Capítulo 2: Um Velho Caipira Conhece um Mago
— Por hoje é só, pessoal. Bom trabalho.
— Muito obrigado!
Encerrei o treinamento dos cavaleiros, e todos responderam com entusiasmo. Estavam todos cobertos de suor. Saí rapidamente do salão de treino, querendo voltar logo para a estalagem e cair numa banheira quente.
Desde a luta simulada com o tenente-comandante Henbrits, eu tinha ido praticamente todos os dias ao salão de treinamento da Ordem de Liberion para atuar como instrutor especial. A ideia original era que eu ensinasse só algumas vezes por mês, mas, graças ao meu velho me expulsando de Beaden, eu não tinha mais pra onde ir. Até agora, tudo tinha dado certo — Allusia parecia genuinamente feliz com a mudança nos planos, e Kewlny também. E, surpreendentemente, Henbrits não era exceção.
— Senhor Beryl! Obrigado pelo esforço de hoje!
— A-Ah. Você também, Henbrits. Tá se esforçando todo dia, hein?
Assim que saí do salão de treino, Henbrits correu atrás de mim. Quando ouvi ele me chamar, parei e virei para ele. Estava com uma toalha limpa na mão — aparentemente, tinha ido pegar só pra mim.
Depois da nossa lutinha, ele decidiu que alcançar meu nível de habilidade seria uma de suas metas. Agora, vivia colado em mim, mesmo fora dos treinos. Eu até queria perguntar o que um tenente-comandante de uma ordem de cavaleiros estava fazendo agindo assim... mas, bem, a Allusia também era meio fora da curva nesse sentido.
Desde que cheguei aqui, aprendi algumas coisas sobre os cavaleiros. A Ordem de Liberion fazia patrulhas regulares e tinha reuniões, mas, fora isso, os membros tinham bastante tempo livre. Naturalmente, desperdiçar esse tempo arruinaria a reputação deles como cavaleiros, então a maioria aproveitava para treinar e se exercitar. Ou seja, salvo algum incidente importante, a vida de um cavaleiro girava basicamente em torno de treinamento constante.
— Agora tenho um objetivo importante a alcançar — disse Henbrits. — Então cada dia tem sido gratificante!
— Entendo. Bom saber disso...
Aceitei a toalha que ele me ofereceu e comecei a secar o rosto.
— Ainda assim, não consigo entender como você se move daquele jeito. Preciso treinar mais.
Soltei uma risada.
— Ora, se até um cara como eu consegue, você chega lá rapidinho.
Cara, ele estava mesmo grudado em mim agora. Não era como se isso me incomodasse, mas esse tipo de recepção positiva estava honestamente bem além do que eu esperava. Ainda não tinha me acostumado com esse lance de ser o instrutor especial da ordem, e com certeza não estava acostumado com tanta atenção.
— Mestre! Tenente-comandante! Bom trabalho hoje!
— Opa, Kewlny... Pra você também.
Enquanto conversava com Henbrits, outra cavaleira se juntou à conversa — uma das minhas antigas alunas, Kewlny, também coberta de suor. Ela não estava usando armadura, e sim roupas simples de treino. O tecido, encharcado, grudava na pele. Ela era pequena, mas bem desenvolvida, e seus atributos femininos ficavam bem destacados. Tive que desviar o olhar. Isso é perigoso pro meu coração...
Kewlny se aproximou rapidamente, sem parecer perceber nada da minha batalha interna.
— Já se acostumou com a vida na capital, Mestre?
Para com isso. Chega mais perto não. Já não sei mais onde olhar.
— Bom, acho que sim — respondi, desviando o olhar do corpo dela. — Mas não andei muito além desse bairro, pra ser sincero.
Era verdade — basicamente só fazia o trajeto da estalagem até a sede da ordem, então só conhecia os arredores. Pra falar a verdade, isso nunca foi um problema. A maior parte dos meus dias era dedicada ao treino, então não tinha tempo pra bancar o turista, nem muito motivo pra sair por aí explorando.
— Que pena — disse Henbrits. — Baltrain tem muitos pontos turísticos.
Ele tinha razão. Baltrain era a capital do Reino de Liberis, famosa por ser a maior cidade do país. Cada um dos seus cinco distritos tinha características próprias, atraindo muitos turistas locais e estrangeiros.
— Eu posso te mostrar tudo! — se ofereceu Kewlny, animada e empolgada.
Para com isso. Não precisa se empolgar tanto só por causa de um passeio pela cidade. Mas bem, dava pra relevar esse comportamento como parte do charme da Kewlny. Ela era super dedicada em tudo, até pra ser guia turística.
— Haha, acho que vou aceitar a oferta — falei. — Mas só depois de nos trocarmos.
— Isso! Eu tô toda encharcada!
Ainda era um pouco cedo pra voltar pra estalagem e tirar um cochilo. Desde que me estabeleci em Baltrain, acabava quase sempre acompanhado da Allusia, então praticamente não passava tempo com Kewlny fora dos treinos.
— Kewlny, não seja rude com o senhor Beryl — disse Henbrits.
Ela respondeu com um animado "Sim, senhor!" antes de sumir dentro do vestiário. Eu também fui me trocar.
— Mestre! Obrigada por esperar!
— Tranquilo. Nem esperei tanto assim.
Como era de se esperar, terminei de me trocar antes da Kewlny. Estava esperando do lado de fora da sede, meio entediado, sem nada pra fazer, quando ela apareceu correndo com roupas limpas e confortáveis. Hoje, a ideia era dar uma volta com a Kewlny pela cidade e depois visitar um restaurante novo. Afinal, essa era a capital — ninguém podia me culpar por querer fazer um pouco de turismo.
— Ah, é! Você costumava vir muito a Baltrain antes de se mudar?
— Nem tanto. Vim algumas vezes, muitos anos atrás. A última vez foi quando viajei com a Allusia, depois de muito tempo sem aparecer por aqui.
Como eu disse, minha última lembrança de Baltrain era de muito tempo atrás. O dojô ficava lá em Beaden, então nunca tive motivo pra passar meio dia na estrada só pra visitar a capital. Eu reconhecia o palácio real, claro, mas nenhum dos outros pontos turísticos me trazia qualquer lembrança.
Mas agora, a capital era minha residência temporária. Allusia tinha me passado um valor estimado da renda que eu receberia como instrutor especial, então eu sabia que logo teria dinheiro entrando. Levando tudo isso em conta, eu não me opunha a gastar um pouco do meu tempo livre (e umas moedas de ouro) pela cidade.
— Certinho! — exclamou Kewlny. — Vamos dar uma olhada no distrito oeste!
— Vou deixar o destino por sua conta. Tô curioso pra ver.
E assim, seguimos rumo ao distrito oeste, pegando uma carruagem que circulava pelas ruas da capital. Quanto mais os anos passam, mais eu gosto de simplesmente dar uma caminhada tranquila. Apesar de curtir meus momentos de silêncio, estar com uma companhia animada também tinha seu valor.
— O distrito oeste é basicamente uma área comercial — explicou Kewlny. — Tem, tipo, todo tipo de loja.
Conversei com ela enquanto observava a paisagem. Baltrain era uma cidade realmente agradável. Tinha um distrito central onde ficavam o escritório da ordem e a guilda dos aventureiros, além de quatro outros distritos, um em cada ponto cardeal. Segundo Kewlny, o distrito oeste fervilhava de comércio. Dava pra encontrar de tudo, desde mercados, restaurantes, lojas de conveniência, ferrarias e até lojas de itens mágicos.
— O distrito sul é voltado pra agricultura, então talvez não tenha muita coisa pra ver por lá — continuou Kewlny, enquanto descíamos da carruagem e começávamos a andar pelo distrito oeste. — O norte tem o palácio real de Liberis, e o leste é, tipo, mais residencial. Eu também moro no distrito leste.
