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Chapter 03 - Vol 1: O Caminho para o Extermínio

 Capítulo 3:

O Caminho para o Extermínio

— PARALISAR, PARALISAR, Paralisar, Paralisar, Paralisar, Pa-ra-li-sar!

Foram o quê? Uns oito? Me senti estranhamente eufórico. Os corpos paralisados ao meu redor viraram escudos, me protegendo do restante e me dando tempo pra lançar mais habilidades antes que os monstros ainda ativos conseguissem avançar.

— Paralisar!

— Ugh... uoa...

Era como se meu sangue estivesse sendo sugado do topo da minha cabeça.

Acho que não tenho mais muita mana. Isso é ruim… E-eu vou desmaiar… Quantos mais ainda faltam...?

— Bwaaak!

Mais uma daquelas cabeças de pássaro… Me preparei e levantei o braço mais uma vez.

— Paralisar!

— Bwaa—

Ele congelou, mas nesse instante eu cambaleei pro lado, e tudo ao meu redor ficou branco. Tentei manter o foco nos monstros ao redor…

— Que porra é essa…

Reforços tinham chegado, entrando no meu campo de visão. Mais cinco, vindo de todas as direções… e ainda mais atrás deles?

Isso tava muito, muito ruim.

“...”

Não sei bem por quê, mas… comecei a rir.

— Heh, se é assim que vocês querem jogar, então…

Eu vou usar até a última gota.

Mal conseguia ficar de pé. Minha mente tava se apagando, agarrada à consciência só pela força de vontade.

— Anda, vem me pegar…!

Até a última gota.

— Eu só paro de lutar quando cair morto! Paralisar! Paralisar! Paralisar! Paralisar! Pa…ra…

Senti algo se romper dentro de mim. Meu corpo balançou perigosamente.

Acho que isso foi o fim da mana.

Minhas pernas já não me sustentavam. Eu sentia a consciência sendo puxada pra baixo.

— Acho que a mente foi antes do corpo… heh… não, espera… eu consigo… mais uma… se esse for o fim… então… mais uma…

Levantei minha mão trêmula.

A última…

— Eu vou… mostrar pra eles… do que um figurante é capaz… Mimori Tou—

Meu último momento vivo…

— Bwa! Bwaaaanng…

O que foi isso? Parecia… o último grito de dor de um monstro antes de morrer…


Subiu de nível!


De repente, a energia voltou. Minha mente clareou, vívida e focada.


Nível 1 → Nível 258


Q-que foi isso? O que acabou de acontecer?

— Paralisar!

Por quê?

O minotauro que saltava congelou no ar.

— Paralisar! Paralisar! Paralisar—!

Por que meu nível subiu?

— Ah…

Dei uma olhada rápida no primeiro cabeça de pássaro, caído de cara no chão. O primeiro monstro que eu envenenei finalmente tinha batido as botas.

Lembrei do cara encapuzado dizendo que meu crescimento seria lento, que eu precisaria de uma tonelada de experiência pra subir de nível. Então os monstros das Ruínas do Descarte deviam dar uma quantidade absurda de EXP.

Provavelmente não era nem pra ser possível derrotá-los.

Quando encontrei o minotauro e a cabeça de pássaro pela primeira vez, os dois se mexiam devagar, de forma deliberada. Me subestimaram… e pagaram o preço. Se tivessem me reconhecido como ameaça desde o começo, teriam me matado antes que eu conseguisse usar qualquer habilidade. Mas baixaram a guarda, certos de que eu era fraco demais pra preocupar.

Lixo assim não precisa nem de dez por cento da minha força pra ser esmagado.

Será que minha mana regenera quando subo de nível? Eu recupero tudo? Só metade? Ou só o bônus do modificador de status?

Se eu continuar focando nesses monstros—continuar subindo de nível, então…

— Eu consigo continuar lutando! Paralisar!

Eu consigo. Por um fio… mas eu vou conseguir!

— Paralisar! Paralisar! Paralisar!


Habilidade subiu de nível!
Nível 1 → Nível 2


Boa! Provavelmente é a habilidade Paralisar.

Parece que a experiência das habilidades é separada da experiência de nível. Eu preciso usar uma habilidade um número específico de vezes pra ela evoluir…? Mesmo com o aumento absurdo de nível, não ganhei nenhuma habilidade nova—não faço ideia de como conseguir mais.

— Primeiro, tenho que focar em sair daqui…!

Usar minha mana era completamente intuitivo, ainda bem. E, olhando pros monstros, outra coisa me veio à cabeça.

— Opa… não é possível… eu já consigo fazer isso…?

Alvos múltiplos.

Um marcador em formato de triângulo apareceu sobre as cabeças de todos os monstros no meu campo de visão. Levantei o braço…

— Paralisar.

Eles pararam ao mesmo tempo. Paralisia bem-sucedida.

Talvez a Deusa seja a única que minhas habilidades não afetam.

Desde que fui jogado nessas ruínas, elas nunca falharam—100% de sucesso.

Soltei uma risada sombria.

— Então é isso. Se só um deles me deu toda aquela EXP… se eu matar todos… vou estar nadando nisso! Hah!

Enquanto os outros monstros tentavam passar pela multidão paralisada, usei outra habilidade nos que estavam imóveis à minha frente.

— Veneno, Veneno, Veneno, Veneno, Veneno, Veneno, Veneno, Veneno—


Habilidade subiu de nível!
Nível 1 → Nível 2


Esses monstros agora só parecem pontos de experiência ambulantes e gosmentos pra mim.

Me encostei na parede e me deixei cair no chão. Os monstros estavam imóveis à minha frente, com a vida sendo drenada lentamente pelo veneno.

— Quantos desses bichos viviam aqui embaixo…?

As criaturas paralisadas formavam um semicírculo desorganizado ao meu redor. Novos monstros empurravam os outros pra abrir caminho, com ácido saindo das feridas abertas em seus corpos.

Presas frescas.

Os olhos das criaturas congeladas, doentes, borbulhantes, me atravessavam enquanto eu observava.

“Elas tão dizendo: ‘Assim que eu me mexer, vou te matar’.”

— Tentem. — encarei de volta. — Eu mato vocês antes de terem a chance.

Minha pele formigava, tensa.

Por algum motivo, os olhares assassinos dos monstros me davam um estranho alívio. Talvez todo esse ódio voltado pra mim tornasse mais fácil matá-los sem piedade.

Eu não conseguia encarar eles por muito tempo—era mais importante ficar de olho nas barrinhas deles. E talvez essa fosse uma oportunidade de aprender mais sobre minhas habilidades—tinha muitas teorias pra testar.

Será que o dano do veneno é fixo ou varia um pouco?

Não dava pra testar agora—eu precisava ficar focado e pronto pra lançar Sono, se necessário.

Hmm... Ainda não testei se dá pra acumular paralisia e sono no mesmo alvo. Seria bom saber disso agora. Mas antes, é melhor eu conferir quanto de MP ainda tenho.

—Status Open.


Too-ka Mimori
Nível 258
HP: +774 MP: +8194 / 8514
Ataque: +774 Defesa: +774 Vitalidade: +774
Velocidade: +774 Inteligência: +774
Título: Herói de Classe E


Bom, meus modificadores de status definitivamente melhoraram.

3 vezes 258 dá 774... então estão sendo multiplicados pelo meu nível.

E como meu valor inicial de MP já era decente, minha mana ficou muito mais alta — um baita alívio, já que minha mana é basicamente minha única tábua de salvação aqui embaixo.

Será que o MP que usei com habilidades se recupera quando eu subo de nível?

Não sei bem o que pensar sobre os outros modificadores. Se a vitalidade do Oyamada era +500 no nível 1, talvez os meus nem sejam tão bons quanto parecem.

Bom, pelo menos sinto que recuperei um pouco de estamina depois de subir de nível.

—Grraa... nngh...

Em algum lugar, um minotauro deu seu último suspiro.


Level up!
Nível 258 → Nível 277


Esperei mais um pouco. Outro minotauro arfou e soltou seu último suspiro — depois outro, e mais outro...


Level up!
Nível 277 → Nível 321


Mais tempo passou. Fora aquele primeiro monstro com cabeça de pássaro que eu envenenei, só minotauros tinham morrido até agora — os cabeças-de-pássaro deviam ter muito mais HP.

—Bwaaak! Bwa...

—Oh?

Finalmente, aconteceu.


Level up!
Nível 321 → Nível 395


—Parece que esses cabeças-de-pássaro dão mais EXP.

Infelizmente, não dava pra ver informações detalhadas sobre experiência na minha tela de status. Nada daquele “falta tanto de EXP pro próximo nível” que você vê em vários jogos.

É um saco jogar um jogo baseado em estamina e não conseguir usar toda a mana antes de subir de nível. Parece um desperdício, já que você volta com o MP cheio no nível seguinte. Hmm... talvez saber o que é ser pobre me deixou mais sensível a esse tipo de coisa.

—Enfim...

Abri meus status pra conferir minha mana.


MP: +13035 / 13035


Totalmente restaurado, como eu imaginava. Minhas habilidades custam 10 MP por uso, então dá pra usar 1303 vezes. E ainda tem monstros vivos por aqui — quando eles morrerem, devo subir de nível de novo. Se der pra acumular os efeitos em todos...

—Dá pra farmar experiência de habilidade com eles.

Travei a mira em um dos monstros de cabeça de pássaro e levantei a mão.

—Sleep.

Ele não caiu, já que ainda estava paralisado em pé, mas os olhos se fecharam.

—Funcionou. Sono e Paralisia acumulam.

Agora apareciam dois indicadores acima do monstro, um amarelo e outro azul — Paralisia e Sono. Mesmo quando a barra de Paralisia acabasse, eu não precisaria aplicar sono de novo imediatamente. Aquela janela de risco onde o monstro podia se mexer desapareceu — meu combo era perfeito. O efeito de Veneno continuava borbulhando.

Agora dá pra farmar experiência de habilidade com toda essa mana extra. Com a EXP que eles estão dando, devo subir de nível mais algumas vezes.

Sem necessidade de economizar, então...

—Sleep! Sleep, Sleep, Sleep, Sleep, Sleep—

Fui andando entre os monstros paralisados, empilhando o efeito neles.

—Sleep, Sleep—


Level da Habilidade Up!
Nível 1 → Nível 2


Aí está. Agora Sleep tá no nível 2 também.

Os monstros ao meu redor foram morrendo um a um.


Level up!
Nível 395 → Nível 501


—Acho que isso é o máximo de Sleep que consigo empilhar...

Olhando pros números, era triste ver tanta mana sendo desperdiçada. Mas considerando que quase morri quando fiquei sem MP antes, não dá pra reclamar muito de estar com excesso agora.

Os minotauros fora do meu círculo de paralisia me encararam mais uma vez, e então alguns viraram e recuaram para dentro das cavernas.

—Desistiram de me matar...?

De repente, os monstros de cabeça de pássaro arregalaram a boca como se estivessem apavorados.

—B-bwaaaaak!

Num movimento só, se agruparam e saíram correndo, suas quatro pernas batendo como asas contra a pedra.

—Bwaa-kk!

Acharam que iam conseguir uma presa fácil, mas aí os colegas deles ficaram paralisados, ficaram roxos e doentes, e eventualmente morreram. Faz sentido que tenham percebido que lutar com esse humano é arriscado demais.

Eles podem ser monstros nas Ruínas do Descarte, mas ainda são seres vivos — prezam pela própria vida.

Observei a horda recuando.

—O que eu faço agora? — perguntei a mim mesmo. — Persigo e mato eles?

Não, não agora. Não é como se eu estivesse sentindo compaixão nem nada... mas meu objetivo é chegar à superfície, e provavelmente já subi de nível o suficiente pra isso. O próximo passo é explorar e me situar.

Levantei devagar, olhando na direção pra onde os minotauros tinham fugido. Ainda não tinha conseguido vasculhar direito o lugar onde fui teleportado — podia ter alguma coisa útil lá. Só tinha visto aquele meio crânio antes de ser interrompido pelo ataque do minotauro.

—Não custa nada ir checar. — Podia ter todo tipo de coisa deixada por outros guerreiros descartados.

Mas não posso baixar a guarda — um ataque surpresa ou emboscada podia me matar antes mesmo de eu ter chance de usar qualquer efeito de status. Sem eles, aqueles monstros provavelmente me matariam com um único golpe. Aquela Deusa provavelmente já mandou heróis de Classe S pra cá antes, então duvido que meus status de Classe E ajudem em alguma coisa, mesmo depois de todos esses níveis.

Então eu preciso sempre agir primeiro. Não posso ser atingido, de jeito nenhum. É só nisso que preciso focar — não ser atingido.

Voltei pro ponto onde comecei, ainda organizando meus pensamentos. Levantei minha bolsa iluminada.

No momento, a escuridão é mais perigosa pra mim do que a luz — mesmo que chame atenção, eu não posso acertar o que não consigo ver.

Bem... desde que não tenha nada aqui embaixo com arma de longo alcance.

—Não vejo nada útil por aqui...

Acabei encontrando um monte de ossos humanos meio derretidos por ácido — provavelmente mortos por algum minotauro. Tinha algumas armas por ali também, mas a maioria tinha sido arruinada pelo ácido… seriam só peso morto que eu teria que carregar.

— Acho que é isso. Hmph.

Consegui pegar um sobretudo preto em um dos esqueletos e uma espada curta enferrujada, mas ainda inteira. Agradecido, enrolei o casaco quente nos ombros pra me proteger do frio da caverna. Depois, tirei a espada curta da bainha de couro e dei uma olhada na lâmina. Não parecia muito útil, mas parecia funcional o bastante, então enfiei dentro da minha bolsa de couro. Eu precisava segurar a bolsa com a mão esquerda pra manter a direita livre pro uso das habilidades. Já tinha descoberto que elas só funcionavam se eu travasse o alvo apontando diretamente pra ele, então precisava de uma mão livre.

