Mui Freya
Eu não tinha nenhuma lembrança dos meus pais. Eles sumiram depois que eu nasci, desapareceram sabe-se lá onde. Ou talvez estivessem mortos. Isso nunca me incomodou muito — eu não tinha o luxo de sentar e ficar me preocupando com isso. Sempre era mais importante descobrir como sobreviver por mais um dia.
Minha irmã mais velha me criou desde pequena, e estar com ela era a única vida que eu conhecia. Quando eu era bem nova, a gente morava numa casa bem caída. Por eu ser só uma criança, minha irmã sempre priorizava me dar comida antes de comer ela mesma. Eu nunca me perguntava de onde vinha a comida — só vivia o dia a dia, comendo o que aparecia na mesa.
Mas os anos foram passando, e eu via minha irmã voltar pra casa sempre parecendo um trapo. Foi aí que percebi que ela não podia continuar carregando tudo sozinha. Eu precisava ajudar. Que idade eu tinha na época? Não lembro ao certo, mas lembro até hoje de ter dito isso pra ela. Minha irmã ficou surpresa por um instante, mas depois me deu uma bronca com aquele tom suave dela, dizendo que eu não precisava me esforçar tanto. E, do nada, eu retruquei, dizendo que não estava forçando nada. Não foi bem uma briga, mas fiquei meio irritada por ela não deixar eu ajudar.
Com o tempo, acabei acompanhando minha irmã e fazendo todo tipo de bico nos becos da cidade. Isso virou rotina. Todo dia eu me matava de trabalhar, ganhando um trocado ou, às vezes, só comida que dava pra um dia, no máximo. O serviço era bem variado: de limpar calha, arrancar mato de jardim, até cuidar de bicho de estimação. De vez em quando, algum cliente dava um extra só porque eu era criança. O trabalho não era exatamente gratificante, mas também não era sem esperança. A gente ia levando como dava. E, pelo menos, minha irmã sempre estava lá quando eu voltava pra casa. Enquanto ela estivesse comigo, eu sabia que tudo ia dar certo de algum jeito.
No começo, a gente ainda fazia muitos trabalhos juntas, mas depois passamos a pegar serviços separados. Com mais trabalho entrando, a qualidade das nossas refeições foi melhorando, pouco a pouco.
— Mui, você não precisa se preocupar com nada.
Ela me dizia isso direto quando eu era pequena, mas, com o tempo, passou a repetir cada vez mais. Pensando agora, essas palavras deviam ser pra me confortar... ou talvez pra tentar se redimir de algo. Nunca entendi ao certo.
— É aqui? Ela tava morando nesse fim de mundo?
Um dia, depois de terminar um serviço antes da minha irmã, eu tava em casa esperando ela voltar. Mas quem apareceu foi um homem.
— Ah, aí está — murmurou ele. Me encarou nos olhos. — Você é a Mui?
Respondi de forma seca. Ele era bem grandalhão, mas eu já tinha lidado com muito brutamonte assim.
— Sobre sua irmã... Infelizmente, ela faleceu.
O tom dele não tinha nada de pesaroso — parecia que não achava nada "infeliz" nisso. Por quê? Como? Onde? Quando? Mil perguntas invadiram minha cabeça, mas eu não consegui nem abrir a boca pra perguntar nada.
— Reconhece isso aqui?
Enquanto eu ainda estava em choque, o homem jogou algo na minha direção. Peguei por reflexo. A luz que entrava pela porta aberta fez brilhar aquele pequeno objeto — era o pingente que minha irmã sempre usava. Assim que vi aquilo, soube, mesmo sem saber como, que nunca mais veria ela. Não perdi toda a esperança... mas o desespero começou a me consumir.
— Ela me pediu pra cuidar de você — disse o homem. — Foi por isso que vim.
Ele continuou falando, com uma expressão cheia de tédio e impaciência. Eu não confiava nele. Não podia confiar. Mas... agora que minha irmã tinha partido, eu realmente não fazia ideia do que fazer. Meus pensamentos rodavam em círculos dentro da cabeça, sem saída.