— Entendi. Então acho que o distrito oeste é onde os turistas vão?
— Uhum. Atrai um montão deles, mas acho que o norte ganha. O palácio é bem popular pra turismo.
Agora que ela mencionou, o palácio real provavelmente era o ponto central de todo o país. Duvidava que turistas comuns pudessem entrar, mas só a vista de fora já devia valer a pena.
Enquanto caminhava pela rua, vi todos os tipos de lojas e pessoas. A energia da cidade enchia meus olhos, e era uma experiência refrescante andar por um caminho desconhecido, deixando meu olhar vagar por todo lado. Tô agindo como um perfeito caipira do interior. Além disso, ao contrário das super famosas Allusia e Selna, Kewlny era uma cavaleira totalmente normal, ainda tentando construir seu nome. Pode soar meio rude, mas o fato de ela não ter status trazia uma vantagem pra mim — ninguém prestava muita atenção nela. Eu claramente era só um velho comum, então ninguém olhava pra mim também. Francamente, era maravilhoso poder andar sem me preocupar com os olhares dos outros.
No meio do passeio, da observação das pessoas e das explicações da Kewlny, uma voz monótona chegou aos meus ouvidos.
— Ah, é o Mestre Beryl.
— Hmm? — Se eu não tô imaginando coisas... eu acabei de ouvir meu nome.
Parei e olhei ao redor tentando localizar a origem da voz. Ali — uma mulher de manto, aparentemente saindo do distrito oeste. Seus cabelos negros e brilhantes iam até os ombros, cortados de forma reta, e seus olhos meio vazios estavam fixos em mim.
— Mm. É ele mesmo — murmurou ela. — Há quanto tempo.
— Mestre? O que foi? É alguém que você conhece? — perguntou Kewlny, espiando do meu lado.
A mulher de cabelos negros ignorou Kewlny completamente e continuou me encarando.
Hmm... Quem é essa?
Uma bolha de silêncio constrangedor se formou entre mim, Kewlny e a mulher de manto, como se engolisse toda a energia viva da rua.
— Ah! — gritou Kewlny de repente, estourando a bolha depois de alguns segundos. — É a Fice!
— Kewlny. De onde você surgiu? — perguntou a mulher.
— Eu tô aqui o tempo todo!
Só depois de ser chamada pelo nome que a mulher — Fice? — desviou o olhar de mim para encarar Kewlny. Pelo visto, Fice nem tinha percebido a jovem cavaleira até aquele momento.
— Kewlny, você conhece ela? — perguntei.
A mulher parecia saber quem eu era, e também conhecia Kewlny. Eu, por outro lado, não fazia a menor ideia de quem ela era. Melhor pedir explicações pra Kewlny.
— Mestre... Você, tipo, esqueceu dela? — disse Kewlny, me lançando um olhar inusitadamente severo.
— Uh...
— Que crueldade, Mestre Beryl. Que triste. Buá-buá-buá — disse a mulher de cabelos negros, ainda sem expressão, claramente fingindo as lágrimas.
Fiquei sem palavras. Sério mesmo, eu não reconhecia ela... A mesma coisa aconteceu com a Selna, mas no caso dela, a última lembrança que eu tinha era de muitos anos atrás — ela tinha saído do dojo ainda criança, então ligar a imagem da infância com a atual era impossível. Em contraste, Fice parecia ter mais ou menos a mesma idade da Kewlny. E, já que Kewlny estava me acusando de esquecê-la, era bem provável que Fice também tivesse frequentado o dojo na mesma época. Mesmo assim, apesar do fato de Fice ter reconhecido a Kewlny num piscar de olhos, nada me vinha à cabeça.
— Mrgh. Ah, tudo bem. Que tal isso? — Fice inflou as bochechas e tirou uma espada de dentro do manto.
— Hmm...?
Essa lâmina... eu lembrava dela. Era uma das minhas espadas de despedida. Isso significava que Fice tinha mesmo frequentado o dojo, e mais do que isso — ela se formou, dominando tudo o que eu podia ensinar.
Droga. Ia pegar mal se eu não conseguisse lembrar dela agora. Revirei minha memória, decidindo não me basear na aparência. As garotas mudavam bastante em poucos anos, e penteados não serviam de referência. Embora, a cor do cabelo provavelmente era a mesma. Aposto que era preto na época também. A personalidade dela provavelmente não mudou muito.
Uma garota de cabelos pretos que fala com frases curtas e estranhas. Eu dei uma espada de despedida pra ela. Fice... Espera, Fice?
— Ah... Você é, por acaso, a Ficelle? — perguntei.
— Correto — disse ela, com a voz ainda amarga. — Mas demorou demais. Muito triste.
Aconteceu que a mulher diante de mim era, de fato, a Ficelle. Agora que eu tinha descoberto quem ela era, minhas memórias vieram à tona de uma vez só.
Ficelle Habeler — uma das alunas a quem eu havia dado uma espada de despedida. Ela frequentou o dojô na mesma época que a Kewlny. Porém, diferente da Kewlny, que saiu após dois anos, a Ficelle ficou por volta de cinco e se formou depois de dominar nosso estilo de espada.
E ainda assim... A Ficelle das minhas lembranças era bem mais moleca. Quando criança, ela passava uma impressão completamente diferente. O cabelo era mais curto, o corpo bem mais magrinho. Também não era de falar muito — fora o básico necessário, ela passava o tempo todo balançando a espada em silêncio. As roupas dela também eram super discretas. A Fice que estava na minha frente usava uma túnica bonita que ia até os joelhos, mas eu não lembrava da pequena Ficelle sendo o tipo de garota que vestia algo assim.
Minha última lembrança dela era no momento em que entreguei a espada de despedida. Ela deu um sorriso — o que era raro — e disse: “Tenho outra coisa pra fazer agora.” Foi como se tivesse lembrado de um compromisso urgente, e logo depois disso, foi embora do nosso dojô.
Fazia um bom tempo desde então, e agora eu estava aqui, frente a frente com mais um reencontro inesperado.
— Puxa, eu sempre digo isso quando reencontro um dos meus alunos, mas... você cresceu tanto que nem dá pra reconhecer.
— Cresci mesmo — respondeu a Ficelle. — Mas é triste que você não tenha percebido.
— E-Eu sinto muito por isso.
Mesmo que minha aluna tivesse mudado completamente, esquecê-la — mesmo depois de eu ter entregue uma espada de despedida — era uma falha como instrutor. Eu precisava refletir sobre isso.
— Você não falou isso pra mim... — murmurou a Kewlny, do meu lado.
Me encolhi um pouco. — D-Desculpa.
De verdade. Me desculpa mesmo. Você é maravilhosa exatamente como é, Kewlny.
— Ah, tudo bem — disse ela, voltando ao bom humor. — Enfim! A Fice é incrível! Agora ela é o destaque da tropa mágica!
— Aham — Fice assentiu. — Tô dando o meu melhor. Bem admirável.
— Hã? Tropa mágica? — repeti, surpreso.
Mas por quê? Por que, depois de aprender esgrima no nosso dojô, ela foi se juntar à tropa mágica?
Quer dizer, isso era mesmo uma conquista incrível. Magos eram raríssimos, até mesmo no mundo todo, então quem tinha aptidão pra magia era naturalmente um em um milhão. Veja, por exemplo, a esgrima — mesmo que alguém não tivesse muito talento, só de ficar balançando a espada o tempo todo, eventualmente daria algum resultado. Mas isso não se aplicava à magia. Sem talento, você ficava no zero pra sempre. Não existia potencial de crescimento sem aquela fagulha inata. Eu mesmo não tinha talento nenhum pra magia. Sem exagero, só virava mago quem já nascia com o dom.
— Então, depois de aprender a lutar comigo, você começou a treinar magia... — murmurei. — Você realmente tem dado tudo de si.