Era difícil imaginar aquela espadinha machucando algum daqueles monstros, mas talvez servisse pra me defender em último caso? A vibração que senti quando tentei cortar a pele absurdamente resistente daquele monstro cabeça-de-pássaro tinha me traumatizado um pouco.

Logo avistei o círculo mágico entalhado na rocha de onde eu tinha aparecido.

— Esse círculo mágico aí… duvido que eu consiga usar, né?

Tinha que assumir que só aquela Deusa maldita conseguia fazer ele funcionar. Se fosse fácil assim, qualquer prisioneiro voltaria por onde veio.

"…"

Como será que estão meus colegas de classe agora...? Não. Nem pensa nisso. Concentra no perigo ao seu redor. Em como sobreviver. Em como sair daqui. Do jeito que der.

Comecei uma busca mais cuidadosa pela caverna, até voltei ao campo de batalha que tinha acabado de deixar. A montanha de cadáveres monstruosos ainda estava lá, claro — intocada.

— Agora que vejo todos eles assim, enfileirados… é bicho pra caramba.

Parecia que aquela luta tinha acontecido em outra vida. Olhei mais adiante, na direção da caverna por onde os monstros com cabeça de pássaro tinham fugido.

— Hora de tentar um novo caminho.

Saí do túnel e entrei em uma caverna enorme, grande demais pra minha bolsa iluminada alcançar. O teto era alto, com estalactites pontudas pendendo como numa caverna calcária.

Grrrgh… grrr…

Tava tentando ignorar, mas meu estômago não deixava... Tô morrendo de fome. E de sede. Não como nada desde antes de pegar o ônibus.

Ficar correndo atrás de monstros e lutando até a morte me fez suar litros. Perdi muito líquido. Fiquei de olho o tempo todo, procurando alguma poça ou nascente no caminho, mas até agora, nada.

Primeiro obstáculo: monstros… vencido. Próximo desafio: comida e água.

Monstros até que eram uma preocupação, mas comida e água eram problemas mais básicos ainda.

— Só me resta continuar andando…

Será que esses monstros comem e bebem? Talvez eu consiga encontrar onde eles se alimentam.

Segui andando devagar pela escuridão que só aumentava.


A Fugitiva

A FLORESTA era densa e viva. A luz quente do sol se infiltrava entre as copas das árvores, salpicando o chão fresco e brincando com as ondulações na superfície da água.

Uma garota estava tomando banho, completamente nua, com os joelhos mergulhados no rio. O sol atravessava as folhas e iluminava sua pele branca como leite, fazendo-a brilhar como seda. Era magra, mas não demais, e seus longos cabelos loiros-prateados estavam molhados, grudando em seus seios redondos e volumosos. Com delicadeza, puxou os fios e os prendeu atrás da orelha.

Será que todas essas noites sem dormir me afastaram mesmo do perigo…?

Ela finalmente tinha despistado seus perseguidores persistentes, e aquela floresta parecia um bom esconderijo. Se eremitas podiam abandonar tudo pra viver ali, por que ela não poderia também? Mesmo não tendo sido criada naquele lugar, já tinha explorado bastante o labirinto de árvores pra saber que conseguiria ficar escondida por um tempo.

A água estava morna e acolhedora contra sua pele. Com um pano molhado na mão, começou a se lavar. Fazia tempo desde seu último banho de verdade. Lavar toda a sujeira e se sentir limpa e pura de novo era reconfortante — como correr livremente sob uma brisa fresca. Ela nem lembrava quando tinha sido a última vez que pôde fazer aquilo. Desde que foi forçada a fugir, sua vida se tornou dura demais. Seus olhos azuis e límpidos brilhavam com tristeza.

Quando será que vou poder descansar de novo…? Quanto tempo isso ainda vai durar?

Uma brisa suave soprou entre as árvores, acariciando levemente seu corpo nu. Acima dela, o céu sem nuvens se estendia por milhas além das folhas farfalhantes… mas seu coração continuava cinza, pesado como um dia chuvoso.


Mimori Touka

Eu continuei andando. Tudo parecia igual.

Encontrei um caminho que parecia subir, mas só me levou por mais cavernas e rochas do mesmo tipo que eu já vinha vendo há horas.

Pelo menos parecia que eram horas… Eu estava me sentindo fraco e cansado.

"…"

Quanto tempo será que passou, de verdade? Com certeza parece muito tempo, mas aqui embaixo é impossível saber.

Sem relógios, sem sol nascendo—só escuridão monótona. Minha noção de tempo parecia ter quebrado.

Grrrgh… grrrgh…

—Haaah, haaah…

Eu posso subir de nível e melhorar meus atributos, mas ainda assim vou sentir fome. Aliás, eu estou com fome. Mas esse nem é o pior dos problemas… Eu preciso desesperadamente de água. E logo.

—Haaah… haaah…

As solas dos meus sapatos, assim como meus nervos, estavam sendo desgastadas aos poucos.

Preciso ficar alerta… os monstros podem estar à espreita em qualquer canto. Não posso me distrair…

Caminha.

O que foi isso?

Caminha. Caminha.

Nada…

Caminha. Caminha. Caminha.

Não tem nada aqui embaixo. Só rochas. Rochas, rochas e mais rochas. Ah, e mais rochas. Já falei das rochas?

Elas todas pareciam iguais.

O que é uma rocha, afinal? Qual a diferença entre uma rocha e um pedregulho? E montanhas… quão grande precisa ser pra ser considerada uma montanha?

Estou no subsolo… ainda é uma montanha se está embaixo da terra?

"…"

Minha mente estava indo pra um lugar bem ruim.

Fome extrema. Sede extrema. Quem diria que seria tão difícil assim? Nem estou vendo monstros mais. Se visse, mataria. Comida. Carne. Não me importa o que for. Alguém, por favor. Me dá alguma coisa pra comer.

—Ah, é mesmo…

Tinha corpos de monstros nos andares mais baixos.

—Talvez eu consiga comer eles.

Minha voz saiu rouca de tanta sede, enquanto eu contava minha ideia pro vazio. Resolvi voltar—tive a sensação de que esse caminho sem fim e todo igual podia muito bem continuar pra sempre.

Mas havia um lugar onde eu sabia que tinha comida. Minotauros são basicamente carne bovina, né? E aposto que carne de cabeça-de-pássaro tem gosto de frango.

Eu consigo chegar lá. Tenho que conseguir.

Arrastei meu corpo pelo longo caminho de volta até o campo de batalha que tinha deixado pra trás. Quando cheguei, já nem suava mais.

Água… sangue? Será que dá pra beber o sangue deles?

Peguei minha espada curta, segurei com a mão esquerda e… parei.

—Espera aí…

Eu envenenei todos eles até a morte… será que dá pra comer mesmo assim? O veneno já não passou? Eles não estão mais espumando nem roxos. Se eu conseguir cortar a carne, deve estar seguro o bastante pra comer. Eu posso comer eles… por favor, deixa eu comer…

Coloquei a bolsinha de couro de lado. Deixando a mão esquerda livre pra usar habilidades, empunhei a espada com a direita.

Minotauro… carne bovina…

Minha mão apertou firme o cabo da espada.

A pele provavelmente vai ser dura demais pra cortar, mesmo com o bicho morto. Melhor tentar perto da cabeça, onde tem menos músculo.

Enfiei a lâmina e arranquei um dos globos oculares.

Será que dá certo…?

Olhei com desconfiança pra cavidade ocular… será que consigo tirar alguma carne dali? Engoli seco.

Preciso tentar. Só… engolir esse nojo todo, agora não tem espaço pra frescura.

Preciso de comida e água, ou vou morrer.

Certo. Primeiro, enfiar a lâmina na cavidade ocular…

Pssshh!

—Uou…?! Aaaah!

Dei um pulo pra trás. Um jato de ácido saiu do olho—o corpo inteiro estava cheio daquilo. Não tinha como comer.

"…"

Olhei pro globo ocular que tinha caído na pedra ao meu lado.

Talvez eu consiga comer ele…?

Eu vou morrer. Eu preciso disso.

Peguei o globo com cuidado e dei uma mordida.

Pssshh!

—Gaaaangh!

Tava cheio de ácido. Tossi e cuspi várias vezes.

Era como se o corpo todo deles fosse cheio daquela substância—inofensiva pra eles, mas veneno pros inimigos.

Esfreguei a boca desesperado no uniforme—parecia que o interior da minha boca tinha derretido um pouco.

Soltei um suspiro profundo.

Por sorte, não engoli. Ardeu, mas não tinha muito o que fazer sem água.

Pelo menos o estrago não pareceu tão grande—talvez minha defesa alta tenha segurado as pontas.

Fui me arrastando até o monstro cabeça-de-pássaro mais próximo. Tentei a mesma coisa, com o mesmo resultado previsível—não dava pra comer.

Era de se esperar. Eles mandam pessoas pra cá pra morrer, né? Se desse pra matar os monstros e comer, sobreviver aqui seria muito mais fácil. Não tem chance da Deusa facilitar assim. Com certeza faz parte do plano dela—mesmo se alguém conseguisse vencer os minotauros e os cabeças-de-pássaro, as necessidades básicas iam acabar com a pessoa antes.

—Ruínas do Descarte… Nenhum sobrevivente, hein?

Mas os monstros devem comer alguma coisa… e devem ter alguma fonte de água. Se eu conseguir encontrar isso…

Balancei a cabeça. Esse era outro mundo. Não podia contar com a lógica do meu.

Mas se eles não precisarem de comida nem de água… aí é meu último fio de esperança indo pro ralo. Talvez eles nem matem humanos por comida? Talvez caçar seja só diversão pra eles—caça esportiva, como se fosse um videogame.

"…"

Parei de andar.

O que eu faço? Voltar pro deserto? Não tem nada lá. Voltar pro começo, seguir o rastro dos minotauros e cabeças-de-pássaro que fugiram de mim? Não… lutar com eles nesse estado é arriscado demais. Talvez eu nem consiga usar minhas habilidades a tempo.

Eu me sentia fraco, como se minha cabeça estivesse oca e vazia.

—Ah, é mesmo… tenho que pegar minha mochila…

Olhei pra bolsinha de couro iluminada com um olhar vazio.

—Hã…?

O cristal que brilha na minha bolsa… parecia diferente, de algum jeito.

Antes era mais verde-limão, não era?

Eu lembrava dele ser de um tom verde-claro, talvez. Mas agora, a base do cristal brilhava em roxo.

Esfreguei os olhos.

Será que tô começando a ver coisas? Sempre foi dessa cor?

Pensei de volta na hora em que a Deusa nojenta me entregou isso. Com certeza não era roxo naquela época.

Será que envenenei minha bolsa sem querer…? Não, não pode ser isso.

—Ah—

Enquanto eu inspecionava a bolsa, a luz foi enfraquecendo. Coloquei minhas mãos no cristal e despejei mais mana na bolsa — o máximo que consegui, antes que a fome tirasse de vez a força que eu precisava pra usar qualquer mana.

— Hã?

A mancha roxa aumentou.

Isso é... algum tipo de medidor? Será que ele enche quando eu coloco mana?

Minha mente exausta começou a acelerar.

Meu nível é tão alto que eu tenho uma quantidade estúpida de mana. Mais do que o suficiente.

Eu não entendia totalmente o que estava fazendo. Talvez passar por todas aquelas pedras tivesse derretido meu cérebro. Mas eu só queria ver algo acontecer. Qualquer coisa. Algo diferente.

Vou deixar mana o bastante pra usar um monte de habilidades — cem vezes deve ser suficiente.

Comecei a despejar mana no cristal da bolsa.

Mesmo que eu só fique aqui sentado e a única diferença seja o cristal estar roxo agora, já é alguma coisa...

Depois de vários minutos, o cristal ficou completamente roxo — o medidor estava cheio. Ele brilhava com uma luz forte e ofuscante. Senti uma estranha sensação de satisfação com o que tinha feito.

— Pfaa haah... hah... — soltei uma risada seca.

Por que eu tô rindo, afinal?

Forcei minhas pernas cansadas a ficarem de pé.

Hora de ir... Ainda consigo me mover, né? Provavelmente não vou conseguir voltar até aquela área do deserto. Vou ter que achar onde aqueles minotauros se enfiaram. Caminhar até minhas pernas não aguentarem mais. Se eu tentar com tudo que tenho e mesmo assim não der certo, pelo menos vou saber que fiz o possível. Ainda tem coisas que posso fazer aqui! Eu deixei aquele cristal roxo, não deixei?!

Ainda posso mudar as coisas.

Você sabia onde estava se metendo. Este lugar é o inferno. Contorça-se. Lute. Até o fim.

Até seu coração parar de bater.

Herói descartado, Mimori Touka.

— Heh, eu não vou desistir tão fácil assim... Pfah hah hah...

Por algum motivo estranho, comecei a rir.

Pelo menos as coisas voltaram a ficar interessantes. Será que é a fome mexendo com minha cabeça?

Andei alguns metros e então parei. Tinha algo errado.

— O-o quê...? — cambaleei pra frente, então olhei desesperado ao redor.

É um ataque?! Algum monstro tá me puxando?!

Não tinha nada ali...

Ah.

A bolsa de couro tinha mudado de novo — agora o cristal estava cinza. Ainda brilhava forte como antes, mas... será que de repente ficou mais pesado, sem nenhum aviso?

— Ah... — Tinha algo dentro. Não era a espada — eu tinha deixado ela perto da montanha de carcaças de monstros. Aquilo não parecia familiar.

— Então... o que é isso?

Tremendo, virei a bolsa inteira de cabeça pra baixo.

Dois itens caíram — um quicou e rolou um pouco, o outro caiu reto com um amassado. Peguei os dois.

Eu já tinha visto aquela embalagem antes. Ver algo tão normal... me deu uma saudade absurda de casa.

— Isso não pode ser real. Não tem como...

Nas minhas mãos estavam uma garrafa plástica de 500 ml de refrigerante de cola e um pacote de carne seca.