Foi então que ele jogou uma escolha inesperada nos meus pés.
— Quer ressuscitar sua família? — perguntou o homem. — Então vem comigo. Vai dar tudo certo. Não vou te comer nem nada.
Minha mente infantil não conseguia perceber a mentira. Nem cogitou recusar. E foi assim que eu aceitei.
Com esse novo "acordo", eu não precisava mais fazer trabalhos sujos e mal pagos, como limpar calha ou arrancar mato. Embora... de certo modo, os trabalhos que eu passei a fazer ainda eram sujos — só que por outros motivos. Eu odiava tudo aquilo no começo, claro. Mas depois que me acostumei, o crime virou rotina. E, apesar dos erros e acertos, roubar era bem mais fácil do que trabalhar de verdade. E dava muito mais dinheiro.
— Toma, fica com isso.
Um dia, o homem jogou um acessório pra mim, igualzinho quando jogou o pingente da minha irmã. Segundo ele, era mágico — conseguia criar fogo temporariamente. Naquele momento, parecia que ele finalmente tava me mostrando um mínimo de consideração. E, pra falar a verdade, aquele acessório quebrou um galho várias vezes. Eu usava sempre que achava que ia ser pega. Sobreviver no dia a dia era uma luta constante, mas eu sabia que, se fosse capturada, minha vida ia afundar ainda mais.
Mesmo assim, eu não fazia isso por mim. Cada trabalho era por um único objetivo: trazer minha irmã de volta. E eu estava disposta a fazer qualquer coisa pra alcançar isso.
No começo, quando perguntei o quanto custava essa ressurreição, o homem só dizia que era muito dinheiro. Perguntei várias vezes, insistindo, até que um dia ele respondeu, meio contrariado:
— Cinco milhões de dalcs.
Cinco. Milhões. De dalcs. Era uma quantia absurda. Mas, se fosse pela minha irmã, eu ia conseguir. Eu tinha certeza que dava. E, se fosse preciso, eu estava pronta pra atravessar pontes ainda mais perigosas. A essa altura, eu já estava acostumada com o trabalho, e os equipamentos mágicos tornavam quase impossível alguém me pegar.
No entanto, um dia, eu parei de usar o acessório. Quando tentei afastar uma pessoa, o fogo não saiu dele... mas de mim. No começo, achei que o equipamento mágico tinha enlouquecido. Mas aí percebi que conseguia repetir aquilo. Eu conseguia criar fogo. Depois de algumas tentativas, aprendi como invocar chamas com as minhas próprias mãos. Mesmo assim, essa habilidade não me trouxe nenhuma grande alegria. Afinal, eu já fazia o mesmo com o acessório mágico, então criar meu próprio fogo não parecia nada demais.
— Hmm. Que incrível, hein.
Eu contei isso pro velho. Mas a reação dele foi... totalmente sem graça. Conseguir criar fogo, pra mim, não significava muita coisa. E eu também não dei tanta bola. Fogo não ia trazer minha irmã de volta. Era uma habilidade conveniente, sim, mas nada além disso.
De qualquer forma, meu objetivo continuava claro: juntar cinco milhões de dalcs. E eu só conhecia um jeito de fazer isso. Meu trabalho, naquele dia e no próximo, continuaria o mesmo.
— Não posso dizer que concordo com isso.
Fiquei em choque — essa era a única palavra pra descrever. Algumas vítimas já tinham me perseguido antes, mas só depois de eu roubar alguma coisa. Nunca, até aquele momento, alguém tinha adivinhado minhas intenções e me impedido antes do furto.
— Tch!
Foquei minha mente no meu braço — o que ele estava segurando. Fogo brotou por entre os dedos dele, e ele me soltou. Consegui escapar de algum jeito, e, sinceramente, merecia me parabenizar por não ter entrado em pânico. Mas depois, quando voltei pra base, percebi que tinha perdido algo importante.