— Uhum, é isso mesmo — disse Ficelle. — E tô aproveitando bem sua espada também, Mestre Beryl.
— Hã?
No dojô, a Ficelle tinha habilidade mais que suficiente pra merecer uma espada de despedida. Se ela usasse essas técnicas de alto nível em conjunto com magia... bom, com certeza seria um recurso valioso. Ainda assim, era questionável se a esgrima tinha alguma vantagem direta quando se tratava de ser maga. Talento com a espada e talento pra magia eram coisas bem diferentes, afinal.
— Magia com espada. É o que eu faço de melhor — explicou Ficelle.
— Magia... com espada?
O que é isso?
— Exatamente o que parece — ela respondeu. — Envolver os movimentos da espada com magia pra lançar cortes à distância. Revestir a lâmina com fogo ou gelo. Esse tipo de coisa.
— I-Isso é incrível. — Muito provavelmente, ela tinha acabado de dizer casualmente que era absurdamente poderosa. Eu não sabia nem como reagir. — Mais alguém usa esse tipo de magia?
— Existem outros — respondeu. — Mas quase nenhum sabe realmente manejar uma espada.
Pra ser honesto, eu já suspeitava disso antes mesmo de ouvir a resposta dela. A magia exigia talento, claro, mas também precisava de muito esforço pra desenvolver esse talento. O mesmo valia pra esgrima — era preciso treinar bastante pra desenvolver técnica. Revestir uma espada com magia era uma coisa, mas o movimento base do ataque ainda era esgrima. Sendo assim, alguém com mais habilidade na espada naturalmente se sairia melhor. De certo modo, a Ficelle era mais uma cavaleira mágica do que uma maga. Não que eu já tivesse ouvido falar dessa profissão...
Nossa conversa sobre magia com espada chegou a uma pausa, e a Ficelle mudou de assunto.
— Ah, é. Por que você tá na capital, Mestre?
— Aaah, então...
Expliquei que agora eu era instrutor especial da Ordem de Liberion e que a Kewlny estava me guiando por aí no distrito oeste pra fazer um passeio turístico.
Ficelle ouviu minha história e, de repente, disse:
— Vou com vocês. Faz tempo que não vejo a Kewlny também.
— Hã? Tem certeza? — perguntei.
— Tá tranquilo. Já terminei o trabalho. Vou junto.
— Vamos te guiar juntos, Mestre! — exclamou Kewlny.
Ficelle se posicionou ao meu lado. Ela já carregava uma sacola numa das mãos — provavelmente de uma compra —, então será que estava tudo bem sair andando comigo assim? Bom, ela disse que sim, então só me restava confiar.
De repente, senti minha mão direita envolta em calor, e a palma dela encostando na minha. — Ficelle? — perguntei, olhando pra nossas mãos agora entrelaçadas.
— O distrito oeste é movimentado — ela explicou. — As ruas são apertadas. Seria ruim se a gente se separasse.
Aah... Fazer o quê. Não tenho um bom motivo pra soltar a mão dela.
— Entendi. Vou deixar vocês escolherem pra onde vamos.
— Deixa com a gente!
— Uhum.
E assim, nós três caminhávamos pelas ruas do distrito oeste, comigo no meio. O distrito comercial de Baltrain fazia jus à fama. O vai e vem constante de pessoas criava uma atmosfera de agitação incessante, como se uma manta barulhenta de energia cobrisse todo o lugar.
— Livros são ótimos. Tão relaxantes.
— Ugh. Eu não curto muito estudar...
— Ha ha ha.
Os olhos da Ficelle brilharam quando ela avistou uma enorme livraria de frente para a rua principal.
— Mestre! Esse aqui! Que tal esse?!
— Hm. Acho que combina com você.
— Bem infantil, do jeitinho que você é. Não tá ruim.
— Grrr!
Kewlny experimentava todo tipo de roupa numa loja cheia das últimas tendências da cidade.
— Essa é... uma loja de acessórios?
— Equipamentos mágicos. Simplificando, itens com propriedades mágicas.
— Hmm...
Fiquei intrigado com uma loja que vendia pulseiras, colares e afins, todos com efeitos mágicos embutidos.
Nós três andamos por todo canto, olhando diferentes lojas. Às vezes entrávamos em algum lugar aleatório e nos empolgávamos. Às vezes, só observávamos em silêncio. Tudo era extremamente divertido. Com o tempo, deu pra notar que já estava ficando tarde, mas a agitação no distrito oeste não dava sinais de diminuir. Julgando pela sombra comprida que se esticava sob mim, tínhamos passado um bom tempo ali.
— Caramba, esse distrito tem coisa demais pra ver — comentei. — Até o que eu não preciso chama atenção.
— Sim! Tem de tudo, de itens do dia a dia até coisas raras — disse Kewlny. — As lojas aqui vendem uma variedade absurda de produtos.
Ficelle parecia concordar.
— Hm. Também gosto do distrito oeste. Tem muita coisa.
Depois de dar uma boa explorada — embora o que conseguimos ver em poucas horas fosse limitado — resolvemos fazer uma pausa. A essa altura, eu já nem conseguia mais comparar Beaden com Baltrain. Normalmente, eu nunca fazia turismo, e se tivesse continuado na vila, explorar uma cidade grande dessas seria praticamente impossível.
— Hee hee — riu Ficelle. — Mestre Beryl, você tá com cara de quem nunca viu nada!
Dei uma risada meio sem graça.
— Aha... Que vergonha. Bom, eu sou do mato, né? — Não tinha como evitar. Qualquer um do interior ficaria empolgado com os encantos da cidade.
— Mestre, teve alguma coisa que você gostou mais? — perguntou Kewlny.
— Deixa eu ver... — Pensei por um momento. — Pra ser sincero, teve muita coisa, mas a loja de equipamentos mágicos foi a mais interessante.
— O mundo dos equipamentos mágicos é bem profundo — comentou Ficelle. — Fico feliz que tenha se interessado.
Achei que ela preferia livros, mas parecia que a Ficelle era ainda mais fascinada por itens mágicos.
— Você realmente curte esse tipo de coisa, né? — perguntei.
— Uhum. Tenho várias coisinhas — murmurou Ficelle, com um leve sorriso no canto dos lábios.
Não era todo mundo que podia usar magia, mas aparentemente, uma boa quantidade de itens mágicos circulava pela cidade. Esses itens eram mágicos por causa do material do qual eram feitos: uma pedra chamada magicita, que acumulava mana naturalmente. Como os próprios itens estavam imbuídos de magia, qualquer pessoa — até quem não tinha talento nenhum — podia usá-los.
Eu não conhecia muito os detalhes. Afinal, sou só um espadachim. Mas pelo que parecia, equipamentos mágicos podiam resolver um monte de problemas, desde aliviar fadiga até acelerar a cura e proteger contra queimaduras ou geada. Na verdade, pareciam itens essenciais pra qualquer aventureiro.
— Essa pausa foi ótima — falei. — Obrigado, vocês duas.
Tendo chegado a um bom ponto de parada, agradeci às minhas guias turísticas. Era um tipo de diversão que eu jamais teria descoberto sozinho, indo e voltando entre a hospedaria e o escritório da ordem.
— De nada!
— Hm.
Responderam de formas opostas, mas, pelo rosto delas, dava pra ver que estavam contentes. Isso era ótimo. Só andaram por aí com um velho num passeio entediante pela cidade — o fato de não terem se cansado nem se irritado era como ganhar nota máxima.
— Bom. Não é muita coisa, mas se vocês tiverem tempo, deixem que eu pago o jantar — sugeri.
— Hã?! Sério mesmo?! — exclamou Kewlny.
Mesmo no dojô, ela sempre foi de comer muito e dormir bastante. Um verdadeiro bálsamo pro coração. Nunca mude — você é perfeita assim.