No começo, nem me perguntei por quê. Não tinha tempo pra pensar.

— Á-água...

Água... Água, água água água, água água água água.

Segurei a garrafa com as duas mãos. Havia condensação na superfície.

Fria ao toque. Não era alucinação. Era real.

Girei a tampa.

—?!

Nem força pra isso eu tinha.

Será que meus modificadores de status não estão funcionando? Ou será que eles não se aplicam a coisas pequenas tipo segurar uma garrafa? Os modificadores simplesmente param de funcionar quando você tá fraco?

— Aaaah! — Girei como se minha vida dependesse disso — e na real, dependia mesmo.

Pshh...

O cheiro doce da cola inundou meus sentidos enquanto eu levava a garrafa direto pros lábios. Comecei a engolir com tudo. Eu sabia que não devia beber rápido quando se está desidratado, mas não consegui me controlar — não consegui resistir.

Só parei quando comecei a engasgar e tossir.

— Tá tão bom...

Percebi que estava chorando. Era o refrigerante mais gostoso que eu já tinha tomado na vida.

O gosto forte e doce me atravessou até o âmago enquanto escorria como um rio refrescante pro meu estômago. Minha garganta se contraía com cada bolha do líquido gaseificado. Cada célula do meu corpo comemorava por ter açúcar de novo. Deixei aquela sensação me invadir por completo.

Olhei pra garrafa de novo — tinha mais ou menos um terço ainda. Fechei a tampa e virei pro meu próximo alvo.

Nunca fiquei tão feliz em ver carne seca de loja de conveniência.

Beber a cola de algum jeito me deixou ainda mais faminto. Rasguei o pacote e comecei a arrancar pedaços da carne com os dentes.

Quem liga pra etiqueta? Só tem eu e os monstros aqui embaixo mesmo.

Mastigar aquela carne dura e fibrosa era maravilhoso. O gosto mais forte era o sal, mas tinha também um toque doce, quase perfumado por baixo.

Desrosqueei a tampa da cola.

— S-só mais um pouco...!

Dei um gole do refrigerante com o pedaço de carne ainda na boca. O salgado da carne misturado com a doçura da cola deslizando pela língua — uma união perfeita. Nunca tinha pensado em juntar essas duas coisas, mas... era incrível.

Tá tão bom. Sempre foram assim...? Nossa... cola e carne seca...

Limpei a boca na manga da camisa.

Três pedaços de carne seca sobrando... Devo guardar?

Estendi a mão pro pacote de novo, mas de algum jeito... resisti.

Tenho que guardar. Continuar sem comida seria arriscado demais.

— Tudo bem, então...

Bom... me controlar é bom. Ainda tem um pouco de cola também. Bom trabalho, cérebro racional.

Peguei o pacote e olhei distraidamente pra embalagem. Tinha um adesivo de lado que dizia: “Para Grandes Fomes! Ultra Pack!”

A quem quer que tenha decidido fazer essa versão gigante... meu eterno agradecimento.

Respirei fundo.

Fiquei muito focado em comer por uns minutos ali — devo ter parecido um maluco. Mas acho que ninguém espera boas maneiras numa situação dessas.

Talvez fosse o açúcar, mas parecia que meu cérebro tava funcionando um pouco melhor e eu senti a força voltando aos meus membros. Não dá pra ter certeza, mas acho que os efeitos dos meus modificadores de status ficaram mais fracos quando eu tava faminto e exausto.

Como se acordasse de um transe, estremeci e olhei ao redor.

Isso é ruim. Fiquei tão concentrado na comida que esqueci de ficar atento aos monstros. Dei sorte de nenhum ter me matado enquanto eu comia.

Me movi até um ponto mais defensável, encostado numa das paredes, e me sentei. Coloquei a garrafa plástica debaixo do braço e examinei de novo a bolsa de couro. Estava vazia. Passei o polegar pelo cristal.

— Tá cinza agora, hein…

Começa verde-limão. Se colocar mana suficiente, ele fica roxo. Depois que a coca e a carne-seca saem, muda pra cinza.

Tenho que assumir que o aparecimento repentino da minha coca e da carne-seca tem algo a ver com a mudança de cor do cristal.

Então… se colocar mana suficiente na bolsa, algo sai de lá. Mas de onde veio? Será que é de algum lugar do mundo real?

Ok, pode haver um milhão de explicações e eu não entendo nada de magia pra decifrar isso. Vamos deixar essa pra depois. Coloca mana, tira comida… entendido.

— Será que volta a ficar verde?

Pode ser que só funcione uma vez.

O brilho da bolsa tinha sumido enquanto eu comia. Comecei a despejar mana nela e voltou a brilhar… mas a cor do cristal não mudou.

Ainda cinza. Será que reinicia depois de um tempo? E se…

— Da próxima vez, pode não ser comida e água. Pode ser outra coisa.

Eu precisava testar essas teorias de algum jeito.

A bolsa de couro que a Deusa me deu por “compaixão”, o item de Herói de Classe E que ela zombou como inútil… tinha salvado minha vida. Que ironia.

— Ela chamou de compaixão, mas ao que parece, essa bolsa já era minha desde o começo dessa invocação toda. No fim, ela só devolveu o que tinha roubado de mim…

Me levantei e guardei o resto da carne-seca e da coca na bolsa.

— Certo, pronto pra seguir. — Cocei a cabeça. — Tô começando a falar sozinho demais, né…?

Mas faz sentido, pensando bem. Andar em silêncio por essas cavernas teria me deixado maluco.

Falar sozinho não é tão ruim, né? Uh… já que não tem ninguém aqui pra me julgar, não vejo problema.

Beleza. Comida e água resolvidas por enquanto, hora de seguir em frente.

Voltei pelo caminho de onde tinha vindo — passando pelo lugar onde acordei, pelos corpos dos monstros, pra área mais alta, e dali pro deserto.

“…”

Território inexplorado.

— Não deixei nenhuma marca, então não posso ter certeza absoluta, mas… acho que nunca vim por aqui antes…

Andei com cuidado pela areia fina. Duas, talvez três horas se passaram até que me vi diante de uma enorme abertura arredondada e tortuosa.

— Vamos nessa.

Dei um passo à frente.

AWOOOOOOOH…

Foi o vento?

Pelo menos isso significava que tinha ar lá dentro, embora isso não quisesse dizer que o lugar estava ligado à superfície. Ainda não tinha visto nenhum monstro por aqui, e também não sentia presença de nenhum por perto.

Será que nenhum dos minotauros ou cabeças-de-pássaro vive por aqui?

Toquei a superfície negra de uma das pedras. Era lisa como vidro.

O terreno era irregular, cheio de depressões que pareciam poças e coberto por um pó branco. As pedras negras brotavam da areia como pequenas montanhas com topos nevados num mar branco.

Continuei andando, até chegar a uma caverna bem grande.

— Uau…

Havia uma poça pantanosa por perto, fui investigar. Infelizmente, a água era verde-escura… e aquilo eram bolhas? Um cheiro forte pairava no ar. Definitivamente não parecia algo que eu gostaria de beber.

Que pena — dava pra ter enchido a garrafa se fosse potável.

— Hm?

Tinha um crânio boiando na superfície. Parecia humano — alguém deve ter caído e se afogado.

Pelo menos isso provava uma coisa. Alguém além de mim escapou daqueles minotauros e monstros de cabeça de pássaro e chegou até aqui. Outro herói descartado, tentando sobreviver.

Procurei um caminho e encontrei uma subida suave.

Parecia uma escada em espiral que desistiu de ser escada, ou massa de panqueca mal espalhada. O que quero dizer é: era uma subida bem leve.

— Acho que vale a pena usar isso…

Comecei a subir.

Isso aqui é um calabouço, com certeza — por que a Deusa chamou esse lugar de ruína?

Assim que comecei a subir, formas brancas chamaram minha atenção.

— Isso é—

Uma pequena depressão na rocha à frente apareceu… e estava cheia de ossos — incontáveis ossos.

Não só de humanos… também tinha ossos dos minotauros e das cabeças-de-pássaro.

Engoli seco.

Tem algo ainda mais terrível por aqui, sem dúvida nenhuma.

— O que é isso…?

Dava pra ouvir… um grito vindo da escuridão…

O estrondo de rocha se partindo.

— Q-que foi isso?!

Levantei o braço pra proteger o rosto. Os estilhaços passaram raspando, voando descontroladamente pela areia.

Quando a poeira baixou, eu vi.

— Aquilo é… enorme.

Uma caverna gigante se abriu na parede de pedra à minha esquerda, e por ela…

Passos. Uma forma enorme, brilhando em laranja, se movendo na escuridão.

— É…

Era um dragão.

Sua cabeça de lagarto gigante tinha órbitas vazias, e carne roxa apodrecida pendia das costelas expostas. Suas asas rasgadas se esticavam, assim como sua cauda musculosa e retorcida. Os braços terminavam em garras afiadas como navalhas.

Ele abriu a boca e soltou um rugido gutural.

É um esqueleto? Um tipo de ghoul, ou…

Um dragão zumbi.

O rugido quase me derrubou. O fedor era insuportável. Algo escorreu dos dentes da criatura, caiu no chão e chiou.

Mais ácido, hein?

— Guaaaaaaaarrrr!

Uma língua fina, parecida com uma minhoca, saiu disparada da boca do dragão zumbi, mirando direto em mim. Por um momento, congelei.

— Então esse é o seu lar, hein?

Aquele monte de ossos na depressão devia ser as pessoas que vieram antes de mim — o lixão do dragão zumbi.

Eu conseguia sentir o quanto ele queria me matar. Levantei a mão.

Sou grato. De verdade. Obrigado por facilitar as coisas pra mim. Assim, não preciso me sentir mal por te aniquilar. Valeu por entrar na arena — agora é só uma questão de sobrevivência do mais forte.

O dragão zumbi levantou as garras.

Provavelmente acha que eu tô paralisado de medo, então veio me transformar em carne moída.

Tudo naquele monstro era apavorante, mas ao encará-lo, fui tomado por outra emoção — alegria.

Essa coisa é só mais pontos de experiência.

— Paralisar.

Com um estalo de ossos, as garras do monstro congelaram no ar.

— Veneno.

— Tá quase, hein?

A barra amarela do efeito de Paralisia estava quase zerada.

— Sono.

Uma barra azul apareceu acima do dragão zumbi. Depois de alguns segundos, a barra amarela sumiu.

Sem a paralisia segurando, ele desabou no chão como um monte de ossos, com as pernas dobradas em ângulos estranhos — como se alguém tivesse ligado a gravidade no máximo e o amassado.

É difícil dizer com essas órbitas oculares vazias, mas...

— Tá dormindo... eu acho.

Me sentei de pernas cruzadas na frente da cabeça do dragão. Seus ossos brancos estavam ficando num tom roxo familiar. Nem inimigos mortos-vivos eram imunes às minhas habilidades.

— Zzz... Zzz...

Ele... tá roncando?

Fedia a ácido e carne podre... e tinha umas paradas verdes crescendo nele, parecendo musgo.

O dragão não dava sinal de que ia acordar.

Agora tudo que posso fazer é esperar. Mas tenho que ficar atento — preciso estar pronto pra paralisar de novo antes do sono passar.

Aproveitar pra dar uma olhada nos meus status.

— Status, abrir.

Com um olho na barra, abri minha tela de status.


Touka Mimori

Nível 501

HP: +1503 MP: +12403/16533

Ataque: +1503 Defesa: +1503 Vitalidade: +1503

Velocidade: +1503 Inteligência: +1503

Título: Herói Classe E


— Nível 501. Tô começando a parecer intimidador...

Tirando o MP alto, ainda nem sei se esses status são bons mesmo. Não querendo bater na mesma tecla, mas a vitalidade do Oyamada no nível 1 era +500, né? Não dá pra saber se os modificadores de status de todo mundo funcionam por multiplicação como os meus, mas se forem, Oyamada só precisaria estar no nível 4 pra ter mais vida do que eu.

— Não me surpreenderia se você melhorasse mais devagar que um humano completamente normal.

Foi isso que aquela deusa nojenta me disse... então posso subir centenas de níveis e talvez só alcançar os status de um soldado comum?

— Então...

Não posso dar tanta importância a esses números, tirando o MP. O que preciso mesmo é treinar meus reflexos pra reagir rápido a ataques surpresa e esse tipo de coisa. Os números não dizem nada, mas lutar nessas ruínas vai me dar bastante prática.

— E meu MP...?

Usei um pouco com a bolsa e outro tanto com esse dragão, mas ainda tenho de sobra. Sem motivo pra me preocupar por enquanto.


Paralisar: Nível 2 / Custo de mana: 10MP / Habilidade de múltiplos alvos
Sono: Nível 2 / Custo de mana: 10MP / Habilidade de múltiplos alvos
Veneno: Nível 2 / Custo de mana: 10MP / Habilidade de múltiplos alvos


Então todas as minhas habilidades evoluíram pra funcionar em mais de um inimigo quando subi de nível. Também dava pra ver todos os custos de mana.

Cocei o queixo.

Elas melhoraram, mas o custo de mana não mudou. Considerando quanto tempo os efeitos duram e a taxa de acerto de 100%...

— Essas habilidades são incríveis...

Se eu sou mesmo um herói de Classe E — o nível mais baixo que existe...

— Será que isso aqui é habilidade de nível baixo mesmo?

Lembrei do Kirihara perguntando pra deusa sobre isso.

— Por que Classe S é a mais alta?

— O “S” vem de “Special”, é claro.

Ela disse que usou o sistema alfabético pra gente entender melhor nossas classes...

— Todas têm significados em inglês? — Ninguém que viu minhas lutas chamaria minhas habilidades de fracas.

— E se...

Uma teoria surgiu na minha mente — nada que eu pudesse testar agora, só uma ideia jogada ao vento.

E se o “E” de Classe E também significasse algo? E se não fosse o menor nível, mas sim algo completamente fora do sistema de classificação? Algo diferente. Excluído. E se o “E” de Classe E significar...