— Você, por acaso, tá procurando um pingente?
No dia seguinte, enquanto procurava pelo item que deixei cair, esbarrei no mesmo velho. Tentei bancar a desentendida, mas ele também lembrava de mim. No fim das contas, resistir foi inútil — não tive escolha a não ser segui-lo. E amaldiçoei minha sorte por isso.
Acabamos indo parar no escritório da Ordem de Liberion. Fui bombardeada com perguntas irritantes, um interrogatório daqueles — talvez o dia mais caótico da minha vida até então. E então, do nada, uma pirralha sem noção invadiu a sala. Depois que ela se acalmou, todos nós conversamos por um bom tempo. Foi aí que descobri que meu objetivo, aquilo pelo qual lutei por tanto tempo... era impossível. No começo, achei que estavam mentindo. Se a ressurreição era impossível, então por que eu tinha me esforçado tanto? Desabei por dentro, completamente esgotada. Perdi a motivação, a energia... e qualquer razão pra continuar enfrentando aqueles adultos.
Mesmo assim...
Apesar do cansaço, eu... senti uma certa quentura, por algum motivo. Não entendi aquele sentimento.
— Não podemos fechar os olhos pra uma garota vivendo em condições tão miseráveis. Não sei se podemos ser seus aliados, mas, no mínimo, não somos seus inimigos.
Aquela voz... era do comandante dos cavaleiros, uma pessoa famosa por sua nobreza. Alguém cuja vida era o completo oposto da minha.
A comandante da tropa mágica, uma garota que parecia até mais nova do que eu, falou logo em seguida:
— A sua dignidade, e a da sua irmã, precisam ser protegidas. E só você pode fazer isso.
Até aquele velho, que parecia totalmente inútil no começo, se mostrou incrivelmente forte. Essas pessoas eram diferentes de todos os adultos que eu já tinha conhecido.
Minha irmã ainda estava presente na minha mente. Como não estaria? Eu não vi ela morrer, nunca vi o corpo — só acreditei no que o homem me contou. E o que mais eu podia fazer naquela hora? Eu era fraca. Se alguém disser que havia outra escolha além de acreditar cegamente nas palavras de um adulto... então me mostre qual era.
Depois que discutimos tudo, só uma pergunta ficou ecoando na minha cabeça:
— E agora... o que eu faço?
— Bom, de um jeito ou de outro, vai dar certo — respondeu o velho. — Isso é responsabilidade dos adultos.
Eu confiava nele? Sentia que... talvez sim. No mínimo, ele era diferente de todos os adultos nojentos que conheci. Pensei nos nossos encontros anteriores. Ele é mesmo um cara simples, né? A gente se conheceu porque eu tentei roubar ele, e mesmo assim, ele tava sendo tão atencioso comigo.
E, olha... acho que isso me deixou meio feliz. Mas eu não sabia como reagir a isso. Com a pouca experiência de vida que eu tinha, não existia resposta. Só me restava seguir o que os adultos diziam. Se fosse assim, então talvez não fosse tão ruim confiar nessas pessoas... pelo menos por agora.
Depois da conversa, era hora de ir embora. A gente foi até a entrada do escritório da Ordem. Quando virei pra sair, ouvi uma voz me chamar pelas costas:
— Até mais, Mui.
Era uma voz gentil, suave... e um pouco atrapalhada.
— Hmph.
Ele era velho demais pra ser meu irmão mais velho. Mas se eu tivesse um pai... talvez fosse assim.
Enquanto me deixava levar por aquele pensamento besta, senti alguém puxando meu braço. Voltei pra realidade num instante.
— Vamos — cê vem comigo.
E essa pirralha... Ela é minha irmãzinha insuportável, irritante e sem noção! Só que, sinceramente, eu jamais quero imaginar ser parente de sangue dela!
Mesmo com todos os sentimentos que eu ainda carregava pela minha irmã desaparecida... senti que esse dia seria o primeiro passo pra eu finalmente encarar o futuro.
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