— Isso ajuda. Tô morrendo de fome — disse Ficelle, olhando pra barriga, com a expressão de sempre.
Assenti.
— Então tá decidido. Alguma sugestão?
Era por minha conta, mas eu era um caipira recém-chegado à capital; não conhecia bons restaurantes e nem sabia o que elas gostavam. Bom, pelo menos a Kewlny parecia comer qualquer coisa. Já a Ficelle dava pinta de ser mais exigente.
— Ah! Quero ir ali! — disse Kewlny. — A lanchonete de kebab Regen!
— Concordo — disse Ficelle. — Também gosto de lá.
— Uma lanchonete de kebab, hein? Parece bom. Tô ansioso.
Tendo decidido o cardápio, nós três voltamos a caminhar. Tinha saído direto pro distrito oeste com a Kewlny logo depois do treino, então também estava com fome. No momento, Kewlny estava à minha direita e Ficelle à esquerda. Era um grupo bem diferente do da última vez que andei pela cidade com alguém, mas não estava nada mal. De certo modo, parecia que eu era o pai delas... embora isso fosse mais por causa da Kewlny. Acima de tudo, eu não precisava me preocupar com olhares e podia simplesmente aproveitar o passeio. Um homem mais velho andando com duas garotas jovens chamava um pouco de atenção, mas não o suficiente pra incomodar.
Depois de mais um tempo andando pelo distrito oeste, chegamos a uma lanchonete de kebab de frente pra rua principal.
— Aqui! O kebab de javali deles é uma delícia!
— Hmm, javali, é? — murmurei.
Javalis eram animais selvagens com cerca do tamanho médio de um adulto humano. Caçadores em Beaden traziam eles como caça o tempo todo. A carne, às vezes, era meio dura, o que exigia um bom esforço pra mastigar, mas isso fazia parte da experiência — a textura também variava bastante dependendo da forma como fosse preparada. Javalis podiam ser encontrados por toda Liberis, então havia muitos métodos culinários já estabelecidos.
— Tio! Três espetinhos de javali!
— Saindo já!
Aparentemente, esse era o tipo de restaurante onde dava pra ver a comida sendo preparada do lado de fora. Kewlny gritou o pedido pro que parecia ser o chef, e o homem respondeu com entusiasmo, espetando pedaços de carne crua de javali e alinhando-os sobre uma grelha de carvão.
— Oooh... — Fiquei observando a carne assando. — Já tá com uma cara ótima.
Ficelle assentiu.
— Mm. O javali daqui é divino. Eu garanto.
Ver a carne marinada pingando gordura direto no fogo me deixou ainda mais faminto — o cheiro da carne assando com aquele molho agridoce atiçava o apetite. Parecia delicioso. Pedaços grandes de carne também. Só um espeto desses já devia encher bem.
— Uau, esse lugar tá bem cheio — comentou Kewlny, olhando em volta casualmente.
— Tá sim — concordou Ficelle. — Lotado.
— Hmm...
Muita gente tava comprando espetinhos, e vi até uns andando por aí e comendo direto do espeto. A loja até tinha uma área com mesas, mas infelizmente, todas estavam ocupadas.
— Kewlny, você mora no distrito leste, né? — perguntei. — É bem longe. Que tal comermos andando?
— Fechado! — exclamou Kewlny. — Faz tempo que não faço isso!
— Eu também moro no leste. Funciona bem pra mim — disse Ficelle.
E assim, decidimos seguir o exemplo dos grandes sábios do passado e jantar caminhando.
— Aqui estão! Três espetinhos de javali!
— Valeu.
Paguei pela comida e peguei os três espetos com o chef do lado de fora da loja. É, estavam enormes mesmo, e ganharam vários pontos comigo pelo molho levemente queimado na carne — dava pra ver que o chef sabia fazer um bom churrasco. Realmente, esse lugar merecia o selo de aprovação da Kewlny e da Ficelle.
— Beleza, Mestre! Vamos comer!
— Mm. Itadakimasu.
— Isso aí, pega o seu. Manda ver.
Kewlny deu uma mordida generosa, enquanto Ficelle beliscava só as pontas. As duas eram totalmente opostas até na forma de comer. Nunca pareceram nem muito próximas nem distantes nos tempos do dojô, mas talvez tivessem tido mais chances de se aproximar aqui na capital. Tanto faz. Eu não ia me meter na vida pessoal delas, e não tinha nada melhor do que ver gente se dando bem.
— Mm. Delicioso.
Mordi o espeto de javali. O pedaço grosso de carne derreteu na boca com uma maciez surpreendente. Hmm, provavelmente deixaram o javali marinando por um bom tempo antes de cozinhar. Um chef que conseguia deixar carne de javali assim tão macia não era um qualquer. A cada mordida, o suco escorria, misturando com o molho aromático e cobrindo minha língua com um sabor absurdo. Muito, muito bom. Senti até minhas bochechas fraquejarem. Ah, isso que é vida.
— Mmmmmm! Uma delícia! — vibrou Kewlny.
— Só cuidado pra não tropeçar — avisei.
Ficelle balançou a cabeça.
— Aff, Kewlny, às vezes é difícil te ver assim.
— Mrgh! Que grosseria! — reclamou Kewlny. — Eu sou uma cavaleira, tá?!
E fomos nos afastando da loja de espetinhos, provocando uns aos outros o tempo todo.
—Hm?
Estávamos indo em direção à diligência num ritmo tranquilo, aproveitando a refeição, quando, de repente, ouvimos uma agitação mais adiante. Diferente da agitação natural do distrito comercial, esse alvoroço parecia barulhento demais.
Um grito se espalhou pela multidão. —Ladrão de bolsas! Alguém pega ele!
Um batedor de carteiras, é? Lá em Beaden não tínhamos idiotas assim. Então era verdade que a bandidagem aparecia mesmo nas cidades grandes. Virei na direção da voz e vi um homem abrindo caminho no meio da multidão, correndo para longe de uma barraca de rua não muito distante. Ele olhava várias vezes pra trás enquanto desviava habilmente das pessoas à frente. Provavelmente era o culpado. Pelo jeito como se movia, não era a primeira vez—não havia hesitação nenhuma nos movimentos.
—E agora, o que se faz numa situação dessas?—murmurei.
Coincidentemente, o ladrão estava vindo direto na nossa direção. Será que seria melhor capturá-lo? No fim das contas, eu não aprovava esse tipo de coisa. Roubo era crime. Isso era óbvio.
—Hm. Deixa comigo—disse Ficelle. —Não precisa se incomodar com isso, Mestre.
—Hahaha, você realmente tem uma opinião alta sobre mim.
“Não precisa se incomodar?” O que exatamente as pessoas veem em mim?
—Kewlny, segura aqui.
—Tá legal!
Ficelle entregou o espeto pra Kewlny e puxou sua espada longa de dentro do manto.
—Ficelle, não vai dar ruim usar uma lâmina de verdade?—perguntei.
—Vai ficar tudo certo. Deixa comigo.
Ficelle não deu bola pra minha preocupação e empunhou a espada. Kewlny parecia confiar nela e continuava despreocupada, segurando um espeto em cada mão.
—Sai da frente!
O ladrão se aproximava correndo. Era um homem com aparência bem comum, porte mediano. Parecia um pouco mais jovem que eu e corria a uma velocidade considerável, ameaçando quem aparecia na frente. Pela roupa, não era alguém muito bem de vida. Bom, quem liga pra aparência geralmente não sai por aí roubando os outros.
Mesmo chamando bastante atenção, ninguém se movia pra detê-lo. Todo mundo só olhava, como se não fosse problema deles. Acho que é assim mesmo nas cidades grandes. Lá em Beaden, qualquer crime fazia a vila inteira pular em cima do sujeito, mas, pelo visto, era só uma diferença de cultura. Ainda assim, crime era crime. E precisava ser punido. Isso era senso comum.