Excepcional.

— Talvez heróis de Classe E não sejam classificados como os outros — são exceções.

Meus status são muito mais baixos que os dos heróis de Classe A, então esse “excepcional” não se aplicaria a eles... a não ser que os outros ganhem status mais devagar que eu. De qualquer forma, a vitalidade do Oyamada no nível 1 ainda era maior que a minha no nível 100, então continuo sendo fraco em comparação. Tudo que posso dizer com certeza é que minhas habilidades únicas são especiais. Talvez seja tipo... todos os meus pontos foram jogados nelas, e sobrou nada pros status normais?

— Não que eu possa conferir aqui embaixo, mesmo.

Tenho armas pra lutar — isso é tudo que importa agora.

Fiquei sentado em silêncio esperando o dragão zumbi morrer.

Se ele morre e eu tô bem longe, será que ainda ganho EXP? Queria testar isso, mas... preciso da EXP desse bicho agora. É a primeira vez que vejo um também — não é hora de testar teoria.

Muito tempo se passou.

— Ggur...


Subiu de nível!
Nível 501 → Nível 549


O dragão zumbi finalmente morreu.

Deve ter tido muito HP — demorou. Veneno é meu salva-vidas, mas sempre vai demorar pra fazer efeito.

— ...

Mas agora, surgiu um novo problema. Já derrotei monstros, a fome e a sede, mas tinha outra coisa mais urgente pra resolver.

Minhas pálpebras ficaram pesadas.

— Sono.

Fui invocado pra esse mundo, jogado nessas ruínas... meu coração tava acelerado fazia dias. Corri, quase morri, subi e desci escadas. Agora que tô fora de perigo imediato e comi alguma coisa, tudo veio à tona. Meus nervos começaram a relaxar, me deixando baixar a guarda. Meu cérebro gritava por alívio, e meu corpo exausto implorava pra descansar.

Não importa o quão altos sejam meus status—eu ainda preciso dormir. E se meus modificadores de status param de funcionar quando estou privado de sono, aí que ferrou de vez.

O que eu faço?

Se tivesse mais alguém aqui comigo, a gente poderia revezar a vigília. Isso aqui são ruínas, certo? Então, cadê os prédios arruinados? Os quartos?

Deixei meus olhos seguirem a encosta em espiral que subia até o teto.

Tenho que subir ali, disso eu tenho certeza. Mas será que consigo nesse estado de exaustão? Posso acabar desabando no meio do caminho. E mesmo que eu tenha derrotado aquela coisa que parecia um dragão... e se tiverem mais lá em cima? Será que não é melhor tentar descansar aqui embaixo—será que existe algum lugar decente pra dormir nessa caverna gigante?

Resolvi dar uma olhada no perímetro da caverna onde eu estava. A abertura que o dragão zumbi fez na rocha levava a um túnel, que ia se estreitando até o que parecia ser o santuário interno do dragão. A câmara inteira estava cheia de um líquido verde-escuro, tipo esgoto de cidade.

Parecia ácido. Peguei uma pedra e joguei lá dentro—ela chiou enquanto se dissolvia. Parecia um pouco mais fraco que aquele líquido que saía dos monstros, mas ainda assim perigoso. E o cheiro era tão forte que mal dava pra ficar perto. Dormir ali estava fora de cogitação.

E agora? Não quero dormir no aberto…

Olhei para o dragão zumbi derrotado. Seus ossos estavam jogados numa pilha, apontando pra tudo quanto é lado—meu feitiço de sono fez ele desabar sobre si mesmo.

Tive uma ideia.

—Uh… não sei se é uma boa, não.

Caminhei até o dragão e coloquei a mão no esqueleto quebrado. Depois recuei e dei um soco com força—era duro como pedra.

—Parece resistente o bastante…

Comecei a escalar o esqueleto caído.

—Talvez… aqui?

Dois ossos grossos tinham caído um sobre o outro, formando um pequeno vão.

Espiei dentro do espaço apertado.

—Será que… eu realmente caibo aqui?

Me espremei entre os dois ossos.

—Uhn… beleza…

Passei pela abertura, então levantei a bolsinha de couro pra iluminar ao redor. A pequena câmara era apertada demais pra ficar em pé—tive que me curvar—mas havia espaço suficiente pra uma pessoa se deitar. Era o suficiente.

—Tá fedendo demais aqui dentro, mas pelo menos é seguro o bastante pra dormir um pouco. Não tem o que fazer quanto ao cheiro, e pelo menos não queima o nariz como o ácido do túnel. Me arrastei de volta pra fora. Os ossos gigantes do dragão estavam espalhados pelo lugar, e alguns tinham se partido quando caíram. Peguei um fragmento fino e quebrei ao meio com um pisão firme.

Ok, esse pedaço é frágil o bastante pra quebrar fácil, e ainda faz um som alto.

—Aqui, aqui… e aqui…

Espalhei pedaços de osso ao redor do esconderijo onde eu planejava dormir. Se algum monstro tentasse se aproximar, ia acabar pisando num deles e fazendo barulho. Era um sistema de alarme simples, mas só de ter isso ali, já me senti bem mais tranquilo. Me espremei de volta pro vão.

Me sentei no escuro, encostado numa parede de osso. Seria perigoso demais deitar—eu queria estar pronto pra me mover a qualquer momento. Fechei os olhos, e quase imediatamente peguei no sono.

Crack!

Acordei assustado e abri os olhos lentamente.

—Eles chegaram.

Quanto tempo eu dormi? Minha cabeça tá… bem. Eu consigo lidar com isso. Lembro de ter lido na internet que, se você dormir profundamente o bastante, um cochilo curto já é suficiente… Tô me sentindo meio pesado e lento, mas nada além do que costumo sentir quando acabei de acordar.

Beleza, vamos ver que tipo de monstro é dessa vez.

Crack—

Hã?

Um coro de estalos se seguiu.

Parece mais de um… acho que esses aqui andam em bando.

Me movi devagar pra poder espiar eles do meu esconderijo. Não consegui ver bem suas formas, mas dava pra sentir claramente a presença de vários monstros lá fora. Pareciam estar procurando por algo… provavelmente por mim.

Será que sentiram meu cheiro? Talvez esse dragão apodrecido esteja mascarando o odor? Ainda assim… eles parecem organizados, bem diferentes dos monstros com que lidei até agora. Os minotauros e os cabeças-de-pássaro agiam como animais, mas esses aqui… parecem inteligentes.

Com uma cacofonia de estalos, eles pisaram com força nos ossos do meu alarme e começaram a emitir uma série de sons estranhos.

—Geeeeh? Geh-geh-geh-geee!

“Cadê?!”, parecia que diziam sem parar.

—Não tem como eu sair daqui sem ser notado. Mas olha…

Me espremei pra fora do esconderijo.

—Fugir nunca foi o plano.

Não dá pra me esconder aqui dentro feito tartaruga, meu campo de visão não é bom o suficiente pra atingir todos esses caras. Aqui de cima eu tenho vantagem de altura, e posso usar a parede pra cobertura.

Finalmente consegui ver direito as criaturas que se aproximavam. Eram monstros lagarto humanoides—tipo os lagartos dos jogos ou filmes, com alguns toques apavorantes. Cada um tinha tentáculos pretos se contorcendo saindo dos ombros, e as mãos balançavam ao vento como panos molhados.

Os tentáculos pingavam no chão de pedra, chiando a cada gota.

Ácido. Claro. Pode esquecer a ideia de comer um desses…

Os homens-lagarto tinham olhos negros como carvão, com pupilas douradas e turvas—iguais aos outros. E em suas testas… cada um tinha uma segunda boca? Era bizarro. As criaturas tinham pernas enormes e musculosas em contraste com os braços finos, e eram imensas—maiores até que os minotauros. Contei vinte deles.

—Geee-ehh?

O primeiro homem-lagarto que me viu soltou um grunhido gutural.

—Geeaah!

Os monstros viraram os olhos assassinos pra mim todos ao mesmo tempo.

Eles querem me matar, mas… tem algo mais.

—Gyo, gyo, gyoi!

—Hã?

Um dos monstros mais atrás veio pra frente, segurando um bastão comprido com algo pendurado… era um esqueleto, provavelmente humano, vestindo um vestido longo. Parecia que eles tinham vestido ele com aquelas roupas.

— Wahh, wahh, waahh~! ♪

O homem-lagarto balançava seu bastão e fazia o esqueleto se mexer de um lado pro outro. O que estava ao lado dele choramingava e semicerrava os olhos, fingindo que chorava enquanto encarava o teto.

— N-Ngooooo… Gnaaaahh!

A voz mudou. Estava imitando um grito?

— Ah, entendi agora.

O esqueleto de vestido—eles estavam encenando os últimos momentos da vida dela. Em seguida, outro homem-lagarto trouxe um esqueleto enegrecido e carbonizado, vestindo roupas masculinas.

Já consigo imaginar o que aconteceu com esse.

Um dos homens-lagarto rolou de costas no chão e começou a agitar os membros de forma selvagem, sendo ovacionado pelos outros.

— Gye-gye-gyeeeaaaahh?!

— Geh geh geh geh!

Eles estavam zombando da forma como esses heróis morreram. Eu conseguia imaginar o homem se contorcendo de dor enquanto queimava vivo. Essas criaturas tinham assistido. E se divertido com isso.

Em seguida, um mais alto se adiantou e colocou um crânio humano aos seus pés.

O homem-lagarto me encarou com os olhos semicerrados e as presas à mostra, enquanto esmagava o crânio com a sola do pé, reduzindo-o a pó.

"Me tema", era o que parecia dizer. "É assim que matamos. Nós esmagamos. Nós aniquilamos."

A mensagem era bem clara. Eles nem se davam ao trabalho de me atacar... porque eu não era uma ameaça pra eles. Por mais que eu subisse de nível, nada além do meu MP realmente melhorava—e parecia que eles podiam perceber isso, pelo cheiro ou sei lá como, que eu era o fundo do poço. Então por que se dar ao trabalho de me matar rápido? Eles tinham certeza de que podiam acabar comigo quando quisessem, então por que não se divertir antes? Provavelmente acham que não fui eu quem matou o dragão zumbi—devem pensar que só encontrei o cadáver por acaso e tô me escondendo dentro dele.

Eles tinham os mesmos instintos violentos de qualquer outro monstro que eu já tinha encontrado, mas tinha algo mais ali.

Crueldade.

Minha mente voltou pro momento antes de ser enviado às ruínas—as caras de Kirihara, Oyamada, Yasu, da Deusa, de toda a turma 2-C, jogando pedras no fraco, zombando, me maltratando, me olhando de cima e rindo, dizendo pra eu morrer. Estendi o braço na direção dos homens-lagarto, e eles pareceram radiantes, zombando de mim com alegria. Devem ter achado que eu estava me rendendo.

— Obrigado.

— Gyo?

Olhei friamente para os homens-lagarto.

— Por serem lixo. Assim eu não preciso me sentir mal por matar vocês.

De repente, os olhos do primeiro homem-lagarto começaram a brilhar, e um som agudo e estranho ecoou pela caverna. Os olhos da criatura e a boca em sua testa brilharam em vermelho.

— Paralisar.

— Ge-geh?

A cabeça do homem-lagarto explodiu. Ele estava preparando um ataque, mas a energia na testa não teve por onde escapar.

Estava irritado por eu não ter sentido medo? Ou só queria me matar e achou que usar lasers seria legal. Tanto faz agora.

Olhei para o corpo sem cabeça do homem-lagarto.

— Tentar me atingir foi uma péssima ideia.

Percebi outra coisa também. Talvez por causa de tanto ser atacado por monstros, meus reflexos tinham ficado absurdamente rápidos. Eu andava com a morte, mas meus instintos estavam acompanhando o ritmo.

Fiquei surpreso com o quanto eu tinha ficado sensível aos movimentos dos inimigos. Eu reagia tão rápido que parecia até prever o futuro.

Um ataque preventivo, por assim dizer.

Caminhar pelas ruínas da morte aguçou meus sentidos—isso não era algum modificador de velocidade, era o que a experiência real tinha feito comigo.

Que se dane o número na tela. Esses reflexos são os meus atributos de verdade.

Contanto que eu aprendesse a ler os inimigos, melhorasse meus reflexos e sempre atacasse primeiro, eu seria imparável. Essas ruínas eram o lugar perfeito pra treinar—aqui eu não podia me dar ao luxo de relaxar nem por um segundo.

A horda de homens-lagarto deformados se espalhou. Pareciam preocupados, pararam pra pensar nos próximos passos, talvez se perguntando se o companheiro morto tinha se descontrolado.

Os da frente não conseguiam ver o que acontecia atrás—ficaram parados me encarando.

Isso mesmo. Vocês não conseguem se mover.

O rosto deles tinha perdido toda aquela confiança, substituída por confusão diante de uma ameaça que não conseguiam compreender.

— Sabem, eu consigo acertar múltiplos alvos de uma vez — falei, casualmente. Os homens-lagarto me encararam, os olhos tomados pelo terror.

— Geh... Gehh...

— Eu adoro as expressões de vocês.

— Hm?

Algo estava vindo. Um som de passos pesados sobre pedra.

Uma debandada.

Uma horda de lagartos correndo sobre as quatro patas invadiu a caverna como uma enxurrada furiosa. Tinham coleiras de corda no pescoço.

Devem ter sido atraídos pela explosão. Seriam montarias dos homens-lagarto?

Eram pelo menos uns vinte.

Olhos dourados, pele negra cortada por linhas laranjas, cuspindo ácido por antenas em forma de chifres… e assassinato nos olhos, mirando diretamente em mim.

— Igyeeeeh!

Com gritos surreais, avançaram. Empurraram os homens-lagarto paralisados no caminho, desesperados para me alcançar—então acho que não eram montarias deles, afinal.

Atrás dos lagartos, outra explosão sacudiu a caverna, abrindo um novo túnel em meio a pedras e poeira.

