Capítulo 4:
Devorador de Almas
A Fugitiva
Ela avançava com cautela pela floresta, procurando um lugar para se esconder. Precisava encontrar um local seguro o bastante para finalmente conseguir descansar.
Ao olhar para baixo, viu seu reflexo em uma poça d’água aos seus pés. Não era seu reflexo verdadeiro — ela costumava mudar o rosto com o poder dos espíritos, na esperança de despistar seus perseguidores. Tinha relaxado um pouco demais durante o banho mais cedo, deixando sua aparência real escapar, mas usou seus poderes para restaurar a ilusão assim que percebeu o erro. Fechou os olhos, frustrada com sua própria desatenção.
Consegui escapar daqueles caçadores por enquanto, mas ainda há o risco de alguém me reconhecer. Mesmo no meio da floresta, não posso ter certeza de que não estou sendo observada. Preciso aprender com esse erro e garantir que não aconteça de novo…
Lembrava bem do fracasso que a havia forçado a fugir. Não tinha sido cuidadosa o suficiente — depois de tanto tempo evitando problemas, sua guarda começou a baixar. Parou em uma vila, e em um momento de descuido, deixou sua aparência real transparecer. Alguém viu. Infelizmente, esse alguém era parte de um grupo de quatro mercenários, famosos em todo o continente por suas habilidades de combate. Claramente, eram adversários que deveria evitar enfrentar de frente. Mudou o rosto novamente e fugiu da vila, fazendo de tudo para despistá-los. Seu corpo e suas roupas, no entanto, eram mais difíceis de disfarçar — sua habilidade de mudança de forma se limitava à cabeça. Roupas eram uma coisa, mas as características marcantes de seu corpo eram impossíveis de esconder.
Só disfarçar o rosto não vai ser o suficiente para fugir desses quatro mercenários…, pensou com preocupação.
E tinha razão — os mercenários a caçaram implacavelmente, superando cada volta e desvio que tentava fazer para despistá-los. Finalmente, apenas ontem, conseguiu perdê-los na floresta. Estava bem longe da rota que pretendia seguir, mas ao menos o problema dos mercenários parecia resolvido.
Levou a mão até o bolso no peito para verificar o dinheiro que ainda tinha.
Não sei por quanto tempo mais isso vai durar…
Em seguida, apertou os amuletos pendurados em seu pescoço.
Viver assim, na floresta para sempre… talvez nem seja tão ruim.
Seguiu em frente com cuidado, mantendo todos os sentidos atentos para qualquer sinal de perigo.
Se eu encontrar um lugar seguro… será que devo simplesmente ficar por aqui—
De repente, seus pensamentos foram interrompidos — havia algo adiante.
Avançou com cautela, contornando as árvores até chegar a uma clareira.
Ruínas…?
Observou-as com um otimismo cauteloso.
Talvez existam salas escondidas… quem sabe até um lugar seguro para dormir.
Decidida a investigar mais de perto, aproximou-se dos escombros com passos cuidadosos.
Mimori Touka
DEIXEI AS RUÍNAS PARA TRÁS e continuei subindo.
— Devorador de Almas, hein…
Seja lá o que for, era um inimigo que nem o Herói das Trevas conseguiu derrotar. Alguém tão poderoso chegou só até as ruínas antes de ser mortalmente ferido — pelo menos, é o que eu consigo deduzir do que aconteceu.
Será que eu consigo passar por esse tal de Devorador de Almas sem lutar? Provavelmente não, se nem o Grande Sábio conseguiu. Tenho quase certeza de que ele era muito mais forte que eu…
Olhei para minhas mãos.
— Espero que minhas habilidades de status funcionem contra ele.
Elas não funcionaram contra a Deusa — e isso ainda me incomodava. Se houver outras criaturas imunes às minhas habilidades, tô ferrado. Tenho que torcer pra Deusa ser a única com esse tipo de resistência.
Esse Devorador de Almas conseguiu matar o Herói das Trevas… Se eu conseguir derrotar ele com as minhas habilidades, vai ser um baita impulso na confiança…
Subi mais dois lances de escada, sem encontrar nenhum monstro no caminho. O chão era de pedra, esculpido com cuidado e precisão. Havia sinais de civilização por toda parte. Nem sempre esse lugar foi usado pra jogar fora os heróis indesejados pela Deusa.