—Hah!
Ficelle soltou o ar bruscamente e desferiu um golpe com a espada numa movimentação fluida. Vi algo sendo lançado da lâmina e consegui acompanhar com os olhos.
—Ei! Tô falando! Sai da fren— Urgh?!
No exato momento em que o ataque de Ficelle—aquela coisa que ela lançou com a espada—atingiu as pernas do ladrão, ele despencou no chão. Foi como se tivesse tropeçado em algo invisível.
—O que foi isso?—perguntei.
Provavelmente era magia, mas até onde consegui ver, não tinha força letal nenhuma. Algo bem útil em situações como essa. Continuei assistindo como qualquer outro curioso na multidão.
—Mandei um corte voando como se fosse um projétil—explicou Ficelle, com naturalidade. —Seria um problema decepar as pernas dele, então só enviei a força do impacto, não a lâmina em si.
Ela falou como se não fosse nada demais. E, pra ela, provavelmente não era mesmo—na cabeça dela, tinha feito só o básico. Mas pra todo mundo em volta, aquilo era algo incrível. Magia era mesmo uma loucura.
—Kewlny, cuida do resto—disse ela.
—Beleza! Fica com esses aqui!—Kewlny passou os espetinhos pra ela.
Essas duas funcionam perfeitamente em sincronia. Kewlny foi até o ladrão caído e o imobilizou na hora. Era ágil e habilidosa. Não parecia ser a primeira vez que prendia alguém.
—Q-Q-Quem diabos são vocês?! Droga!
—Ordem de Liberion. Renda-se sem resistência.
O tom de Kewlny era o de sempre, mas de algum jeito, soava muito mais gelado. Fiquei até um pouco surpreso de ouvi-la falar daquele jeito.
—Você é incrível, Ficelle.—Quis elogiá-la pela forma fácil como derrubou o ladrão. —Aquilo foi insano.
—Não é pra tanto—respondeu secamente. —Foi o básico do básico...—e puxou o manto em volta do corpo, virando o rosto.
É, esse velho aqui mandou mal.
—Esse tipo de coisa faz parte do trabalho de vocês?—perguntei.
—Uhum. A ordem e o corpo mágico são vinculados ao governo do país. Também temos autoridade pra lidar com casos assim.
Era meio óbvio que a ordem e o corpo mágico tinham esse tipo de função, mas nunca pensei que veria isso de perto. Até considerei capturar o ladrão, mas as duas agiram na hora. Com certeza estavam à altura de suas posições.
—Esse tipo de coisa acontece muito aqui em Baltrain?—Como sempre, eu parecia um caipira curioso, mas fiquei interessado. Lá no interior, esse tipo de situação era raríssimo. Pensando bem, eu realmente não sabia nada sobre a segurança pública da capital.
—Depende do distrito da cidade—explicou Ficelle. Pelo visto, ela já tinha dado o trabalho por encerrado e voltou a comer sua carne. —O distrito oeste tem muitas lojas e gente, então às vezes acontece.
—Entendi...
Muita gente se reunia em Baltrain, então não era estranho que alguns criminosos aparecessem. Afinal, nem todo mundo é do bem. Como instrutor de esgrima, isso me deixava com sentimentos mistos.
—Mestre! Fice! Vão na frente!—gritou Kewlny, levando o ladrão com as mãos amarradas nas costas. —Preciso levá-lo pra delegacia!
—Bom, ela que disse. Tudo certo pra você?—perguntei à Ficelle.
—Uhum. Não me importo.
Kewlny e Ficelle realmente estavam acostumadas com esse tipo de coisa. Certo seria Ficelle ir com ela—mesmo que o ataque tivesse sido só uma onda de choque à distância, ela ainda estava envolvida. Mas parecia meio sem graça tocar nesse assunto. Kewlny provavelmente sabia disso e decidiu levar o cara sozinha mesmo.
Movido por um sentimento de carinho paternal, falei:
— Acho que vou ter que levar a Kewlny pra comer alguma coisa de novo depois.
— Você tá mimando ela — retrucou Ficelle.
— Hahaha! Que rígida. Então eu não posso mimar a Kewlny? É... acho que não posso mesmo. Mas ela tá se esforçando de verdade.
Com esses pensamentos na cabeça, observei Kewlny levar o sujeito embora. Era impressionante. Ela segurava firme, e apesar do porte pequeno, tinha uma força considerável.
— Vamos?
— Mm.
Não tinha mais nada pra fazer ali. A gente não ia ficar parado pra sempre, então o único caminho era encerrar e voltar pra casa.
No fim das contas, foi assim que acabamos presenciando uma pequena confusão enquanto comíamos carne na rua.
— E o espetinho da Kewlny...? — perguntou Ficelle.
— Aaah...
Depois de encarar o espeto de carne meio comido que ela tinha deixado, cada um seguiu seu caminho.
◇
— Hwaaah...
A luz da manhã invadia pela janela, despertando minha mente. Ainda era só o comecinho do dia. Levantei e olhei a cidade pela janela, mas quase não havia movimento nas ruas. Quando mais jovem, sempre fui do tipo que dormia cedo e acordava cedo, mas parecia que andava perdendo o ritmo nos últimos anos. Era isso que significava envelhecer?
Me vesti rapidamente e desci do segundo andar da hospedaria até o saguão. Disseram que essa hospedaria era simples, mas comparada aos alojamentos públicos lá em Beaden, era muito bem construída.
— Bom, até é meio rude fazer essa comparação — murmurei enquanto descia as escadas. Mesmo as piores hospedarias do distrito central de Baltrain tinham que manter um padrão alto. Caso contrário, fechariam rapidinho.
Sentado no balcão da recepção estava o dono da hospedaria.
— Bom dia, Sr. Gardinant — disse ele. — Acordado cedo como sempre, hein?
— É, bom dia. Hábito.
Tava pensando em fazer uma refeição simples antes de dar uma caminhada matinal. Depois de andar com a Kewlny e a Ficelle outro dia, achei que seria legal conhecer mais um pouco de Baltrain. Talvez até encontrasse outros lugares interessantes.
— O de sempre, por favor.
— Já vai sair.
Já fazia um tempo desde que escolhi essa hospedaria como base. O dono já conhecia minha rotina, então conseguia preparar meu café da manhã mesmo com um pedido vago. Era uma sensação boa, de certo modo. Me fazia sentir um cliente habitual — mesmo que só de uma hospedaria qualquer.
— Valeu pela comida.
Um café da manhã simples foi colocado à minha frente, e saboreei levemente a refeição: pão, bacon, ovos, salada e leite. Simples, mas a qualidade dos ingredientes e o sabor eram excelentes. Como se espera de um lugar no distrito central.
— Beleza, hora de ir.
Me animei — bom, talvez seja exagero — e saí da hospedaria pra tomar um ar. Comecei andando em direção a uma fileira de prédios um pouco mais altos. Essa rua era mais estreita que as avenidas principais, mas ainda assim bem pavimentada e cuidada. Era um lembrete de que eu estava numa cidade gloriosa. Decidi andar sem rumo por um tempo. Ainda tinha bastante tempo até o início do treinamento dos cavaleiros.
— Hmm, o tempo tá bom hoje. O ar tá ótimo.
Depois de caminhar um pouco, cheguei a uma rua larga e vazia. Mesmo sendo uma via principal, ainda era cedo demais pra carruagens estarem circulando, e quase não havia pedestres.
— Acho que essa parte da cidade é bem antiga.
Não tinha reparado antes, mas nenhum dos prédios parecia novo. Pelo estado das paredes, já tinham visto muitos anos. Como era o distrito central, provavelmente era o núcleo original de Liberis há séculos. Natural imaginar que a cidade tenha se expandido pra outros quatro distritos ao longo da história.
— Ei, você aí.