Com um rugido, dois dragões zumbis surgiram e vieram direto na minha direção.

— Mas que droga…

Por que esses monstros são assim?

— As pessoas que vêm até aqui são só presas pra vocês? Brinquedos que vocês matam por diversão?

Vocês mataram tantos de nós…

Torturaram a gente…

Achavam que eram os mais fortes aqui embaixo. Nunca imaginaram que um humano poderia derrotá-los.

Mas até que os modificadores de status baixos têm suas vantagens.

Eles fazem meus inimigos me subestimarem.

Olhei para os homens-lagarto congelados que riram de mim, tão certos de que eu era uma presa fácil. Eles abaixaram a guarda assim que me viram, e agora não passavam de EXP esperando pra ser colhida.

— Vocês se esforçaram, monstrinhos de merda.

Levantei as duas mãos.

— Paralisar.

Um sorriso selvagem se espalhou pelo meu rosto.

— Veneno.

Eu vou matar cada um de vocês com prazer.



Kashima Kobato


A HEROÍNA DE CLASSE D, Kashima Kobato, caminhava por um corredor luxuosamente decorado. Parecia um castelo saído direto dos filmes de fantasia que ela tanto amava — tipo a Europa medieval, mas com um toque mágico.

Ela mal conseguia expressar o que estava sentindo. Estava no tipo de lugar que sempre sonhou ver na vida real. Em outras circunstâncias, provavelmente estaria animada e feliz de estar ali.

Kobato tirou os olhos do tapete e encarou a cabeça da garota à sua frente. A Deusa os guiava pelos corredores como se ainda estivessem numa excursão escolar.

Ela tinha dito que havia algo a ser resolvido antes que todos recebessem seus itens únicos.

Kobato fechou os olhos e juntou as mãos, como se estivesse rezando.

Estou com medo...

Ver aquele lobo de três olhos virar cinzas foi apavorante.

Depois que foi medida, ela se escondeu com os outros alunos desesperados, encurralados nos cantos da sala. E Kobato entendeu muito bem o que tinha acontecido dentro daquele círculo mágico. Seus colegas gritando insultos e rindo... e ela percebeu que a Deusa talvez fosse a mais assustadora de todos.

— Vai pro inferno, Deusa imunda.

Mimori-kun...

Ela não conseguiu segurar as lágrimas.

Desculpa... Me desculpa mesmo... Eu não consegui fazer nada...


Em um dia qualquer, voltando da escola, Kobato encontrou um gato caído perto dos portões. Ele estava fraco e machucado, mas todo mundo ignorava — com exceção de dois garotos que riam e tiravam fotos com o celular.

— Cara! Se isso bombar no Inste, a gente resgata o gato! Vai ser tipo uma história super inspiradora — certeza que viraliza! Vai até sair na TV!

Os garotos foram embora e nunca mais voltaram, deixando Kobato sozinha com seus pensamentos.

O que eu faço...?

Com as mãos tremendo, ela pegou o celular e procurou por “gato” e “machucado”. Ela sempre foi assim, morrendo de medo de tomar iniciativa, esperando que alguém decidisse por ela.

— N-não! — Ela caiu numa página cheia de fotos de gatos mortos. Suas mãos pararam. Ela fechou os olhos com força.

Não dá... Eu não quero ver isso...

— Kashima?

Um garoto...?

— Ah... Mimori-kun...

Quando abriu os olhos, seu colega de classe Mimori Touka estava ao seu lado. Eles nunca tinham conversado antes. Ele não chamava atenção — talvez por isso Kobato sentisse uma certa afinidade. Ele não era assustador como os garotos do grupo do Kirihara Takuto.

— Esse gato... ele tá bem?

— Então... — Kobato explicou o que tinha visto.

— Entendi — disse Mimori, sem rodeios.

— Hã?

— Vamos levar ele no veterinário. Tem um ali perto.

— Ah...

Um veterinário. Claro. Por que eu não pensei nisso...?

— Você se machucou, pequenino? — Touka pegou o gato com cuidado nos braços. — Fica paradinho, tá?

Nunca vi o Mimori-kun com uma expressão dessas...

O veterinário disse que o gato tinha machucado a pata e estava desnutrido — por isso estava tão parado. Mas ele ia ficar bem com o tratamento certo. Kobato soltou um suspiro de alívio enquanto saíam da sala de espera.

— Mimori-kun... O-obrigada.

— De boa. Eu gosto de gatos.

— S-sobre o dinheiro... — Kobato começou a pegar a carteira — Touka já tinha pagado sem que ela percebesse.

Ele deu um sorriso meio sem graça.

— Relaxa. Eu que sugeri levar no vet, afinal.

— M-mas...

— Sério, tá tranquilo. Eu nem gasto muito mesmo. Prefiro usar meu dinheiro com isso.

Como sempre, Kobato não achou palavras pra contestar, então apenas largou a carteira e assentiu em silêncio. Ela sempre foi assim — indo com a maré, evitando conflitos ou empurrando eles pra frente.

Preciso puxar assunto... Mas sobre o quê...?

Ela forçou um sorriso meio torto — era boa em sair de situações sorrindo.

— Então... você gosta de animais, Mimori-kun?

— Gosto, sim — Mimori respondeu, olhando pro nada. — Mais do que de pessoas, pelo menos.

— Hã...?

Mimori-kun?

Touka pareceu perceber que tinha deixado ela desconfortável, embora o olhar preocupado ainda não tivesse sumido.

— Ah... não é bem isso! É só que... com um bicho, você não precisa se preocupar com o que ele pensa de você, sabe? Eu gosto muito dos meus pais adotivos agora, então—

Parecia uma resposta estranha pra Kobato, como se ele estivesse desesperado pra esconder o que realmente sentia. Ela já tinha lido sobre isso — garotos tentando parecer descolados e diferentes dizendo que odeiam o mundo. Ela lia de tudo na internet — mesmo sem saber conversar, dava pra aprender quase tudo jogando perguntas no Google o dia inteiro.

Mas Touka não parecia ser o tipo que bancava esse papel. O que ele disse parecia mais como se tivesse deixado escapar o que sentia de verdade.

— E-enfim... você é uma pessoa muito gentil, Kashima.

— Hã...? E-eu... acho que não sou. Você que é... A-ah, t-te vejo amanhã na escola...

— Beleza. Até mais, Kashima.

Aquela foi a última vez que ela conversou com Mimori Touka. Nunca teve coragem de tentar de novo. Pra uma garota introvertida como Kashima Kobato, ir até um cara na escola e puxar assunto era demais. Touka chegou a tentar conversar uma vez, mas ela fingiu que não era com ela — não teve coragem de responder. Desde então, se sentia um pouco culpada toda vez que o via nos corredores. O gato que eles tinham encontrado juntos agora fazia parte da família Kashima.


Como eles puderam... ele era da nossa turma.

Kobato achava a classe 2-C assustadora. Quando Oyamada chutou a cadeira do Yasu no ônibus, Kobato também ficou abalada. Ela nem conseguia olhar nos olhos de Oyamada Shougo — se fizesse isso, talvez tivesse um ataque cardíaco.

Eu sou uma covarde. Aquele lobo de três olhos… heróis precisam mesmo lutar contra coisas assim? Eu não consigo. Eu sei que não consigo. A Deusa também me assusta. Nem sei como explicar direito, é só… uma sensação ruim. A Sogou Ayaka foi incrível, enfrentando ela daquele jeito. Ela e as irmãs Takao… elas estão em um nível totalmente diferente do meu. Kirihara Takuto, Oyamada Shougo, Yasu Tomohiro, todos eles. Eu nunca vou ser como eles.

Todo mundo aqui é melhor do que eu.

Ela olhou para os próprios pés.

Sou uma heroína da Classe D e uma covarde… talvez sejam eles que vão me descartar a seguir.

— Kobato~? Por que você tá com essa cara de quem tá viajando? Ainda preocupada?

Ela levantou a cabeça.

— Ah… Ikusaba-san. — Sua colega de classe, Ikusaba Asagi, tinha virado para trás com um sorriso no rosto.

— Asagi — respondeu Kobato na mesma hora.

— Hm?

— Eu vivo dizendo que odeio quando me chamam pelo sobrenome, tá? Se você tá fazendo isso de propósito, eu e a maioria das meninas da 2-C podemos muito bem começar a te deixar de lado, entendeu?

— A-ah… D-desculpa — gaguejou Kobato.

Ela é Classe B, eu acho…

Depois que Oyamada Shougo foi ranqueado como Classe A e Asagi ficou com Classe B, todo mundo meio que começou a seguir os dois. No topo da hierarquia estava o grupo do Kirihara Takuto, claro, mas a Asagi tinha uma baita influência entre as garotas da sala. Ninguém queria que ela ficasse contra eles — todas as meninas tomavam cuidado com o poder dela. Algumas entraram pro círculo da Asagi, outras ficavam por perto tentando puxar o saco e ganhar pontos com ela. E o resto se mantinha neutro, sem chamar atenção.

Ninguém respondia de volta pra ela.

Kobato escolheu ser neutra — tipo uma figurante de fundo, por assim dizer. No tempo livre, ela lia light novels no celular, num cantinho da sala.

— Tenho uma perguntinha pra você, Pombinha — disse Asagi. Ela sempre usava esse apelido por causa do kanji de pombo no nome da Kobato.

— C-certo… O que é?

Asagi se aproximou e passou um braço ao redor da cintura de Kobato num gesto que parecia mais ameaçador do que amigável.

— Olha pra sala… vai desmoronar a qualquer momento.

O quê?

— Desmoronar…?

— Isso aí! A 2-C vai rachar, sem dúvida.

— V-vai?

Asagi olhou pra frente da sala, onde o grupo do Kirihara Takuto seguia de perto a Deusa. Yasu Tomohiro caminhava logo atrás deles.

A hierarquia estava se formando bem na frente dos olhos, com os poderosos na frente da fila e os mais fracos atrás, embora Sogou Ayaka e as irmãs Takao estivessem notavelmente ausentes. Mas Asagi tinha ido de propósito até o fim da fila pra conversar com os alunos mais fracos.

— Tá vendo como todos os fortes estão se agrupando na frente? Um bando de malas, a maioria. Mas cedo ou tarde a gente vai formar grupos de verdade, com consequências reais, Pombinha.

Asagi sorriu de forma pouco convincente — os olhos fixos em Kobato.

— Quando essa hora chegar… você tá com a gente, né? Do nosso lado.

— O-o quê…?

— Guerra é jogo de números, Kobato-chan~! Heh, mas acho que um cérebro de passarinho como o seu não entenderia! Ainda bem que ninguém liga pro que tem dentro da sua cabeça quando você tem peitos assim, né, Pombinha?

— P-para…!

Asagi estendeu a mão e começou a tocá-los. Kobato se encolheu — ela se sentia desconfortável com os seios desde que começaram a crescer no ensino fundamental.

— Ah…

Asagi a puxou ainda mais pra perto.

— Escuta, eu sou uma heroína Classe B convidando uma perdedora Classe D pra vir junto. Uma garota esperta agarraria a chance, se quer saber. Ou o quê, você acha que o Kirihara vai te escolher? Nem pensar! Ele não quer uma atrapalhada de Classe D puxando o grupo pra trás.

— E-eu não quero escolher lados… — protestou Kobato.

Mas… talvez se a Sogou-san tivesse um grupo…

Kobato não conseguia deixar de respeitar e admirar Sogou Ayaka. Ela era rica, inteligente, bonita, atlética, sofisticada, forte, gentil, e…

— A Ayaka vai morrer, certeza.

— Hã…?

Parecia que a Asagi tinha lido sua mente. O coração de Kobato disparou.

— A-A Sogou-san vai morrer? O-o que você quer dizer com isso?

— Ainda não entendeu? Você viu aquela idiota enfrentando a Deusa, né? Ela não dura uma semana! A riquinha é só coragem, idealismo e imprudência… Aquela princesinha nem sabe a diferença entre ser corajosa e ser burra. Sacou, Kobato?

Kobato pigarreou.

Não importa o que você diga, a Sogou-san é incrível…

Ela engoliu em seco, junto com aquelas palavras.

— Você também precisa entender a posição em que tá, Kobato-chan! Quando a gente derrotar esse Rei Demônio aí e voltar pro mundo real… — Ela deu dois tapinhas nos ombros de Kobato pra enfatizar. — Pode ser que a gente simplesmente não tenha mais lugar pra você, sabia? Pensa nisso, Pombinha~!

— ……

— Responde!

Asagi apertou por baixo dos seios da Kobato e os chacoalhou duas vezes.

— Kyaa!

Kobato ficou vermelha na hora e cruzou os braços sobre o peito. Asagi lançou um olhar cheio de malícia pros garotos ao redor.

— Você é uma heroína Classe D, mas tem seus próprios trunfos pra usar com os meninos, né? Eu sei que você vai dar um jeito de usar quando a gente precisar. Tamo junta nessa, Pombinha-chan!

Kobato olhou novamente pros próprios pés.

Não acredito que ela pode ser tão cruel assim…

De repente, uma comoção surgiu na frente da fila.

— Heróis honoráveis, corram por suas vidas! — Uma das figuras encapuzadas correu pela fila de alunos, vermelha e ofegante.

— O que significa isso? — exigiu a Deusa.

— Mil perdões, Deusa! Enquanto preparávamos os monstros, um soldado idiota deixou um protodragão escapar dentro do castelo!

Com um grito agudo, uma criatura virou a esquina voando — parecia exatamente um pequeno dragão.

Um monstro…! Kobato se encolheu de medo.

— Deusa, essa criatura é demais para nós! P-por favor, tenha piedade—! — implorou a figura encapuzada.

— Afastem-se.

Kirihara Takuto deu um passo à frente e levantou a mão.

— Dragonic Buster!

Uma luz dourada reluzente saiu da mão de Kirihara e transformou o pequeno dragão em cinzas.


Explosões secundárias ecoaram por vários segundos após o impacto, até que parte do teto desabou.

