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Chapter 02.3 - Vol 2: Interlúdio

 Interlúdio

— Mrgh...

Em um dia como qualquer outro, uma garota estava na sala de treinamento da Ordem. Ela segurava uma arma enorme, completamente desproporcional ao seu corpo pequeno, e soltava um gemido baixo enquanto fazia balanços de prática.

Aquela era Kewlny Crucielle, uma cavaleira da Ordem de Liberion.

O sol já estava quase se pondo, então restavam poucos cavaleiros no salão. O comandante, o subcomandante e o recém-nomeado instrutor especial já haviam ido embora. Os únicos que ainda estavam por ali eram os que se sentiam insuficientes, os naturalmente noturnos ou aqueles com tempo livre demais. Em outras palavras, eram em sua maioria cavaleiros mais novos. Mas mesmo esses poucos estavam se aprontando para sair, deixando o salão praticamente vazio.

Kewlny permanecia ali, empunhando seu zweihander e soltando gemidos baixos.

— Assim? Não, talvez... assim? — murmurava enquanto fazia alguns golpes com a espada. Seu rosto, normalmente animado, agora parecia sem energia.

O zweihander fora recomendado por seu instrutor, Beryl. Comprá-lo havia marcado um novo começo para Kewlny — e um adeus à espada curta que a acompanhara por tanto tempo. O zweihander era, obviamente, muito maior e mais largo que a antiga arma. O peso nem se compara. Mas Kewlny tinha força bruta de sobra, então o peso era aceitável para ela. Mesmo inexperiente, ela sabia disso. A arma não parecia pesada demais. Era agradável de empunhar, e a sensação de cortar o ar era satisfatória.

Infelizmente, só porque era uma cavaleira treinada não significava que sabia usar a nova arma direito. Cavaleiros são criaturas de hábito — normalmente treinam com um único tipo de arma, a não ser em casos extremos. Trocar de arma custa tempo e dinheiro. Além disso, era preciso treinar tudo de novo só pra alcançar o nível que já tinham com a arma anterior. Mesmo entre espadas, uma curta e um zweihander eram mundos diferentes. Kewlny sentia que estava melhorando, mas, sinceramente, não fazia ideia de quando aquilo viraria habilidade de verdade.

Por isso ainda estava ali treinando, sozinha, mesmo depois de todos terem ido embora. Beryl dissera pra ela não exagerar, mas não conseguia evitar. Estava no meio de seu progresso com a espada curta e, de repente, teve que dar vários passos pra trás e recomeçar com uma nova arma. Apesar de sua natureza otimista, essa situação fazia com que se sentisse pressionada a aprender mais rápido. Ela sabia que maestria na espada não se conquistava do dia pra noite — era o resultado de anos de prática dedicada. Sim, ela sabia disso. Mas esse pensamento não era o bastante pra calar a impaciência que fervia dentro dela.

Quanto tempo ela passou resmungando consigo mesma? Ela já balançava a espada há um bom tempo, imersa em preocupações.

— Kewlny. Sabia que estaria aqui.

Uma voz familiar ecoou na entrada do salão, e Kewlny se virou num salto. Ela não esperava ouvir essa voz ali.

— Fice...? — chamou, surpresa, com a voz mais aguda do que gostaria.

Era Ficelle Habeler — Fice, para os íntimos — uma mulher talentosa, jovem prodígio do corpo mágico. Também era uma amiga de longa data de Kewlny.

Ficelle encarou Kewlny com um olhar cheio de exasperação.

— O jantar. Combinamos pra hoje.

— Hã? Ah... AAAAAH! — Kewlny gritou, histérica. Ficelle tinha razão — elas haviam marcado de jantar juntas, já fazia um bom tempo. — D-Desculpa! Esqueci completamente!

— Tudo bem. Você sempre foi avoada.

— Mrgh... Nem posso negar dessa vez. — Kewlny odiava ser zoada, mas era verdade: tinha esquecido de uma promessa feita à amiga.

— Isso é uma espada grande? — Ficelle perguntou, ignorando temporariamente o jantar esquecido e focando na arma nas mãos de Kewlny.

— Ah, essa? É um zweihander. Troquei recentemente. — Por algum motivo, Kewlny deu o nome exato da arma. — Ah, é mesmo! Quero que você dê uma olhada. Não tô conseguindo sentir o ritmo.

— Waah... — Ficelle fez uma careta. Suas emoções geralmente não apareciam muito no rosto, mas agora ela estava claramente descontente. — Tô com fome.

— Por favor! É rapidinho!

— Haah...

Kewlny continuava insistindo, e Ficelle suspirou, derrotada. Ela conhecia bem a pequena cavaleira — Kewlny era uma moleca sincera e impulsiva, e quando decidia alguma coisa, era difícil fazê-la voltar atrás. Para o bem ou para o mal, ela era honesta consigo mesma e determinada com sua espada. Agora que tinha resolvido mostrar seus golpes à amiga, não havia discussão que fizesse ela desistir. Ficelle logo cedeu. O jantar teria que esperar. Seu estômago ainda não roncava, mas ela temia que não durasse muito mais.

— Tá bom — disse Ficelle. — Mas eu não sei tanto quanto o Mestre Beryl.

— Sem problema. Ter uma terceira opinião é importante! Provavelmente!

Ficelle concordou em assistir aos golpes de Kewlny, mas dar conselhos úteis era outra história. Ficelle se considerava forte, embora não fizesse alarde disso. Provavelmente não perderia num duelo contra um cavaleiro comum, e ainda podia usar magia de espada de nível avançado.