Não sou especialista em cultura nem historiador, então não fazia ideia dos detalhes sobre o desenvolvimento de Baltrain. Mas era um bom exercício deixar os pensamentos vagarem assim.
— Você! Ei! Vai me ignorar até quando?
Já que tô por aqui, talvez seja uma boa visitar o palácio de Liberis depois de tanto tempo. Ver aquele castelo antigo talvez me trouxesse alguma lembrança ou me emocionasse de alguma forma.
— Não me ignora!
— Uou?!
Me assustei com a voz alta e repentina. Quase infartei! Tava ouvindo alguém falar fazia um tempinho, mas nem passou pela minha cabeça que era comigo.
— Hã... precisa de alguma coisa, mocinha?
Quando me virei, fiquei um tanto surpreso com quem estava ali. Era uma garotinha que não devia ter mais de dez anos. Tinha cabelos loiros brilhantes que iam até a cintura, reluzindo sob o sol da manhã. A pele era tão branca que parecia translúcida, radiante, e ela esbanjava saúde. E a roupa... deixava as coxas e os ombros à mostra. No interior não existiam roupas assim. O traje já era chamativo por si só, mas dava pra notar de cara que era de altíssima qualidade. Tinha bordados delicados por todo o tecido, e apesar de ser um pouco curto, podia ser descrito como uma túnica, que ressaltava ainda mais sua figura fofa. Essa era a impressão geral que tive dela.
— Quem você tá chamando de mocinha?! — gritou ela. — Aff... Você é o Beryl Gardinant, certo?
— Sou sim... Por quê?
Ela claramente não gostava de ser tratada como criança, mas era tão nova que não dava pra evitar. Mais importante ainda, fiquei surpreso por uma garotinha dessas saber meu nome.
— Eu sou Lucy Diamond — disse ela. — Comandante do Corpo Mágico do Reino de Liberis.
— Então o nome da mocinha é Lucy, hein?
— Presta atenção no que eu falo! E para de me chamar de mocinha!
Essa menininha é a comandante do Corpo Mágico? Hahaha, que piada maravilhosa. Tava vestida como uma maga, então provavelmente era daquelas crianças que admiravam magos e sonhavam em ser um quando crescessem. Eu mesmo era assim — fingia lutas de espada com meus amigos da vila. Que lembrança nostálgica.
— Argh! Você não entende de jeito nenhum! — Lucy gritou. — Que tal isso?!
Ela levantou a mão imediatamente. Achei que tava só brincando, mas...
— Hm...? Uou?!
Uma chama surgiu na palma dela. O ar se incendiou, soltando um som violento que despertava um medo instintivo. A área ao redor foi iluminada conforme as chamas ganhavam força.
—Agora entendeu? — perguntou Lucy.
—Uhh... O quê? Sério?
Ela apontou casualmente pra mim com uma mão que estava literalmente incandescente. Não é possível. Sério? Essa garotinha é mesmo a comandante do corpo de magos? Essa organização era subordinada direta da nação — a Ficelle fazia parte também. Era uma das nossas principais forças militares, e sua reputação rivalizava com a da Ordem de Liberion.
—Bom, dá pra ver que você não é qualquer uma — comentei.
—Hmph. Isso mesmo, isso mesmo.
Eu não tinha como confirmar se o que ela dizia era verdade, então, por enquanto, decidi simplesmente aceitar que a garota à minha frente não era uma criança comum.
—Mas deixando isso de lado — continuei —, acho que você não devia ficar conjurando fogo assim no meio da cidade.
—Erk... Mrgh...
Ser uma maga não dava a ela licença pra acender uma fogueira no meio da rua. E se o fogo se espalhasse? Eu até entendia a vontade dela de me fazer reconhecer o poder que tinha, mas como um simples homem comum, não podia ignorar um ato tão perigoso.
—Então, hum... Lucy? Precisava de alguma coisa?
—Ooh, sim, verdade.
Descobri que ela realmente detestava ser chamada de “garotinha”, então decidi cortar isso. Ela ainda era uma menina aos meus olhos, mas seria problemático se surtasse do nada e me queimasse. Depois de apagar o fogo na mão esquerda, Lucy voltou ao assunto principal, agindo como se tivesse acabado de lembrar o motivo de ter me chamado.
—Ouvi falar de você pela Fice — disse ela. — Vou te emprestar um momento.
Eu já esperava algo assim, já que ela sabia meu nome. Parece que tinha algum assunto direto comigo. Só não fazia ideia do que se tratava.
—Você tá livre agora, não tá? — afirmou.
—Bom... Acho que sim.
Ela apareceu do nada e exigiu meu tempo logo de cara. O jeito insistente dela não me deu margem pra recusar. Apesar do tamanho, essa garota era bem arrogante e mandona. Como será que os pais criaram uma criança assim?
—Você foi requisitado pessoalmente pela comandante do corpo de magos — disse ela. — Pode demonstrar um pouco mais de gratidão, se quiser.
—Ha ha ha. Vamos fingir que tô grato.
Bom, não tinha nenhum plano específico pra manhã mesmo, então não era má ideia seguir Lucy enquanto aproveitava a paisagem da capital. Só que eu realmente não fazia ideia de onde ela queria me levar. Um velho de quarenta e poucos anos andando de manhã com uma garotinha que parecia ter uns dez? Hm. Eu tinha topado e decidido ir com o fluxo, mas... pra quem visse de fora, isso não ia parecer meio suspeito? Se possível, queria evitar ser parado pelos cavaleiros ou pela guarda local.
—Ah, e para de me tratar como uma criança — acrescentou Lucy. — Provavelmente sou muito mais velha que você.
—Hã?
Mais uma ótima piada. Não importa o ângulo, Lucy era uma garotinha. Claro, era muito mais bonita que qualquer uma das garotas do interior, então com certeza cresceria e viraria uma bela mulher. Tinha potencial de sobra. Sua beleza era diferente da da Allusia, mas também não faltariam pretendentes no futuro. De qualquer forma... mais velha que eu? Eu ia fazer quarenta e cinco esse ano.
—Você não acredita, né? — disse Lucy, com um sorriso amargo no rosto em vez de um olhar ofendido. — Bom, se é assim que você vê, vamos deixar por isso mesmo.
—Ah, fala sério, quem é que acreditaria nisso?
Pensando melhor, o jeito dela e o ar que carregava não batiam com o de alguém tão jovem. Eu tinha focado demais na aparência, que era bem marcante, e não tinha prestado atenção nesses detalhes mais sutis até ela mencionar a idade. E ainda tinha usado magia antes. Por ora, decidi reconhecer que ela não era uma garota comum. Pra falar a verdade, eu não queria discutir sem motivo, ainda mais com uma criança.
—Bom, mudando de assunto — disse Lucy —, como mencionei antes, ouvi falar de você pela Fice.
—Ah, você quer dizer a Ficelle? — perguntei.
—Isso mesmo.
Aparentemente, todo mundo chamava ela de Fice, igual o Kewlny fazia. Eu nunca usei apelidos pra ninguém, então isso era até uma experiência nova. A Ficelle tinha sido uma aluna preciosa pra mim, mas como instrutor, eu precisava manter uma certa distância. Por isso sempre chamava todos pelos nomes completos.
—A Fice tem se divertido bastante ultimamente — murmurou Lucy. — Provavelmente é porque conheceu você.
—É mesmo...? Tomara que seja isso.
A expressão de Lucy não era nada infantil. Independente da verdade, o mistério dela ser mais velha do que parecia só crescia a cada segundo.
—Pelo que ouvi, você é o mestre da Fice — afirmou.
—Mm-hmm. Isso mesmo. Mas olha, eu não entendo nada de magia, viu?
Fomos andando enquanto conversávamos. Ela ainda não tinha dito pra onde estávamos indo ou qual era o objetivo, mas pelo jeito confiante com que caminhava, parecia saber exatamente o destino.