— Hunf. Acho que fica mais rápido e forte no nível 2 — disse Kirihara, sem demonstrar interesse. O resto da turma ficou paralisado por um momento, e então explodiu em aplausos entusiasmados.

— Takuto!! Cara, isso foi incrível!

— É claro que foi! É o Kirihara-kun!

— Não te chamam de Classe-S à toa, hein?!

— Muito insano!

— Kirihara-kun, você é demais!

— Acho que... tô me apaixonando...

Kirihara estalou o pescoço para o lado.

— Caiu com um golpe só…? Esse monstro não era nada. Por que vocês estão tão empolgados? Só usei minha habilidade, tipo... hã?

Kirihara abriu sua tela de status.

— Diz aqui que eu subi de nível. Nível 10…?

— O-o quê?! — a figura encapuzada ficou boquiaberta, olhando para a Deusa com incredulidade. — Deusa, isso é…!

— Sim, Kirihara-san realmente tem o que é preciso para ser um herói incrível. Mal posso esperar para ver como ele vai evoluir — disse a Deusa, com surpresa e admiração.

— Não que eu me importe, mas... acho que isso é bom, ou algo assim? — murmurou Kirihara, de forma vaga.

— É fenomenal! — exclamou o encapuzado. — Pensar que você cresceria tão rápido...! Nenhum herói jamais atingiu dois dígitos em um único dia! Ouvi dizer que o nível 8 era o máximo já alcançado — e foi por...

— O Herói das Sombras — interrompeu a Deusa. — Isso mesmo. — Ela lançou um olhar para Yasu, que ergueu o nariz com ar satisfeito. A Deusa já havia explicado que apenas o herói, ela mesma, e aqueles a quem ela concedesse permissão especial podiam ver os status.

A Deusa abriu os braços em um gesto grandioso.

— Esses resultados da invocação são realmente maravilhosos! Acredito que o Rei Demônio e seus seguidores estão no auge de seu poder em milênios, mas... vão enfrentar a batalha de suas vidas, com certeza!

A Deusa se virou de novo.

— Vamos seguir em frente!

— Pra onde a gente tá indo, afinal? — perguntou Oyamada.

— Ah ha~! Bem, com base na reação de vocês ao dragão, acho que nossa primeira missão é fazer vocês se acostumarem a matar~! — disse ela, com uma risadinha alegre.

Acostumar com matar…?

— Para heróis criados num ambiente pacífico, isso pode ser um baita obstáculo. Pra alguns, é difícil de suportar — tirar a vida de um ser vivo pode ser um choque e tanto! Para alguns de vocês, esse será o primeiro desafio real — disse ela, com um sorriso benevolente. — No entanto, vocês devem superar isso! A não ser que queiram acabar como nosso pobre amigo Mimori-san? Por mais que me entristeça mandar qualquer um de vocês embora…

Ela tá dizendo que… quem falhar vai ser descartado? Eu não consigo… tô com medo.

Kobato já sentia as lágrimas se formando.

O que vai acontecer com a gente…?


Mimori Touka

SENTEI-ME com as pernas cruzadas sobre uma pedra, mastigando um pedaço de carne seca no café da manhã.

Lizardmen doentes e adormecidos estavam espalhados ao meu redor, borbulhando. Atrás deles, os corpos dos lagartos montaria se empilhavam, e dos dois lados, os dois dragões zumbis jaziam em montes, gemendo e vazando fluidos.

Gritos de dor preenchiam o ar. E fui eu quem causou todo esse sofrimento… fui eu quem cometeu todos esses assassinatos. Esse tempo todo, isso estava dentro de mim — a capacidade de matar. Estreitei os olhos para os monstros que gemiam e os encarei com desprezo.

Por um instante, quando meus olhos passaram pelos dois dragões apodrecendo, seus rostos pareceram familiares.

Naquele dia, como sempre, eles me chutaram enquanto eu estava encolhido no chão. Acho que era depois do jantar. Minha mãe costumava comprar coisas demais no supermercado, o que gerava brigas com meu pai — mas aquelas sobras geralmente eram tudo que eu tinha pra comer.

— O moleque ficou resistente! Ugh, não tem graça se ele não chorar!

— Não mata ele, hein? Vai que alguém reclama.

— Cala a boca! Se ele morrer, morreu! A gente diz que foi acidente — é só bancar o idiota até desistirem! E ó, não ganhamos uma grana se o pirralho bater as botas?!

— Querido, deixa eu chutar ele também! Toma essa! Tá doendo? Tá, né?! A gente rala todo dia no trabalho, estresse — todo — santo — dia! E isso faz a gente melhor que você, moleque inútil! Toma essa! Vai falar alguma coisa, Too-ka?! Morre! Morre! Morre!

— Vou pegar mais uma bebida. Faz logo! Mata ele! Vai ser um alívio se livrar dele!

— Toma essa—hã? Ugh, os vizinhos tão reclamando do barulho de novo. Idiotas!

— Ei! Não quero que chamem o conselho tutelar de novo!

— É-é… tá bom, tá bom, vamos maneirar! Desculpa aí! Nosso filho é um encrenqueirinho, viu~!

Um dia… eu vou matar vocês.

Se eu não fizer isso, vocês vão acabar me matando.

Eu preciso de mais poder. Se eu tivesse o poder de destruir tudo…

Matem eles.

Algo dentro de mim clama por vingança.

Eu vou matar vocês.

Eu vou matar esses desgraçados.


Será que foi aí que eu aprendi a matar?

— Acho que é uma coisa pela qual eu devia agradecer. Se algum dia eu voltar pra casa, talvez eu procure eles… e agradeça do jeito certo.

Fiz uma careta. Meus pais adotivos sempre me trataram com carinho e gentileza. Eles me ensinaram a viver pelo exemplo. Se eu fosse agradecer alguém… seria a eles.

— Gentileza, hein? — Olhei pros monstros. Os primeiros a morrer foram os lagartos montaria. Vi cada um deles dar o último suspiro.

Nível aumentado!

Não teve nada de empolgante ou satisfatório. Isso era o inferno — um inferno que eu mesmo criei. Eu fiz algo horrível. Isso era o oposto completo da gentileza.

As lágrimas começaram a se formar.

— O que eu tô fazendo…?

A realidade nojenta do que eu tava fazendo caiu sobre mim de uma vez só, e…

— Não tem nada.

Me senti… vazio. Sem emoções. As lágrimas escorriam pelo meu rosto, e eu só fiquei ali, paralisado.

Por que eu tô chorando?

Será que fui envenenado?

Minha consciência foi adormecida?

Meu senso de certo e errado tá paralisado?

Eu não conseguia pensar. Isso me assustava mais do que qualquer outra coisa. Esfreguei o rosto na manga.

Minha respiração ficou rasa e as lágrimas secaram.

—Não tenho escolha.

Estou lutando pela minha sobrevivência aqui embaixo.

Tenho que aceitar isso… aceitar quem eu tive que me tornar.

O novo eu—Too-ka Mimori.

Você tenta me matar, eu tento te matar.

Simples assim. Esse lado assassino já existe dentro de mim, bem lá no fundo. É só uma questão de deixá-lo à solta.

Vou aniquilar tudo no meu caminho.

Olhei para dentro de mim e encarei profundamente a escuridão que vi lá.

—Ei.

Eu não tenho mais medo de você.

A escuridão que eu temia agora era minha melhor amiga.

Ao som de um coro de gritos, os homens-lagarto morreram. Um pouco depois, os dragões zumbis os seguiram. Foi uma coisa brutal, repulsiva de se ver. Enquanto me preparava para seguir para a próxima área, me lembrei.

Level up!

Meus lábios se curvaram num sorriso.

Level up!
Nível 549 → Nível 665

Eu tinha quase certeza de que os homens-lagarto tinham saído do pântano ácido que encontrei antes — as roupas deles estavam encharcadas com aquele líquido familiar. Eu sabia que não dava pra nadar naquela coisa, então não teria como visitá-los por lá.

O buraco que os dois dragões zumbis abriram levava só a mais pântano. Joguei os ossos com os quais os homens-lagarto estavam brincando no buraco junto com os outros. O chão era duro demais para um enterro decente, então isso era o melhor que eu podia fazer. Coloquei pedras nas roupas queimadas pelo ácido e as afundei no pântano.

Se eu deixar ali, os monstros só vão continuar brincando com eles.

Terminado o serviço, voltei à minha marcha sem rumo pela encosta em espiral. Minhas pernas doíam de cansaço, mas meus modificadores de status pareciam estar funcionando — eu conseguia sentir que estava mais forte e saudável do que jamais fui no meu mundo antigo.

Continuei subindo até que a ladeira finalmente se nivelou. No topo, havia um par de homens-leopardo de rosto duplo fazendo guarda — me lembravam os Tigres Capers de Dragon Quest, mas com mais de dois metros de altura, pele preta, veias alaranjadas e ácido escorrendo, como os outros monstros que enfrentei.

Rostos estranhos e deformados também. Nada a ver com um leopardo de verdade...

Os homens-leopardo não pareceram surpresos ao me ver — será que me ouviram chegando? Como sempre, dava pra ver que queriam me matar. Levantei o braço, e os homens-leopardo cerraram os olhos, parecendo desprezo.

O da direita bateu com força contra a pedra. Antes que pudesse fazer mais alguma coisa, eu agi.

Foi isso que essas ruínas me deram — reflexos.

—Paralisar.

Ele ficou congelado no lugar. O outro pareceu confuso — como se ainda não tivesse entendido o que eu fiz. Então seu rosto se contorceu em incredulidade ao tentar se mexer e não conseguir.

—Envenenar.

Na mesma hora, os dois ficaram roxos e com expressões doentes. Fiquei me perguntando de novo se ainda ganharia pontos de experiência mesmo se eles morressem longe de mim, mas era a primeira vez lidando com esse tipo específico de monstro e eu não queria perder caso eles dessem muita EXP.

Eventualmente, os homens-leopardo morreram, quase ao mesmo tempo.

Level up!
Nível 665 → Nível 692

Beleza, a EXP deles não é ruim, mas também não é nenhuma maravilha.

Passei pelos dois monstros mortos e entrei na próxima área — que era, surpresa, mais uma caverna.

Mais deles.

Havia mais seis homens-leopardo sentados em círculo. Todos viraram para me olhar, com a confusão estampada no rosto. Mas um segundo depois, essas expressões viraram alegria assassina — um novo brinquedinho tinha caído no colo deles.

Um deles tirou algo debaixo do braço — uma corda com um crânio humano amarrado em cada ponta, como um par de nunchakus macabros. Começou a girá-los.

—Guaaah, Guaaah Ga-gaah! ♪

Um deles começou a cantar uma musiquinha zombeteira e apontou para os nunchakus. A expressão era cruel, e na hora eu entendi o que queria dizer.

"Olha só! Esse aqui era um dos seus amigos, né? Tá com medo, humano?"

Levantei o braço.

—Paralisar.

—Guh?!

—Envenenar.

Seis corpos de homens-leopardo jaziam imóveis no chão diante de mim.

Finalmente tive a chance de testar se ainda ganhava EXP mesmo se não ficasse por perto. Depois de envenená-los, voltei até os dois primeiros e esperei — pelo menos uns 500 metros de distância.

Não subi de nível. Então, está aí a resposta — você não ganha EXP se estiver longe demais quando eles morrem.

Dois homens-leopardo me levaram do nível 665 ao 692, então se eu matasse seis… ugh, queria ter ganho pelo menos mais um nível.

Foi uma pena desperdiçar essa EXP, mas fiquei feliz em confirmar minha teoria.

Peguei os nunchakus de crânio de onde o homem-leopardo deixou cair, tirei os ossos da corda e voltei devagar pelo caminho até o covil do dragão zumbi.

Coloquei os dois crânios junto com os outros ossos e juntei as mãos em oração. Os crânios já não me assustavam mais — em vez disso, sentia uma espécie de afinidade com eles. Eram heróis descartados, assim como eu. Fizeram bem em chegar tão longe.

"…"

Continuei andando. Tracei um caminho irregular e sinuoso pelas pedras nuas das cavernas. A paisagem nunca mudava, mas o caminho definitivamente subia. Eu tinha que estar ficando mais perto da superfície, me lembrava, tentando sufocar qualquer sentimento de inutilidade.

—Hm?

A luz da minha bolsa de couro se apagou.

Da última vez, eu coloquei o máximo de mana que consegui… mas parece que até isso se esgotou.

—Hã? O cristal… a cor voltou ao normal?

O cristal não estava mais cinza — tinha voltado ao seu verde-limão original. Meu coração começou a acelerar — eu estava no meu último pedaço de carne seca, e talvez uma última golada de refrigerante na garrafa. Comecei a despejar mana na bolsa, rezando para que funcionasse de novo.

A barra roxa no cristal começou a se encher.

Será que ele sempre fornece comida e água…? Não preciso de pregos ou sei lá o quê agora, entendeu? Vai lá, por favor…

Estiquei a mão e puxei uma bolinha de arroz com ovo cozido e uma garrafa de chá verde de 500 ml.

— Beleza!

Comida e água.

Deu vontade de gritar. Ainda não dava pra ter certeza, mas parecia que ele fornecia comida e água todas as vezes.

E melhor ainda…

— Tem tempo de recarga. Funciona mais de uma vez.

Já tinha visto bolinhas de arroz com ovo cozido em lojas de conveniência, mas nunca tinha comido uma. Rasguei a embalagem sem pensar duas vezes.

Tão bom… Isso é shoyu?

O centro amarelo e cremoso grudava na língua. O sal do shoyu misturado com a maionese cremosa criava uma combinação celestial, e a alga realçava ainda mais os sabores.

Nem lembro a última vez que comi arroz.

O arroz era de um marrom suave, como se tivesse sido cozido no caldo, e o tempero forte explodia na boca em ondas de puro prazer. O sabor dominava todos os meus sentidos enquanto devorava a bolinha em poucas mordidas. Abri o chá verde e tomei um gole, lavando o gosto do shoyu — uma combinação bem diferente da carne seca com refrigerante, mas tão satisfatória quanto. Bebi metade da garrafa e guardei o resto.

