits e Kewlny. Não fazia sentido forçar mais gente a vir pra uma comemoração de um velho, então eu estava de boa com o grupo pequeno. E pra falar a verdade, relaxar e beber com pouca gente combinava bem mais comigo.
— Valeu por ter organizado isso pra mim — disse, dando um gole na minha caneca de cerveja. Estávamos sentados ao redor de uma mesa redonda. Talvez por ser fim de expediente, havia homens e mulheres de todas as idades ocupando o balcão e outras mesas.
— Não foi nada — respondeu Henbrits, sincero. — Eu que devo me desculpar pelo meu comportamento anterior, então não se preocupe.
Henbrits era um cara bem sério. Mas, sinceramente, nem me incomodei tanto com o que rolou antes. Entendi perfeitamente os sentimentos dele, e ninguém teve culpa de verdade. Se fosse pra apontar um culpado, diria que esse velho aqui foi quem apareceu do nada sem aviso. Ou melhor, a culpa era da Allusia por ter dado uma promoção enorme pra esse velho... Mas trazer isso à tona agora seria meio de mau gosto.
Enquanto esses pensamentos passavam pela minha cabeça, me virei casualmente pra Allusia. Abri a boca pra falar, mas então...
— Com licença, gostaria de mais cerveja — disse ela.
— Tão rápido assim?! — Já tá no segundo copo? Pera lá, a gente não tinha acabado de brindar? Sua caneca não tava cheia até a borda um segundo atrás? Isso tudo já sumiu no estômago?
— Eu adoro álcool — respondeu Allusia. — É delicioso.
— É-é mesmo? — gaguejei, sem saber bem o que dizer. — Acho bom ter algo que a gente gosta.
A calma e imponente comandante da ordem, invejada por todos, também era uma baita bebedora. Um verdadeiro choque pra esse velho aqui.
— A comandante é insana quando o assunto é bebida! — exclamou Kewlny. — Nunca vi ela perder uma competição de quem bebe mais.
— Isso é realmente insano.
Não vão sair fazendo campeonato de bebida depois de entrar pra Ordem de Liberion, hein... Guardei esse comentário pra mim — seria meio indelicado falar isso agora. Bem, os cavaleiros não estavam causando confusão, então se estavam só se divertindo, tudo bem. No mínimo, não parecia que estavam incomodando ninguém ali. Enquanto todo mundo se divertisse com moderação, não havia por que bancar o velho ranzinza dando sermão. Isso não deixaria ninguém feliz.
—Todo mundo bebe bastante? — perguntei, tentando fazer a conversa fluir. Belisquei um pouco do inhame frito — bem salgado e combinando perfeitamente com a cerveja. Esse tipo de coisa é uma maravilha...
—A gente não se reúne pra beber com tanta frequência, mas quase todo mundo passa pela taverna de vez em quando — respondeu Henbrits. — Faz parte da manutenção da ordem pública. — Pelo gole generoso que ele deu na caneca, parecia que ele também gostava de uma boa bebida.
—Entendi. Se os cavaleiros aparecem com frequência, fica difícil pra alguém aprontar alguma coisa.
Inicialmente, achei que fossem todos alcoólatras, mas acabou que tinha um outro lado nisso tudo. Em Beaden, havia uma estalagem que também servia comida e bebida, mas não existia uma taverna dedicada. Já na capital, com tanta gente indo e vindo — e a bebida rolando solta nesse tipo de lugar —, problemas eram quase inevitáveis. Nesse sentido, os cavaleiros aparecerem de tempos em tempos ajudava bastante na prevenção de crimes.
—Ter o apoio dos cidadãos é essencial pro nosso trabalho — acrescentou Allusia, virando a caneca com uma velocidade absurda. — É por isso que conseguimos atuar com tanta desenvoltura.
Você acabou de pedir a segunda bebida, e já esvaziou o copo de novo...? Quanta rapidez pra beber! Me surpreende seu corpo ainda estar inteiro. Eu também gosto de um bom gole, mas imitar isso aí é impossível.
—Eu só dou uns golinhos de vez em quando — disse Kewlny. — A comandante e o tenente bebem um monte, então eu não consigo acompanhar mesmo.
E, como ela disse, estava segurando a caneca com as duas mãos, tomando pequenos e delicados goles. Uhum. Igual um cachorrinho fofo. A Kewlny devia ser um dos maiores fatores de "cura" dentro da Ordem de Liberion. Quer dizer, com certeza era uma ótima cavaleira também, mas era difícil esquecer da imagem antiga que eu tinha dela.