—A magia com espada da Fice é incrível — disse Lucy. — Ela tem, sim, talento pra magia, mas sua habilidade com a espada também é impressionante. Deve ter tido um ótimo professor.
—Eu não sou tudo isso — respondi de forma casual. — As habilidades da Ficelle são fruto do esforço dela.
Não dá pra dizer que eu não tive nenhuma participação no crescimento dela, mas boa parte do que ela conquistou foi graças ao próprio talento e dedicação. Eu não ia sair por aí dizendo que a força dela era exclusivamente por minha causa.
—Muito bem, acho que aqui serve — disse Lucy, parando de repente.
—Tem alguma coisa por aqui...? — perguntei.
Eu não sabia quanto tempo havíamos passado caminhando. Nosso destino era uma área pouco habitada, com construções relativamente pequenas — pelo menos, pequenas para os padrões da capital. Em termos do distrito central, aquele ponto era praticamente deserto. O sol começava a surgir no horizonte, então já devia ter se passado bastante tempo, mas ainda não havia ninguém à vista. Um silêncio quase absoluto pairava sobre o local. Era surpreendente que um lugar assim existisse no meio de Baltrain.
— Eu amo magia, sabe? — começou Lucy, virando-se para mim com uma expressão misteriosa. Ela parecia ao mesmo tempo encantada e angustiada. Se ela realmente tivesse a idade que aparentava, seria impossível fazer um rosto tão sedutor. — Eu estudo e pesquiso magia todos os dias.
— Entendo o que você quer dizer. Eu também treino com minha espada todos os dias.
Esgrima era relativamente simples, mas sair por aí balançando uma espada a esmo não te tornava um espadachim melhor. Magia devia ser muito mais complicada nesse sentido. As habilidades de um mago eram construídas sobre a sabedoria de pioneiros, e os praticantes modernos acumulavam um conhecimento vasto através de incontáveis experimentos. Mesmo agora, essa arte estava em constante expansão e evolução.
— Talvez seja apenas da minha natureza — continuou Lucy —, mas eu quero sentir de verdade o meu crescimento. Quero testar os resultados da minha pesquisa. É só nisso que consigo pensar.
— O mesmo vale para a esgrima. É importante perceber sua própria evolução.
Uma pequena chama surgiu na mão esquerda de Lucy. Não era aquela labareda imensa que ela havia criado antes — era só do tamanho de um punho.
— Eu quero testar isso. — Ela manteve o sorriso encantador, mas de repente, uma aura assassina tomou conta dela. — Contra um oponente forte.
— Hã?!
Foi meu instinto de espadachim? Ou o puro instinto humano? Pulei para o lado no mesmo instante em que uma labareda explodiu exatamente no lugar onde eu estava segundos antes.
— Hmm. Reação rápida, como eu esperava. Você realmente faz jus a ser o mestre da Fice. — Lucy levantou a outra mão. Acompanhando o movimento do braço dela, várias chamas começaram a se formar e tomar forma.
— Você não tá brincando, né?! — exclamei.
E agora? Devo sacar minha espada? Se fosse pra levar as palavras dela ao pé da letra, aquilo era só um teste das habilidades dela. Eu não sabia que tipo de conversa ela tinha tido com a Ficelle, mas Ficelle era uma maga ativa do corpo mágico que também praticava magia com espadas. Suas histórias sobre mim como instrutor provavelmente despertaram o interesse de Lucy.
O problema é que eu não estava com uma espada de madeira — minha arma era de aço, e certamente podia ferir alguém. Eu estava sentindo uma agressividade séria vindo dela, e percebi que ela não estava lançando aquelas chamas só por diversão. Mas até que ponto ela estava sendo séria? Não havia como medir isso.
— Qual o problema? — perguntou Lucy. — Não precisa se conter. Venha com tudo.
— Não tô com vontade, tá legal?!
Não sabia se Lucy simplesmente não conseguia mais manter as aparências ou se tinha decidido jogá-las fora de vez. O tom dela era calmo, mas parecia que estava tendo dificuldade de conter o sorriso. O contraste entre sua expressão extasiada e seus traços infantis a fazia parecer ainda mais provocante.
Sério, minha vida vinha sendo só uma sequência de surpresas desde que cheguei a Baltrain. Tinha sido a Allusia, depois a Selna, e agora a Lucy. Por que tantas pessoas poderosas e bem-sucedidas tinham que se envolver comigo assim?!
— Não sou tão forte quanto dizem — murmurei.
— Que declaração mais estranha.
Estranha por quê?! Isso não é estranho coisa nenhuma!
Depois de um breve momento de hesitação, decidi sacar minha espada. Tentei deixar claro que não era forte, mas esse era o tipo de comportamento que eu já esperava dela — ela não ia me ouvir mesmo.
— Vamos começar! — exclamou Lucy.
— Mas eu não quero começar nada!
Droga! Dane-se! Reclamando tudo que podia, me impulsionei do chão em direção a ela.
— Hup!
— Opa?!
Eu queria encurtar a distância imediatamente, balançar minha espada e acabar com aquilo de uma vez, mas uma parede de fogo surgiu de repente, bloqueando meu caminho.
— Estaria em desvantagem se deixasse você se aproximar assim tão fácil — disse ela.
— Magia é conveniente demais! — gritei, irritado.
Do ponto de vista de um espadachim, a capacidade de atacar à distância sem deixar brechas era algo de encher os olhos. Ver a Lucy fazendo isso com tanta facilidade me encheu de respeito, admiração... e uma pitada de indignação do tipo “Mas o que diabos você tá fazendo?!”
— Vamooos! Vamooos! Vamooos! Vamooos! — ela gritava como se estivesse se divertindo.
— Argh... Sua...!
A batalha virou uma chuva incessante de magia, magia e mais magia. Fogo se enrolava ao meu redor, ventos gelados passavam zunindo, e trovões sacudiam o ar. Usando apenas as pernas, eu corria por aquele cenário infernal. Nunca na vida tinha enfrentado um mago. Minha única experiência com combate eram as lutas simuladas com meus alunos e cavaleiros, além de algumas brigas contra animais selvagens e monstros que rondavam a vila. Antes de vir pra capital, eu nem sequer tinha conhecido alguém que soubesse usar magia. Sendo assim, ser forçado a lutar com a Lucy me ensinou uma coisa — espadachins têm a pior compatibilidade possível contra magos.
— Shah!
Parti ao meio um bloco de gelo que vinha na minha direção. Caramba! Essa foi por pouco! Um segundo a mais e eu teria virado panqueca!
— Oooh, você cortou aquilo?! Ha ha ha! Isso tá ótimo!
— Todos os magos jogam magia pra tudo quanto é lado assim?! — reclamei no impulso, enquanto desviava das chamas, cortava gelo e me esquivava de raios. Sério mesmo, eu duvidava que até um mago da corte tivesse tantos efeitos assim pra mostrar.
— Claro que não! Poucos são capazes de produzir tanta energia assim!
A batalha havia começado por causa da declaração unilateral da Lucy. Nossas posições iniciais nos colocaram a poucos passos um do outro, mas agora eu me via à distância, incapaz de me aproximar. Passei todo o tempo me defendendo desesperadamente da chuva de feitiços enquanto ela permanecia fora do alcance da minha espada.
Se eu estivesse enfrentando um ataque com mais substância física, teria conseguido cortá-lo e avançar. Mas havia muitos tipos de magia que não podiam ser bloqueados fisicamente com uma espada. E, pra piorar, o bombardeio mágico era incessante. Eu não sabia se todos os magos eram capazes daquilo ou se era só a Lucy, mas, sinceramente, a magia dela me colocava numa posição muito difícil.
— Eu não reclamaria de um pouco de piedade pros mais velhos! — gritei.
— Hmph, do que você tá falando? — Lucy zombou. — Eu já disse que sou mais velha que você!