— Que droga chamarem isso aqui de “Ruínas do Descarte”.
Me encostei na parede do corredor e espreitei a área à frente. Havia uma sala maior logo adiante, com algum tipo de luz.
Huh. As paredes estão brilhando… como se reagissem à mana.
De qualquer forma, por enquanto eu não precisava da lanterna da minha bolsa de couro.
A enorme câmara era cercada por construções em ruínas, com paredes desmoronadas como se tivessem enfrentado um terremoto. Colunas gigantes sustentavam o teto, embora várias já estivessem rachadas ou caídas fazia tempo.
Quatro esqueletos estavam encostados numa coluna à minha direita.
Então outras pessoas chegaram até aqui… Junto com o Herói das Trevas, já são cinco. Será que estavam trabalhando juntos? Dá pra imaginar lutadores fortes, com comida e água o suficiente, conseguindo chegar aqui. Ou alguém com habilidades pra fugir rápido ou se esconder sem ser notado.
É uma pena… chegaram tão longe, só pra morrer no finalzinho…
Balancei a cabeça. Não era hora de me deixar levar pela emoção.
Continuei explorando a área e encontrei duas grandes escadarias de pedra no fundo da sala, levando até uma porta enorme.
Será que aquilo leva à superfície? Mas se levar, também vai me levar até… o Devorador de almas. O que será aquilo, afinal? Um fantasma, talvez?
Não dava pra ver nenhum monstro por perto que se encaixasse nessa descrição. Olhei com cautela ao redor da sala.
Lá.
Era difícil ver direito de onde eu estava, mas parecia haver uma área aberta mais ao fundo. Voltei um pouco e deixei minha bolsa de couro encostada numa das paredes que brilhavam levemente no corredor por onde entrei.
Não quero que esse tal de devorador de almas me veja chegando.
Voltei para a sala da porta grande e fui me esgueirando devagar, sempre com as costas coladas na parede. Espiei na penumbra da nova sala, me escondendo atrás de uma das grandes colunas de pedra.
Pra que serve essa sala…?
Um rosto…?
Havia um rosto de pedra gigante esculpido na parede de terra no centro da sala, com um cristal dourado enorme cravado na testa. Me lembrava uma estátua de Buda ou da Virgem Maria — aquele tipo de estátua feita pra representar uma figura sagrada.
Olhei de novo pra porta. Tinha passado batido antes, mas… havia um buraco na porta, exatamente do mesmo tamanho e formato do cristal.
Olhei de novo pro rosto de pedra.
Ah, entendi… Tem que tirar o cristal dali e colocar na porta, né?
— …
Soltei o ar devagar. Já tava com um pressentimento do que ia acontecer.
Aquele é o devorador de almas, né? Se eu tentar tirar o cristal, ele vai se mexer.
Me movi um pouco pra conseguir um bom ângulo do rosto de pedra e estiquei a mão na direção dele.
— Pa—
Zzzzk!
Puxei o braço de volta no reflexo.
— Aah?! Aaah!!
Sangue pingou no chão.
— Nnh…! Ai!
Saí do caminho bem a tempo! Se eu demorasse mais um segundo, teria perdido o braço!
Chequei o sangramento.
Okay… tô bem. Arrancou umas unhas e a pele… dói como arrancar uma unha. Dá pra aguentar.
Meus pais de verdade já tinham arrancado minhas unhas antes —
Eu tava acostumado com esse tipo de dor. Peguei um pedaço de tecido das minhas vestes e enrolei nos dedos.
O que foi aquilo…?
Parecia até a habilidade única do Kirihara, um ataque em feixe. A parede brilhou forte, teve um clarão e, num piscar de olhos, me atingiu.
Na velocidade da luz, quase. Aquele rosto de pedra deve saber que eu tenho que dizer o nome das minhas habilidades pra ativá-las — eu tô tentando prever os movimentos dele, mas ele também tá me lendo. Vai acontecer de novo assim que eu tentar atacar, com certeza.
Então… como eu uso minhas habilidades?
O que eu faço? Preciso daquele cristal, e pra conseguir ele tenho que derrotar o rosto de pedra… mas como? Com aquele feixe apontado pra mim, não consigo nem dizer uma sílaba.
Testando minhas habilidades enquanto subia pelas cavernas, descobri que eu sempre preciso dizer o nome em voz alta pra ativar — nem sussurrar funciona.