— Aaahhh… Comer é maravilhoso.

Empurrei a garrafa e o papel da embalagem da bolinha de volta pro alforje — a bolsa de couro era maior por dentro do que parecia, ainda tinha bastante espaço sobrando.

Deve ser por causa da magia? O couro também é bem resistente.

Com a fome e a sede saciadas, continuei avançando, sempre subindo.

Durante o caminho, encontrei cada vez mais monstros. Esse lugar não era como aquelas dungeons clichês em que os inimigos mais fortes estão nas profundezas — aqui, os monstros mais perigosos ficavam perto da superfície. Dava pra perceber porque meu nível continuava subindo — mais devagar agora, provavelmente porque precisava de mais experiência a cada novo nível. Se ainda estivesse lá embaixo matando minotauros e cabeças-de-pássaro, provavelmente já teria estagnado.

— Neeeeih!

Uma criatura metade cavalo, metade planta carnívora surgiu das sombras, avançando com um grito agudo e esquisito. Parecia ridícula de longe, mas quanto mais se aproximava, mais grotesca ficava. Cuspiu ácido pela boca — e mesmo com aquela aparência idiota, dava pra ver que queria me matar.

— Paralisar.

Ela veio me matar.

— Envenenar.

Deixei um rastro de cadáveres de monstros pra trás.

— Dormir.

Matar. Matar. Matar.

Ficava de olho no cristal preso à minha bolsa de couro. Assim que a cor mudava, eu injetava mana e, finalmente, meu terceiro item aparecia — pão com yakisoba e uma caixinha de suco de vegetais, cheio das vitaminas que meu corpo tanto pedia. Não sabia quem agradecer, mas agradeci mesmo assim.

O jantar acabou. Levanta. Continua andando.

Anda. Anda. Anda.

Minha mente começou a embotar, o corpo coçava inteiro.

Será que eu devia usar um pouco do chá verde pra me lavar…? Não. É precioso demais pra desperdiçar.

Achei um buraco na parede e dormi ali. Peguei os fragmentos de osso que tinha guardado na bolsa e espalhei ao redor da área. O maior risco era ser atacado ou emboscado enquanto dormia, mas por sorte, só tive um susto, e o sistema de alarme funcionou direitinho e me acordou. Matei os monstros, subi de nível e segui em frente.

Encontra monstro. Mata. Verifica a bolsa. Mesmo padrão, dia após dia. Tudo tão simples.

Não pensa.

Não racionaliza.

Seus pensamentos…

Seus sentimentos…

Paralise tudo.

Levantei a cabeça.

— …

— Que lugar é esse…?

Essa área era diferente. As Ruínas do Descarte… Já estava me perguntando quando veria alguma ruína de verdade em vez de cavernas infinitas. Agora, à minha frente, havia um conjunto de construções de terra cobertas de hera.

Acho que alguém já viveu aqui embaixo.

— Finalmente… ruínas de verdade. — A mudança de cenário reanimou minha mente desgastada.

— Será que essa hera é comestível…? Hã?

Tem alguma coisa vindo.

O monstro que surgiu na minha frente era um olho flutuante, sem pálpebras, com alguns membros humanos saindo dele. A pupila negra era cercada por uma íris dourada intensa, e o olho tremia freneticamente em todas as direções.

Claro, ácido jorrava dos poros.

Ah, então ainda não deixei os monstros pra trás.

O olho soltou um uivo agudo… por que fazia aquele som? Ele se contorceu, e círculos mágicos apareceram ao redor dos pulsos, como braceletes apertados. Eram parecidos com os que aquela deusa nojenta usou pra impedir Oyamada e Yasu de lutarem.

— Paralisar.

Ataquei primeiro.

— Envenenar.

Um choque elétrico forte sacudiu o monstro — os círculos mágicos deviam ter dado errado, igual ao ataque daquele homem-lagarto. O monstro parou de se mexer, com fumaça saindo do corpo caído.

Esperei ele morrer. A barra de Paralisia estava acabando.

— Dormir.

O olho gigante se fechou, pesado… e morreu alguns minutos depois.


Subida de Nível!

Nível 957 → Nível 961


Ainda está subindo. Será que o limite é 999 ou dá pra passar de mil?

Olhei ao redor.

— Melhor dar uma olhada por aqui. — Revirei a área próxima, atento a mais monstros.

Vai saber quanto falta até chegar à superfície. Seria bom achar um lugar pra passar a noite…

Encontrei algumas portas nas ruínas, mas estavam todas trancadas. Não importava o quanto eu empurrasse ou puxasse, não se moviam.

— Hm? Esse cristal…

Havia um cristal na porta que parecia com o da minha bolsa.

— Então é pra canalizar mana nisso?

A barra começou a encher.

Ah, é bom verificar minha mana.

— Status, abrir.


MP: +31345 / 31713


Agora consigo ver quanto estou gastando.

Observei o número diminuir devagar. Depois de usar 1500 MP, a porta se abriu com um estrondo suave. Entrei com cautela.

— Hã, até que é espaçoso aqui dentro. — Havia uma cadeira de pedra e uma mesa de jantar, alguns móveis espalhados e um cobertor rasgado num canto.

Alguém morava aqui embaixo? Acho que não mais.

Sentei na cadeira de pedra.

— Hmm... Isso é bom. — Fazia tempo que eu não sentava numa cadeira.

Tô mesmo com saudade da civilização.

— Certo. — Me levantei de novo e fui até a porta — o cristal estava desativado. Saí, injetei mais 1500 de MP no cristal, e a porta se fechou com um estrondo.

— Parece que tem que usar mana toda vez que abre e fecha esse negócio.

Decidi dar uma olhada nos outros quartos. O próximo estava vazio, só tinha alguns móveis improvisados de pedra, iguais aos do primeiro. Revirei sete quartos quase idênticos antes de encontrar algo que valesse a pena.

— Acho que outras pessoas também chegaram até aqui...

Dois esqueletos estavam caídos, sentados. Julgando pelas roupas e pelas armaduras enferrujadas, eram um garoto e uma garota. Ainda estavam de mãos dadas e pareciam ter morrido encostados um no outro.

Quando será que a Deusa se livrou deles? Devem ter fugido até aqui, escapando por pouco com vida, e ficaram presos pelos monstros lá fora. Sem comida nem água, decidiram acabar com tudo aqui mesmo, juntos.

Não havia sinais de luta — eles aceitaram o destino.

— Vocês dois deviam se orgulhar de terem chegado tão longe — falei para os esqueletos, então comecei a vasculhar os pertences deles.

Não era hora de sentimentalismo. Se tivessem algo que eu pudesse usar, eu precisava pegar. Não podia deixá-los em paz — a não ser que quisesse terminar como eles. Havia uma espada enferrujada encostada na parede, e um cajado torto com o cristal quebrado.

— Nada...

Tava acostumado a andar por aí com meu uniforme e sobretudo preto, então já tava de boas com roupas. As dos dois heróis mortos estavam tão detonadas quanto as minhas — e nem um pouco mais limpas.

— Hm?

Um deles tinha uma pequena bolsinha no bolso. Peguei — era pesada na mão.

— Joias...?

Estava cheia de pedras preciosas azuis reluzentes e moedas prateadas.

Se eu conseguir chegar à superfície, talvez isso tenha algum valor. Tomara que ainda valha alguma coisa... afinal, o dinheiro move o mundo. Mesmo outros mundos.

— Desculpa, mas eu preciso disso — pedi desculpas aos dois esqueletos enquanto guardava a bolsinha no bolso de trás.

Isso prova uma coisa — se eu fechar a porta, os monstros não conseguem entrar. É uma zona segura. Talvez os monstros por aqui não consigam injetar mana em objetos como eu? Ou só não são inteligentes o suficiente pra entender que portas abrem, sei lá.

De qualquer forma, encontrei um lugar seguro pra dormir. Minha bolsa de couro prometia um fornecimento garantido de comida e água.

— Acho que posso usar esse lugar como base e upar aqui por um tempo...

Pensei nas opções enquanto explorava o resto da área. Encontrei outro monstro ocular que ainda não tinha me notado, então embosquei com um Paralisar de dentro das ruínas.

Depois, Veneno. Quando o medidor de paralisia começou a cair, Sonífero.

O monstro morreu depois de dois ciclos.


Level up!


Beleza, isso significa que minha mana recarregou por completo. Os monstros que tô enfrentando ainda fazem meu nível subir bastante quando morrem. Melhor aumentar meu nível o máximo possível antes de chegar à superfície.

Por outro lado, meus níveis de habilidade não subiram nem um pouco.

Acho que minhas skills já são absurdas mesmo — não dá pra esperar que elas evoluam tão rápido. Será que é de propósito...? Talvez o aumento de habilidades seja bem raro porque cada nível novo adiciona uma função completamente nova?

Continuei explorando as ruínas. Eram 24 salas ao todo, dispostas num padrão lógico. Escolhi uma vazia como base de operações e descansei um pouco.

— Melhor voltar ao trabalho.

Comecei a upar. Havia muitos daqueles monstros oculares por aí, então comecei a caçar os que estavam sozinhos. Depois de um tempo que eu estimei ser cerca de um dia, pareciam ter se espalhado. Voltei pra base pra checar o cristal da minha bolsa — ainda cinza.

Decidi descer mais um nível da escadaria em espiral — finalizei os monstros com meu combo de sempre até limpar a área também. Voltei pra base, vi que o cristal estava verde-limão de novo e injetei mana até saírem um pacote de barras de cereal e uma garrafa de chá oolong.

Reconheci a embalagem e, por um instante, esqueci que estava em outro mundo.

— Sabor de fruta, hein? Isso aqui é bom.

Rasguei uma, dei uma mordida e mastiguei devagar, saboreando o gosto. A barra macia derreteu na boca. A doçura suave dominou meus sentidos. Mas deu uma secada na boca.

Sem hesitar. Ativar chá oolong.

Engoli um gole generoso e fiz uma careta quando a amargura do chá varreu a doçura. O líquido ajudou a engolir a barra de cereal seca.

Nada mal. Não é um banquete, mas até que gosto de comer essas paradas.

Depois do jantar, rasguei o papel da embalagem das barras de cereal e usei como escova improvisada. Depois espalhei os fragmentos de ossos na frente da porta como precaução extra. Não achava que algo fosse passar por ali; senão, todas as portas não estariam seladas quando cheguei. Mas não custa nada ser mais cuidadoso.

Levei alguns minutos pra acalmar a mente e convencer a mim mesmo de que estava seguro. Logo, caí no primeiro sono tranquilo em muito tempo.

Quando acordei, fui procurar mais monstros pra matar nos andares de baixo.

Quanto tempo passou? Uma semana? Três dias? Só doze horas infernais?

Alguém já morou aqui embaixo? Agora, acho que não mais.






Sentei na cadeira de pedra.

— Hmm… Isso é bom. — Fazia tempo que eu não sentava numa cadeira.

Sinto falta da civilização.

— Certo. — Me levantei e fui até a porta — o cristal estava desativado. Saí, despejei mais 1500 de MP no cristal, e a porta se fechou com um estrondo.

— Parece que você precisa usar mana toda vez que quiser abrir ou fechar essa coisa.

Decidi verificar os outros quartos. O próximo estava vazio, exceto por alguns móveis improvisados de pedra. Vasculhei sete quartos praticamente idênticos antes de encontrar algo que realmente chamasse atenção.

— Então outras pessoas também chegaram até aqui, hein…

Dois esqueletos estavam caídos, sentados. Julgando pelas roupas e armaduras enferrujadas, pareciam ser um garoto e uma garota. Ainda estavam de mãos dadas, e parecia que tinham se encostado um no outro quando morreram.

Quando a Deusa se livrou deles? Devem ter fugido até aqui, escapado por pouco com vida, e ficaram presos pelos monstros lá fora. Sem comida ou água, escolheram terminar juntos, aqui.

Não havia sinais de luta — aceitaram o destino.

— Vocês dois deviam se orgulhar de terem chegado tão longe — falei para os esqueletos, e comecei a vasculhar os pertences deles.

Não era hora de sentimentalismo. Se eles tinham algo que eu pudesse usar, eu tinha que pegar. Não podia deixá-los em paz — não se quisesse acabar como eles. Havia uma espada enferrujada encostada na parede e um cajado torto com o cristal quebrado.

— Nada…

Eu já estava acostumado a andar com meu uniforme e sobretudo preto, então roupa não era um problema. As roupas dos dois heróis mortos estavam tão gastas quanto as minhas — nem um pouco mais limpas, aliás.

— Hm?

Um deles tinha uma pequena bolsa no bolso. Peguei — estava pesada na mão.

— Jóias…?

Estava recheada de pedras azuis brilhantes e peças de prata.

Se eu conseguir voltar pra superfície, talvez consiga usar isso. Espero que ainda tenham algum valor… afinal, o dinheiro move o mundo. Mesmo outros mundos.

— Desculpa, mas eu vou ter que levar isso — pedi desculpas aos dois esqueletos enquanto guardava a bolsinha no bolso de trás.

Isso prova uma coisa — se eu fechar a porta, os monstros não entram. É uma zona segura. Talvez os monstros daqui não consigam canalizar mana em objetos como eu? Ou só não são espertos o suficiente pra saber que portas abrem, sei lá.

De qualquer forma, encontrei um lugar seguro pra dormir. Minha bolsa de couro garantia um suprimento seguro de comida e água.

— Eu poderia usar esse lugar como base e upar por aqui um tempo…

Considerei minhas opções enquanto explorava o restante da área. Encontrei outro daqueles monstros-olho, que ainda não tinha me notado, então ataquei de surpresa com uma Paralisia do meio das ruínas.

Depois, Veneno. Quando a barra de paralisia começasse a baixar, Sono.

O monstro morreu depois de dois ciclos.