No instante em que tentei avançar, uma flor flamejante brotou do chão, me fazendo tropeçar. Fiquei muito consciente de uma coisa — se defender fisicamente da magia era difícil, desviar era ainda pior. Magia não tinha uma “origem” definida como uma arma convencional. Ela até levantava a mão antes de lançar, mas isso não era suficiente pra prever quando e onde o ataque iria surgir. A única opção era desviar depois que a magia já estivesse no ar, e isso era bem estressante.
— Que tal essa?! — exclamou Lucy.
— Droga!
Além de fogo, gelo e relâmpagos, ela agora estava usando algo como um jato de água pressurizada. Bloqueei com o lado plano da minha espada longa e desviei o jato. Ao contrário do fogo e da eletricidade, a água tinha substância física, então, mesmo sendo mágica, era bem mais fácil de lidar com uma arma.
— Hmm, pensar que você conseguiria lidar até com isso — comentou Lucy. — Nada mal.
— Você tá se achando demais!
Ninguém me convidou pra um balé com projéteis mágicos. Dada a chance, eu preferia mil vezes uma dança de verdade com uma garota fofa. Não que eu saiba dançar...
Enfim, se alguém estivesse assistindo à luta, provavelmente pensaria que Lucy e eu estávamos empatados. Nenhum dos dois tinha um jeito de dar o golpe final. Eu não conseguia me aproximar dela, então não podia atacar. E ela não conseguia me acertar com a magia, então também não podia me derrotar.
Muito provavelmente, ela tinha poder pra lançar feitiços de alcance mais amplo, mas essa não era uma luta de vida ou morte. Era mais um teste pra comparar habilidades. E, além disso, se ela ampliasse o efeito dos feitiços, acabaria causando danos consideráveis à cidade ao redor. Ela sabia disso — dava pra perceber que estava se restringindo a magias que focavam num único alvo.
— Eu nem pretendia me empolgar tanto... — murmurou Lucy, me observando enquanto eu desviava de uma bola de fogo com um movimento de ombro. — Então, essa aqui é só pra você.
— Hm...?
Será que agora é minha chance de encurtar a distância? Não sei o que ela quis dizer com “se empolgar”, mas parecia estar aliviando os ataques. Seria exagero cortá-la, então talvez um golpe com o punho da espada fosse suficiente pra acabar com essa luta sem sentido.
Eu tava encharcado por causa da magia da água. Minha franja tava um pouco chamuscada pelo fogo. Minhas roupas estavam meio queimadas pelos relâmpagos. Não era uma boa ideia deixar essa batalha se prolongar mais.
— O quê?!
No instante em que me preparava pra avançar, senti um arrepio horrível, e uma premonição tenebrosa fez meu corpo inteiro se lançar pro lado.
— Mas olha só... Você até desviou dessa?
Nem um segundo depois, o espaço se distorceu no exato lugar onde eu estava. Caramba! Foi por pouco demais! Que diabos foi isso?! Aquilo não era nem de perto tão “leve” quanto fogo ou água! Parecia que o espaço em si tinha sido devorado. Se meu torso tivesse sido atingido, estaria um desastre agora. Senti um medo imenso da magia que ela acabou de usar.
— Haaah... Chega! Chega! Acabou! — gritou Lucy.
Justo quando eu ainda estava tentando digerir aquele ataque bizarro e inédito, Lucy encerrou abruptamente essa briguinha inútil — a mesma que ela mesma começou. E ainda estava agindo como se não tivesse sido a culpada.
— Ficou satisfeita? — perguntei.
Lucy levantou os dois braços pro alto com naturalidade. Mas eu não tô satisfeito, não! Tô é cheio de reclamações! Quem é que acha divertido ser arrastado de repente pra uma luta sem sentido?! Eu não sou maníaco por batalha, caramba!
— Com certeza — respondeu Lucy, com uma expressão absurdamente satisfeita. — Mas acabei me empolgando demais no final. Se você conseguiu desviar daquele feitiço, então eu não sou capaz de te acertar com meios convencionais.
— Obrigado pelo elogio... — Meus ombros caíram. Acho que ela conseguiu testar a porcaria do experimento ou pesquisa de magia dela, sei lá. Mas eu não queria nunca mais enfrentar essa mulher.
— Só por curiosidade — falei. — O que teria acontecido se aquele feitiço tivesse me acertado?
Fogo, água e relâmpagos são fenômenos naturais, então, mesmo sendo minha primeira luta contra uma maga, dava pra ter uma noção do que esperar. Mas aquele último ataque... estava totalmente além da minha compreensão.
— Hm? Normalmente, a parte do corpo atingida seria arrancada, e fim — respondeu ela. — Mas relaxa. Eu ajustei o feitiço pra não te deixar assim.
— Ah... É mesmo...?
Assustador. Não puxa um troço desses do nada! Mesmo que seja a versão “ajustada”, como é que eu ia saber disso?!
— De qualquer forma, você é realmente forte — disse Lucy. — Agora entendo por que o Fice te admira tanto.
— Que nada. Você tá exagerando nos elogios — retruquei, balançando a cabeça. — Numa luta sem restrições, tenho certeza que você poderia ter me derrotado a qualquer momento.
Com o tanto de poder que a Lucy tinha, ela podia ter me derrotado várias vezes. Se ela simplesmente tivesse coberto toda essa área com fogo, eu já estaria estirado no chão depois do primeiro ataque. Mas isso só se o objetivo dela fosse me matar. Quando era só pra testar as coisas, como nessa luta, esse tipo de abordagem não servia.
Lucy deu uma risadinha.
— Hee hee... Então você não ficou bravo?
— Hm? Aah... Bom, digamos assim—você foi um pé no saco.
— Ha ha ha ha! Foi mal aí!
Alguém muito acima das minhas habilidades tinha resolvido brigar comigo. Ela me colocou numa situação superdesfavorável e foi tão longe que, se eu tivesse cometido um erro, podia ter morrido. Normalmente, a reação certa seria gritar sobre o quão absurda ela foi, mas por algum motivo, eu não estava com vontade de fazer isso.
Talvez fosse puro cansaço. Ou talvez resignação. No fim das contas, a luta já tinha acabado, então reclamar era inútil. Vai ver eu só estava emocionado por ter visto magia pela primeira vez. Minha cabeça estava uma bagunça de emoções, mas por alguma razão, eu não sentia raiva.
— Bom, como posso dizer? — disse Lucy. — Eu sei que fui errada em te provocar. Como pedido de desculpas, passa lá no Instituto de Magia qualquer dia. Prometo que vai valer a pena.
— Mas eu não tenho talento nenhum pra magia... — murmurei. — Bom, eu dou um pulo lá se tiver a chance.
O Instituto de Magia era tipo uma escola de treinamento pra magos, mantida pelo reino. Quem conseguia usar magia era considerado valioso, então o país investia pesado pra garantir gente com esse talento. Como comandante da tropa mágica, fazia sentido a Lucy ter tanta influência lá dentro.
Dito isso, eu não via muito como a magia podia ser útil pra um espadachim como eu. Ainda assim, dava pra dizer que eu tinha feito uma conexão com a chefe da tropa mágica sem sair ferido. E agora que a capital era minha base de operações, era melhor manter as portas abertas. Não que eu fizesse muita coisa por aqui—era só um velho instrutor do interior.
— Ah, quando minha pesquisa sobre magia nova avançar, faço questão que você seja meu oponente de novo — disse Lucy.
— Ah, recuso de cara — respondi na hora.
— Por quê?! Não se divertiu nem um pouquinho?!
— Isso e aquilo são coisas bem diferentes! — Eu não tinha vidas suficientes pra ficar me metendo nesse tipo de encrenca.
E foi assim que conheci a Lucy.
Também foi assim que uma bela manhã infernal passou voando.
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