Como eu derroto isso, então? Preciso subir de nível? Talvez pegar uma nova habilidade começando tudo de novo e subindo de novo…
Não, isso não resolveria o problema — se eu não tiver tempo pra falar, não dá pra usar nenhuma habilidade. Será que só preciso ser mais rápido? Aumentar meu status de velocidade? Talvez eu deva voltar pras ruínas e caçar uns monstros… ou ir ainda mais longe?
Ou eu podia só viver aqui nas ruínas pra sempre, né?
— Nem ferrando.
Não vou desperdiçar minha vida nesse buraco. Vou achar um jeito de sair daqui, e depois vou esmagar aquela Deusa.
Rrrrumble…
— O que é isso…?
A parede de pedra do outro lado começou a desmoronar.
Tá vindo atrás de mim. Eu não fiz nada, então tá vindo por conta própria.
Parecia que o rosto de pedra tinha se arrancado da parede e despencado no chão.
Seus ataques são tão rápidos quanto a luz... isso só quer dizer que o atributo de velocidade dele é muito maior que o meu? Assim que levantei o braço, ele atacou. Talvez ele simplesmente não hesite, nem pare pra pensar, ao contrário dos outros monstros que enfrentei. Ele não dá chance nenhuma.
Olhei para minha mão sangrando.
Os heróis que chegaram até aqui antes de mim deviam ter atributos incríveis, mas todos perderam pra essa coisa — até o Herói das Sombras. Esse Devorador de Almas é o motivo de ninguém sair vivo dessas ruínas. Ele é o mestre do lugar. O chefão final. É isso.
Ele ainda não tentou um segundo ataque com feixe. Será que é forte o bastante pra derrubar essas colunas? Aquilo deve saber que estou me escondendo aqui, então por que não atirou de novo?
Splutch...
— Hã...?
Um monte de gosma caiu a poucos passos de onde eu estava escondido.
O que é essa coisa? Foi o Devorador de Almas que lançou isso em mim?
A gosma começou a borbulhar e se erguer, formando... três formas humanas.
Pareciam modelos de argila esculpidos com detalhes impressionantes, moldados diante dos meus olhos em questão de segundos. Eu já tinha visto humanoides nessas ruínas antes, mas esses eram diferentes. As cabeças eram bizarras e perturbadoras... como se tivessem virado lábios humanos de lado.
Pelo tremor no chão, deu pra perceber que o Devorador de Almas estava se aproximando, lenta mas firmemente.
— Certo... primeiro preciso paralisar essas coisas nojentas—
Ploc.
— Hã...?
Três pares de lábios se abriram... e três rostos humanos, pálidos, sem sangue, chorando, emergiram deles.
Pareciam estar em agonia, tomados pelo desespero...
Foi então que entendi. O Devorador de Almas não era diferente dos homens-lagarto que enfrentei antes — ele estava encenando as mortes dos heróis que matou. Aqueles rostos atormentados, no instante antes da morte... eram os troféus dele. Estava me mostrando aquilo, zombando de mim, implorando por uma reação.
Pra ele, tudo isso não passava de um jogo.
O suor escorria pela minha testa. Minha boca se curvou num leve sorriso.
— Vocês... Vocês monstros são todos iguais... Selvagens, todos vocês...
Os zumbis de gosma se arrastavam cada vez mais perto, os rostos chorosos me encarando em silêncio.
Plic. Plic.
Era como se... os rostos estivessem me chamando, implorando pra eu salvá-los daquele tormento.
Dei um passo pra trás.
— V-você só pode estar brincando...
Esses não eram como os monstros dos andares anteriores. Já tinha enfrentado monstros humanoides antes, mas nada que parecesse tão humano assim.
— E-eles são tão... Eu não consigo...
Talvez fosse errado me emocionar tanto, mas aquilo me atingiu de cheio.
A parede à minha esquerda desabou e o rosto gigante de pedra surgiu da nuvem de poeira. Estava flutuando, com uma massa de tentáculos como bigodes de bagre se contorcendo atrás dele — uma mistura grotesca de carne, pedra e terra. Os tentáculos eram grossos, negros e se retorciam como anêmonas-do-mar, com um leve brilho dourado — deviam ser a fonte daquele feixe de energia.
O Devorador de Almas fechou os olhos de pedra, e um líquido vermelho começou a escorrer das fendas, como lágrimas de sangue. Ele abriu a boca, e mais sangue jorrou.