Mas isso era só uma autoavaliação. Criticar a técnica de alguém era algo totalmente diferente. Ela não tinha experiência pra isso, e não era como seu instrutor, que sabia guiar os outros. Ficelle até tentou avisar Kewlny disso, mas a amiga não se importou, então ela aceitou a missão e suspirou, focando na tarefa.

— Haah! Haah! Hyah!

— Hmmm...

Kewlny começou a balançar seu zweihander, e seus gritos energéticos ecoaram no salão. Ficelle não gostava muito de observar o treino dos outros — ensinar não era seu forte. Mas mesmo assim, continuou assistindo.

No começo, Ficelle não via nada de útil. Não conseguia dizer se as técnicas estavam boas ou ruins. Então, mudou de abordagem: pensou em como ela balançaria aquela espada, se estivesse no lugar de Kewlny.

— Ah...

De repente, Ficelle deixou escapar um leve suspiro. Ela tinha percebido algo — Kewlny fazia um movimento de uma forma que ela mesma jamais faria.

Ficelle limpou a garganta.

— Kewlny.

— Hoh! — A cavaleira parou o treino e se virou. — O que foi?


Kewlny não parecia estar relaxando no treinamento. Ela era uma garota séria, mais ou menos da mesma idade que Ficelle. Quando Ficelle tentou entender o que estava estranho na forma como ela brandia a espada, só uma coisa veio à cabeça.

—Você não tá golpeando pensando num oponente —disse Ficelle.

—U-Um oponente?

—Ficar balançando a espada à toa não é o objetivo desses treinos —explicou Ficelle. —Mas, bom... pra conseguir imaginar um inimigo de verdade, primeiro você tem que se acostumar com a arma.

—Um oponente...? Agora que você falou...

O problema da Kewlny era simplesmente a falta de experiência prática. Os treinos de forma com a arma são mesmo feitos sozinho —isso é normal. Mas armas não existem só pra cortar ar ou palha. O propósito de uma lâmina é ser usada em combate, pra encarar um inimigo. Essa é a natureza de uma arma. A ponta dela precisa estar mirando um adversário.

Kewlny não tava visualizando isso. Ficelle conseguia ver que não existia nenhum inimigo imaginário diante da sua zweihander. E fazia sentido—se você nunca enfrentou alguém de verdade, é difícil criar esse tipo de imagem mental.

Existem milhares de estilos de esgrima pelo mundo. Alguns focam em combate real, outros em apresentações artísticas. A forma como se move muda totalmente de um estilo pro outro. Beryl sabia disso, claro. Mas ele tava seguindo uma ordem lógica com o treinamento da Kewlny, como qualquer instrutor faria. Começou ensinando os movimentos básicos e as técnicas pra manusear a zweihander—coisas que dava pra praticar sozinha sem problema.

Ficelle entendeu isso tudo num instante e percebeu qual era o verdadeiro obstáculo.

—Pelo que eu tô vendo, você não tá fazendo nada de errado com a técnica —disse Ficelle. —É uma questão de foco.

—Entendi... Okay, saquei!

Kewlny respirou fundo. Era como se tivesse recebido uma revelação divina. Pensando bem, parecia mesmo que ela só tava balançando a espada à toa, sem pensar em quem estaria do outro lado. Como o oponente se moveria? Como ela devia encaixar um golpe certeiro? As peças começaram a se encaixar. Faltava percepção do inimigo—faltava aquele espírito de luta, aquela tensão de um combate real. Kewlny sentiu como se algo dentro dela tivesse se rompido de vez.

—Certo! —gritou Kewlny, cheia de energia. —Fice! Seja minha oponente!

—Aaaah...

Como era de se esperar, Ficelle soltou um suspiro. Sua expressão deixava bem claro que ela tava morrendo de fome. Mas Kewlny era um pouquinho lenta demais pra notar isso.

—Tá bom —cedeu Ficelle. —Mas só um pouquinho. Se a gente demorar demais, vai perder o jantar.

—Eu também tô com fome, então vai ser rapidinho!

Kewlny não ia parar agora que tinha se animado, e sinceramente, Ficelle não tinha coragem de zoar ela por isso. Então lá ficou ela, parada no salão de treino, soltando mais um suspiro de tantos que já tinha dado naquela noite. A ordem e o corpo mágico tinham relações amigáveis, mas mesmo assim, não era exatamente apropriado uma maga usar o salão de treino sem pedir permissão. No fim, não adiantava se preocupar com isso—só elas duas estavam ali, então ninguém ia ver mesmo.

—Usa aquela espada de madeira —disse Ficelle. —Balançar uma lâmina de verdade não parece uma boa ideia.

—Ah, beleza. —Kewlny acenou com a cabeça diante da sugestão—era melhor tratar aquilo como um treino de verdade. Se ela desse um golpe com força total usando a zweihander, o estrago ia ser feio.

—Lá vou eu!

—Uhum.

Kewlny empunhou uma arma de madeira do tamanho de uma espada grande e deu o sinal de início. A resposta curta da Ficelle foi o bastante pra ela entender que podia começar, e então ela se lançou do chão com um salto. O som das espadas de madeira se chocando ecoou levemente pelo salão vazio.

No fim, Ficelle e Kewlny só conseguiram sair pra jantar quando já tava completamente escuro lá fora. Ficelle ficou super emburrada por ter sido arrastada pra esse treino de última hora, então, pra compensar, Kewlny fez o próprio bolso sofrer com a conta do restaurante.


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