—Bom, não sou ninguém pra falar nada agora — comentei —, mas peguem leve. Eu não queria ver o comandante e o vice-comandante da grande Ordem de Liberion bebendo até bater as botas.
—Sr. Beryl, sua habilidade com a espada é realmente impressionante! — disse Henbrits, empolgado — talvez por causa do álcool. A caneca dele já estava vazia, e ele a bateu contra a mesa com um estrondo.
—Eu não falei desde o começo? — retrucou Allusia de imediato. — O Mestre Beryl é muito forte. — Seu rosto não tinha mudado em nada — impossível dizer que ela já tinha bebido tanto. Ainda assim, havia uma energia difícil de descrever nas palavras dela, além daquele ar de vitória no rosto. Ah, eu realmente queria que ela parasse com isso.
—Tenho que admitir, duvidei das suas palavras, Comandante — disse Henbrits. — Estou cheio de arrependimento.
—O importante é que entendeu agora.
De alguma forma, a conversa tinha virado uma sessão de elogios centrada em mim. Alguém me salva. Tentando mudar de assunto antes que me matassem com tanto louvor, falei de novo:
—Enfim... Faz muito tempo que eu não aproveitava uma bebida assim com outras pessoas.
Dito isso, resolvi beber no meu ritmo. Se tentasse acompanhar, ia afundar num mar de álcool.
—É mesmo? — perguntou Henbrits. — Você parece ser um bom bebedor...
Olhei casualmente ao redor da mesa. Allusia e Kewlny não disseram nada, mas suas expressões mostravam o quanto estavam surpresas com essa revelação. E era verdade — eu gostava de beber —, mas beber sozinho não era a mesma coisa que compartilhar a bebida com os outros.
—Fui criado no meio do mato — expliquei. — Lá em casa não tem taverna, e praticamente todos os alunos do nosso dojo são crianças.
Lá em Beaden, eu bebia quase sempre sozinho. E, quando tinha companhia, no máximo era meu pai. A gente dividia alguns goles durante o jantar, mas quase nunca tinha a chance de reunir um grupo só pra curtir uma bebedeira.
—Hee hee — riu Allusia, esvaziando a terceira caneca. — Então da próxima vez, faço questão que me acompanhe, Mestre.
—Ha ha ha, pega leve comigo.
Sério mesmo — pega leve. Se eu tentar acompanhar seu ritmo, desmaio em segundos.
—Eu vou junto também! — exclamou Kewlny, com um sorriso radiante no rosto.
Como eu tinha dito, praticamente todos os alunos do dojo eram crianças, e os que já se formaram também começaram quando ainda eram pequenos. Os instrutores e os alunos tinham laços bem próximos, mas, surpreendentemente, eu quase nunca tinha a oportunidade de falar sobre algo além de esgrima.
—É... — murmurei. — Parece legal — reunir todo mundo assim em volta de uma mesa.
Beber a noite inteira com meus antigos alunos... Essa era outra forma de se relacionar com eles. Era difícil acompanhar os jovens do dojo até que se tornassem adultos. Cada um tinha seus próprios objetivos e vidas, e eu nunca tive intenção de prendê-los àquela vila esquecida. Mas agora que reencontrei alguns deles, acho que nada me impediria de desejar reencontros assim. Tem muita coisa boa me esperando aqui na capital. Estava no fundo do poço quando meu pai me expulsou de casa, mas... isso aqui não é nada mal.
—Vamos lá, Sr. Beryl. Vamos comer e beber até não aguentar mais! — exclamou Henbrits, mordendo um pedaço do frango assado que acabara de chegar.
—Certo. É uma oportunidade rara pra mim — vou aceitar.
Era ridículo cobrar etiqueta ou dignidade dos normalmente nobres cavaleiros da Ordem de Liberion num momento como esse. Eles sabiam disso e estavam relaxando na medida certa. Decidi apenas aproveitar a noite. Como foi dito, essa era mesmo uma ocasião rara.
—Henbrits — zombou Allusia —, tenta não bancar o glutão.
—Não quero ouvir isso de você, Comandante. Em que caneca você já tá mesmo?
—É deselegante se prender a detalhes tão pequenos...
Caí na gargalhada.
—Ha ha ha ha! Allusia, você muda de discurso rapidinho, hein!
—Aah! Essa carne era minha! — gritou Kewlny.
—Pede outra — respondeu Allusia.
—Foi você que roubou de mim! Eu queria! Comer! Agora! Aff!
—Ha ha ha ha!
Meu riso transbordou, e assim, num piscar de olhos, aquela noite animada e divertida passou como um sopro.
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