O som nojento de uma pedra vomitando sangue ecoava nos meus ouvidos, junto com o grito de guerra do Devorador de Almas — um som insuportável, agudo, saído diretamente de um filme de terror. Quando o grito finalmente cessou, ele abriu os olhos um pouco e sua boca ensanguentada se curvou num sorriso. Os olhos dourados estavam transbordando de um riso cruel e vazio.
— Eu não acredito nisso...
Ele tá se divertindo...
Mesmo assim, eu não conseguia achar nenhuma abertura pra atacar. Não via nenhuma chance de vencer. O Devorador de Almas não tinha nenhum ponto fraco — no momento em que eu tentasse qualquer coisa, ele me explodiria com aquele feixe, provavelmente arrancando um braço ou uma perna junto.
Os passos gosmentos dos zumbis se aproximavam.
— S-seu monstro...! Brincando com as almas das pessoas assim...
As criaturas pingavam um líquido roxo nauseante enquanto avançavam. Estendi o braço.
— Nh...! Pa—
Eu podia sentir os olhos dele em mim. Suando frio, com as vestes grudadas no corpo, abri os olhos, cerrei os dentes e gritei:
— Paralisa!
Funcionou — nada de feixe. Os três zumbis pararam onde estavam. O Devorador de Almas só observava, indiferente.
Será que ele tá me ignorando porque não ataquei ele diretamente?
Ofegante, olhei desconfortável para os três zumbis congelados. — P-próximo... — Minha voz tremia. Os rostos daquelas pessoas choravam, implorando por alívio.
— E-enve...n...! Aaaah!
Gritei e olhei pro teto.
— E-eu... Eu não consigo...! Mesmo que estejam meio mortos, essas coisas... são muito humanas...! Envenená-los seria cruel demais, droga!
Senti as lágrimas começarem a subir.
Aqueles são heróis que passaram pelo inferno só pra morrer nesse lugar maldito... eles são...
— Eles são como eu...!
Virei pro Devorador de Almas, cheio de ódio.
— E-eu ainda não cheguei nesse ponto! Eu não brinco com as almas das pessoas como você faz! Eu não posso — eu não vou — usar veneno contra outro humano. Não vou fazer isso! Aqueles rostos humanos... não são como vocês, monstros. Eles não fizeram nada de errado!
As lágrimas escorriam pelo meu rosto.
— Eu ainda sou humano...!
O rosto se contorceu de alegria, exibindo os dentes de pedra num sorriso largo.
Com um slorp nojento, mais zumbis de gosma apareceram — agora eram mais de vinte. Eles rapidamente tomaram formas humanas, abrindo os lábios laterais para revelar rostos com expressões horríveis — e então começou a marcha da morte. Estavam tentando me cercar.
Plic, Plic, Plic.
— F-fiquem longe...!
Cobri o rosto com a mão, cambaleando pra trás.
— N-não...
Mesmo que sejam só monstros de gosma com almas humanas gravadas neles. Mesmo que sejam apenas cópias. Eles já foram heróis, assim como eu. E agora estão marchando na minha direção — os heróis descartados das Ruínas do Descarte.
— E-eu sou como vocês! Me escutem...!
Por favor. Me ouçam. Me mostrem um milagre.
Meus braços estavam tremendo.
—F-fiquem longe de mim…!
Eu fui recuando até encostar na parede, enquanto as hordas de mortos e o Devorador de Almas avançavam sobre mim. Aquele rosto de pedra sorria como se fosse o próprio sol brilhando, cego de tanta euforia. Seus dentes estavam assustadoramente brancos sob o brilho fraco da sala.
Ele tá se divertindo com o meu desespero… saboreando cada segundo. Como se tivesse encurralado sua presa só pra brincar com ela… ele tá se divertindo.
Formas humanas pálidas, quase fantasmagóricas, começaram a surgir ao redor do corpo do Devorador de Almas, se contorcendo e se debatendo em agonia. Os olhos eram negros, e as bocas escancaradas gritavam em tormento, clamando por socorro. Era um coro de almas aprisionadas implorando desesperadamente por liberdade.
Ele quer que eu veja isso…
—Isso é cruel demais…
Um arrepio percorreu minha espinha.
Essa coisa é o mal puro.
—Uh?!
Senti minhas costas baterem na parede.
Sem saída. Sem força de vontade nem pra tentar correr.