Nível aumentado!

Muito bem, isso significa que minha mana foi recarregada. Os monstros que eu tô enfrentando ainda estão fazendo meu nível subir bastante. Devo aumentar meu nível o máximo possível antes de chegar na superfície.

Por outro lado, meus níveis de habilidade não subiram nada.

Acho que minhas habilidades já são incríveis — não dá pra esperar que evoluam tão rápido. Será que é de propósito…? Talvez o aumento de habilidade seja super raro porque sempre que ela sobe, ganha uma função nova?

Continuei explorando as ruínas. Havia 24 salas ao todo, dispostas de forma bem lógica. Escolhi uma vazia como base de operações e descansei um pouco.

— Melhor voltar ao trabalho.

Comecei a upar. Tinha muitos daqueles monstros-olho por aí, então comecei a caçar os que se afastaram do grupo. Depois de um dia, pelo que estimei, eles pareciam ter se espalhado. Voltei pra base pra verificar o cristal da minha bolsa — ainda cinza.

Decidi descer mais um nível na escadaria em espiral — derrotei os monstros com meu combo de sempre até limpar a área também. Voltei pra base, vi que o cristal estava verde-limão de novo, e injetei mana até saírem umas barrinhas de cereal e uma garrafa de chá oolong.

Reconheci a embalagem, e por um momento, esqueci que estava em outro mundo.

— Sabor frutas, hein? São bem boas.

Abri uma, dei uma mordida e mastiguei devagar, saboreando. A barrinha macia derretia na boca. A doçura suave tomava conta dos meus sentidos. Mas deixava a boca um pouco seca.

Sem hesitação. Hora do chá oolong.

Engoli um gole generoso e fiz careta enquanto a doçura era lavada por uma onda amarga de chá. O líquido ajudava a engolir a barrinha seca com mais facilidade.

Nada mal. Não é um banquete, mas até que gosto de comer essas coisas.



Depois do jantar, rasguei a embalagem das barrinhas e usei pra escovar os dentes. Em seguida, espalhei alguns fragmentos de osso na frente da porta como precaução extra. Não achava que algo fosse entrar — se fosse o caso, as portas não estariam todas seladas quando cheguei. Mas não custa ser cauteloso.

Levei alguns minutos pra acalmar a mente e convencer a mim mesmo de que estava seguro. Logo, adormeci no primeiro sono tranquilo em muito tempo.

Quando acordei, fui procurar mais monstros pra caçar nos níveis inferiores.

Quanto tempo já passou? Uma semana? Três dias? Só doze horas infernais?

Meu relógio biológico tava completamente bagunçado. A única forma de marcar a passagem do tempo era quando eu sentia fome e sono depois de um tempo. O cristal na minha bolsa de couro era imprevisível—eu esperava que ele se recarregasse a cada 24 horas, mas parecia mais irregular que isso. Desde que comecei a subir de nível, a bolsa me mandou três presentes—um oniguiri de atum com maionese, um pacote de sashimi de atum e uma sopa de porco num pote de plástico. O sashimi tava gelado, como se tivesse acabado de sair da geladeira, e a sopa tinha gosto de recém-feita. Também recebi uma garrafa de chá verde e um energético, mas o sashimi veio sem bebida, então acho que não tem garantia de vir com algo pra beber toda vez. Também não veio molho de soja, mas o sashimi de atum ainda assim tava incrível.

A sopa de porco também foi uma surpresa—foi o único item que não veio com embalagem de loja de conveniência.

Quem será que fez essa sopa pra mim...? Bom, não tem como descobrir isso agora. Pelo menos meus problemas com comida e água estão resolvidos.

Dormi um pouco e depois saí pra fazer uns testes.

Descobri que o alcance de Paralyze era de uns 20 metros, e o de Sleep era um pouco menor. Também descobri que Paralyze não imobilizava completamente os inimigos—eles ainda conseguiam se mexer um pouco, o suficiente pra gemer ou gritar. A estrela do show, Poison, tinha um alcance um pouco menor que o de Paralyze também.

Teste de alcance das habilidades: completo.

Fiz os testes em todo monstro que encontrei, até que, depois de um tempo, eles foram sumindo, sumindo... e desapareceram. Nem a presença deles eu conseguia sentir mais.

Será que eu matei todos? Ou tão se escondendo, tipo aqueles minotauros e os cabeças-de-pássaro?

—Status Open.


Too-ka Mimori
Level 1229
HP: +3687
MP: +40237 / 40557
Ataque: +3687
Defesa: +3687
Vitalidade: +3687
Velocidade: +3687
Inteligência: +3687
Título: Herói Classe E


Isso tá bem alto... já passei de mil. Se eu for mais fundo, vai ser difícil voltar pra base. E os monstros dos andares de cima tão mais fortes mesmo...

—Acho que é hora de subir pra superfície de verdade.

Voltei pras ruínas pra me preparar pra subida.

Arranquei algumas trepadeiras de um dos prédios, entrelacei duas pra fazer uma corda grossa e puxei com força pra testar a resistência.

—Parece forte o bastante.

Amarrei a corda na minha bolsa de couro e a joguei por cima do ombro.

Agora posso deixar as mãos livres enquanto carrego essa coisa.

—Beleza. Hora de seguir em frente.

Antes de dormir, eu tinha arrancado um pedaço do meu uniforme, molhado com chá verde e tentei me lavar um pouco. Não adiantou muita coisa, mas deu uma leve sensação de frescor.

Deixei minha base nas ruínas pra trás e comecei a caminhar.

—Quero acreditar que essas ruínas significam que tô perto da superfície, mas vai saber…

Andei pelas ruínas vazias em silêncio. Enquanto explorava, tinha encontrado uma ladeira subindo numa das pontas da caverna, então fui nessa direção.

—Esse caminho parece ter sido feito por mãos humanas, não é igual às cavernas de antes… huh?

Bem quando tava saindo da área, vi outro caminho. Era escuro, escondido, e bloqueado por trepadeiras grossas.

—Como é que eu não vi isso antes…?

Afastei as trepadeiras e me enfiei no túnel.

Diante de mim, havia um cristal com aparência familiar.

—Então tinha mais uma sala…

Derramei mana no cristal até a porta se abrir.

Caramba, foram 5000 de MP! Por que essa porta custa tanto?

Entrei e imediatamente cobri a boca com a nuvem de poeira que levantei. Levantei minha bolsa brilhante pra iluminar o lugar. Era igual ao resto—vazio, sem sinal de vida, com os mesmos móveis de pedra sem graça.

Então... que baita desperdício de mana. Será que entrar nessas salas inúteis custa mais que nas salas boas…?

Congelei. Lá no fundo da sala, havia um esqueleto com túnica sentado de pernas cruzadas encostado na parede.

—Oh… Deve ter sido bem difícil chegar até aqui, companheiro herói. Mandou bem. Falo sério. Bom trabalho em ter chegado tão longe.

Me aproximei do esqueleto—as costelas de um dos lados estavam rachadas e estilhaçadas.

Foi assim que ele morreu?

Juntei as mãos em sinal de respeito e comecei a vasculhar os pertences do esqueleto. Vi uns pedaços velhos de papel com escrita espalhados pelo chão e me abaixei pra pegar.

—Embora eu provavelmente não vá conseguir ler seja lá que língua for isso—oh. Olhei mais de perto. —Tá, eu consigo ler. Nice.

Aquela Deusa deve ter feito alguma coisa pra permitir que todos nós entendêssemos outras línguas.

—Hmm… Vamos ver…

—Será que alguém um dia vai ler isso, já que tô deixando aqui nas Ruínas do Descarte? Acho que devia começar com meu nome—Anglin Bathrad. As pessoas me chamam de ‘O Grande Sábio Anglin’, mas talvez você me conheça por um nome do passado—

—Hã?

—Anglin, o Herói das Trevas.

Já tinha ouvido esse nome antes… A Deusa tinha comparado ele ao Yasu quando ele foi testado, ou pelo menos acho que foi isso. Ela parecia meio incomodada quando falava dele também—talvez tivesse algum arrependimento sobre o que aconteceu? Será que o Anglin foi contra ela ou atrapalhou os planos dela?

Quando você ouve “Herói das Trevas”, já imagina um vilãozão. Achei que era por isso que a Deusa parecia irritada com ele… mas talvez eu tenha entendido errado.

Por que ele é o “Herói das Trevas”, afinal? Será que tinha uma habilidade que controlava a escuridão?

—Isso muda a forma como vejo essas ruínas…

A Deusa disse que mandava criminosos perigosos pra cá, mas… será que algum deles realmente fez algo errado?

Voltei a ler a carta.

—A Deusa Vicius me forçou a vir pra cá. Sem dúvida, eu me tornei um espinho no caminho dela e ela queria se livrar de mim.

—Eu sabia.

—Tô ficando sem tinta, então vou poupar os detalhes da minha captura e prisão. Se você estiver tentando escapar vivo das ruínas, deixo meus pertences com você. Pegue o que precisar. Acho que não vai demorar até...

A tinta, que vinha enfraquecendo a cada palavra, finalmente parou. Havia alguns riscos no pergaminho onde o sábio havia tentado escrever mais, mas não conseguiu. Talvez ele estivesse fraco demais para continuar. Amassei a borda do pergaminho, tomado pela raiva.

— Essa... deusa maldita.

Ela chamou o Rei Demônio de Senhor do Mal, não foi? Pode até ser verdade... mas essa Deusa também é maligna. E não é como se eu estivesse tentando salvar o mundo de nenhum dos dois. Eu só quero sobreviver. E me vingar. Acho que isso me coloca do lado do mal também.

Uma guerra de três lados — e os três são malignos. Então qual o sentido disso tudo? Heróis deveriam salvar o mundo…

— Mas eu não sou um herói.

Não tem nada de heroico em sobreviver a qualquer custo ou buscar vingança. As palavras finais do Grande Sábio Anglin diziam: "se você está tentando sair dessas ruínas com vida..." Pois é. Estou mesmo. Então vou pegar tudo que ele deixou pra trás.

Havia um saco jogado ao lado do esqueleto — estava cheio de furos e tão desgastado que não valia a pena levar, mas tinha algo pesado dentro.

Enfiei a mão e puxei um livro velho, grosso e pesado como uma enciclopédia. Estava gasto, mas a encadernação ainda era firme. Ainda dava pra ler o título.

Artes Proibidas: Obra Completa.

— Artes proibidas…?

Abri o tomo e comecei a ler. Eu conseguia entender as palavras, mas… não fazia ideia do que significavam.

— Vou tentar decifrar isso… — Passei os olhos pela página de novo, tentando me concentrar.

— Hmm…

À primeira vista, não parece algo que vá me ensinar habilidades de ataque ou feitiços — é mais como alquimia, talvez?

Havia listas de receitas para remédios e ferramentas mágicas, algumas que pareciam ser bem úteis. Enfiei o livro debaixo do braço.

Continuei procurando. Tinha algumas ferramentas quebradas espalhadas pelo chão, mas nada que valesse a pena.

Por fim, encontrei três pergaminhos velhos e gastos, enrolados direitinho e amarrados com barbante.

— Serão mapas…?

Desamarrei os barbantes e os estendi no chão.

— Mas o que é isso…?

Não eram mapas — estavam cobertos de escrita, mas dessa vez eu não conseguia entender nada. Todos os três eram iguais — ilegíveis.

— Então os heróis não conseguem ler qualquer língua, hein…

Talvez eu consiga alguém que entenda línguas antigas? Eles parecem importantes…

— Hm?

Um pedaço de papel escorregou de um dos pergaminhos e flutuou até o chão.

Esse, eu conseguia ler.

Pergaminhos de Magia Proibida.

— Isso… parece importante. — Minha mente disparou. — Se eu conseguir um aliado que saiba ler isso… talvez possamos usar essas magias pra derrotar a Deusa.

Pensei na última vez que a enfrentei. Minha habilidade de status nem fez cócegas nela — aquela “Barreira Dispersora” ou seja lá como se chamava bloqueou tudo completamente.

Eu só achei que minhas habilidades eram inúteis porque não funcionaram contra ela. Mas… vai ver, ela é a única no mundo contra quem elas não funcionam. Eu preciso de outro tipo de poder pra enfrentá-la.

— Magia proibida…

Se eu tiver um mago de magia proibida ao meu lado, talvez consigamos vencê-la. O Grande Sábio Anglin deve ter escondido esses pergaminhos aqui por um motivo — eles devem ser poderosos.

Guardei os pergaminhos na mochila, então dei uma última olhada pela sala. Decidi pegar as vestes do Grande Sábio — meu sobretudo preto estava destruído, e as vestes pareciam resistentes.

Vestes negras para o Herói das Trevas, hein? Perfeito pra se esconder nas sombras.

Vesti as roupas de Anglin e coloquei meu sobretudo sobre o esqueleto dele. Seria errado deixá-lo exposto.

— Foi mal por isso… Espero que não se importe com a troca.

Então peguei o Artes Proibidas: Obra Completa.

O Grande Sábio Anglin, Herói das Trevas… aquela Deusa disse que ele era um guerreiro supremo, certo? Então por que ele não conseguiu chegar à superfície? O que bloqueou seu caminho, a ponto de nem ele conseguir vencer?

Olhei para o teto.

— Tem alguma coisa lá em cima. — Lancei um último olhar ao Grande Sábio. — Homens mortos não contam histórias, né?

Enquanto saía da sala, abri minha bolsa pra guardar o tomo antigo.

Foi aí que eu vi — as últimas páginas estavam sujas, como se tivessem sido encharcadas por algo…

Vermelho sangue.

— O-o que diabos é isso…?

Abri nas últimas páginas e congelei. Eram rabiscos apressados, insanos, escritos por alguém possuído. Aquilo não era o texto calmo e refinado que eu li no outro pergaminho.

O Grande Sábio escreveu que estava ficando sem tinta… então usou outra coisa pra deixar seu último aviso.

Sangue.

— Cuidado com o Devorador de Almas! —


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