Minhas pernas travaram—o medo congelou meu corpo no lugar.
Eu tô com medo… medo demais.
Os mortos se aproximavam, e o Devorador de Almas vinha logo atrás.
—P-parem…!
Era o meu fim.
—Por favor, não… Não faz isso, eu tô implorando… Fiquem longe… Saiam de perto de mim—!
A boca do Devorador de Almas se escancarou, e os tentáculos se agitavam ainda mais animados. A cada movimento deles, eu afundava ainda mais no desespero.
Tentei sobreviver por conta própria, tentei me virar sozinho… mas no fim, eu tive que pedir ajuda.
—Mas que merda! Isso ainda não é o bastante?! Alguém, qualquer um, me salva! Não é agora que alguém deveria aparecer e me resgatar? Eu ainda não mereço isso?!
Meu grito desesperado e cheio de raiva ecoou pela sala.
—Eu não ligo quem seja… qualquer um… alguém… Alguém me salva!
Tudo que eu tinha suportado até aquele momento desabou sobre mim como uma onda.
Eu quebrei.
O sorriso do Devorador de Almas se alargou ainda mais, lágrimas de sangue escorrendo pelo seu rosto. Eu sabia exatamente o que ele tava sentindo…
Euforia!
—Paralisar.
—Khhhh?!
O Devorador de Almas tava tão distraído com sua própria arrogância, tão perdido no prazer de me ver desesperar, que baixou a guarda por um instante… e foi aí que eu ataquei. Eu tinha ficado de olho nele por entre os dedos com que cobria o rosto e mantive a mira—deixei meu braço levantado de propósito depois do último Paralisar.
Alvo travado. Braço estendido. Duas das três condições pra usar minha habilidade estavam completas.
—Khhh…?
A expressão do rosto de pedra se desfez num instante ao congelar no lugar.
—Essa é a sua fraqueza…
Eu olhei pra cima, direto pro rosto de pedra—minha presa.
—Esse é o defeito fatal dos fortes e arrogantes.
É naquele momento em que eles têm certeza da própria superioridade, quando acreditam que a vitória está garantida. Eles baixam a guarda. Perdem a cautela e me dão uma brecha pra usar minha arma.
Habilidade evoluiu!
Nível 2 → Nível 3
Minhas mãos pararam de tremer, minhas lágrimas secaram. Não havia mais necessidade de continuar atuando.
O Devorador de Almas tentou se soltar, batendo os dentes e se debatendo violentamente contra as restrições invisíveis.
Seus olhos esbugalhados, injetados com veias douradas espessas, se esforçavam pra me encarar.
Ódio. Humilhação. Assassinato.
Sangue escorria da sua boca. Eu encarei de volta.
—Acho que até eu me enganei.
Parte de mim realmente ficou horrorizada por ter que lutar contra algo que parecia humano. O gentil e quieto Mimori Touka ainda existe dentro de mim, e eu o usei pra enganar o Devorador de Almas.
—Você adora atacar pessoas como ele, né?
Os homens-lagarto e homens-leopardo eram sádicos torturadores que queriam me ver encolhido de medo, e eu senti que o Devorador de Almas tinha a mesma fraqueza. Ele não queria só me matar—ele queria exibir sua coleção. Então usei isso contra ele. Atuei como um fraco patético e deixei ele se exibir. Dei exatamente o que ele queria.
E então eu matei ele.
Descobrir que meus efeitos de status funcionavam nele foi um baita alívio. Um sorriso largo se espalhou no meu rosto.
—Haha ah… curtiu essa? Até que eu não sou um mau ator, né, chefia? Tive bastante prática.
De fingir. Desde que meus pais adotivos aceitaram me acolher...
—Por dias, meses, anos...
Fingi ser inofensivo.
Fingi ser normal.
Fingi ser gentil.
Levantei os dedos ensanguentados na direção do rosto do Devorador de Almas, desafiador.
—Até eu me enganei.
Consegui esquecer quem eu realmente era.
Arregalei os olhos e soltei uma risada insana.
—Fingi tanto tempo ser o Mimori Touka gentil e discreto...
Os zumbis de lodo que me seguiram e me encurralaram contra a parede tinham, na verdade, sido guiados pra uma formação onde eu podia atingir todos com facilidade.
—Achou que tinha me encurralado... mas quem foi pego foram vocês, não eu.
Estiquei os dois braços à frente.
—Veneno.
Os zumbis ao meu redor começaram a mudar de cor.
—Esses zumbis querem me matar. Mesmo que tenham sido feitos com as almas de heróis mortos... eu não vou me segurar.
Tenho que lutar contra o mal com mal.
Assassinato com assassinato.
Eu vou esmagá-los.
Passei entre os zumbis imóveis. Alguns já estavam sucumbindo ao dano de veneno, suas pernas derretendo, fazendo-os cair de joelhos diante de seu novo rei.
Finalmente, fiquei frente a frente com o Devorador de Almas.
—Aposto que eu tenho os status mais fracos dessa masmorra inteira, né? Mas estar no fundo do poço nem sempre é algo ruim.
A criatura me encarava, seus tentáculos se contorcendo e espasmando enquanto tentava, em vão, se mover. Também não parecia conseguir usar seu raio.
—Ainda bem que eu sou o mais fraco daqui. Foi assim que sobrevivi—sendo subestimado por monstros como você.
Eu consegui... mas tantos outros não conseguiram... todos os restos que encontrei pelo caminho, os corpos usados como brinquedos por monstros, os quatro que chegaram até aqui... e o Herói das Sombras.
Talvez eu nem seja como eles... talvez nunca possa ser. Vai ver, eles nem me aceitariam. Todos os heróis mandados pra cá por aquela Deusa maldita deviam ser boas pessoas, ou ela não teria se livrado deles...
Mas eu não sou uma boa pessoa. Tudo que eu quero é vingança contra a Deusa que fez isso comigo. Não quero reconhecimento nem elogio. Dizer que sou igual a esses outros heróis é só ilusão da minha parte.
Pra ser sincero, eu só tô puto... Depois de tudo que eles passaram, a humilhação, o desespero, o arrependimento...
—Isso me deixa tão puto...
—Khhh!!
As almas mantidas presas por esse monstro sofreram por tanto tempo. Morrer nesse lugar já não era punição suficiente? Nem na morte, as almas conseguiram paz.
Quero que o Devorador de Almas sinta tudo isso.
O arrependimento.
A humilhação.
O desespero.
—Veneno.
O rosto do Devorador de Almas ficou roxo, e seu corpo tentacular começou a borbulhar de forma ameaçadora.
Habilidade evoluiu!
Nível 2 → Nível 3
Encarei o olhar assassino do monstro enquanto caminhava lentamente até ele, perto o bastante pra tocá-lo. O ódio que ele emanava era palpável.
Olhei pra baixo, para o Devorador de Almas, com desprezo.
—Você achava que os heróis jogados aqui eram só presas pra se alimentar, né?
Abri um sorriso largo.
—Olha só como as coisas mudam. —Soltei uma risada.— Agora é você que tá aí no chão, arfando. Né, Devorador de Almas?
A criatura abriu a boca e mostrou a língua. Sua raiva transbordava enquanto tentava, sem sucesso, rugir.
Será que essa coisa entende o que tô dizendo? Será que percebe o que tá acontecendo?
O corpo começou a ter espasmos. Um líquido azul começou a escorrer dele.
Será que isso é sangue?
O líquido se espalhou pelo chão e formou uma poça, como se uma nova fonte termal tivesse surgido ali. Me afastei pra uma distância segura e continuei assistindo ao espetáculo, me sentindo revigorado. Já tinha uma ideia do que estava acontecendo.
—Hm. Talvez monstros que tentam se mover enquanto estão paralisados sofram dano extra.
Só a força bruta absurda do Devorador de Almas me permitiu fazer observações de campo desse tipo.
—Isso é dado valioso.
Não vou precisar esperar uma morte lenta pelo veneno.
Será que vou ter que usar o Sono? Melhor se morrer logo. Não tenho o dia todo.
O Devorador de Almas continuava me encarando com os olhos em chamas. O torturador nunca imaginou que um dia estaria do outro lado da grade.
Você sempre achou que era a coisa mais poderosa daqui de baixo, não é? Os outros heróis que vieram antes de mim não conseguiram derrotar o Devorador de Almas… mas no fim, todos eles me ajudaram a vencê-lo. As derrotas deles deixaram o monstro arrogante. Orgulhoso. Os heróis que vieram antes de mim abriram o caminho e pavimentaram minha vitória com o próprio sacrifício.
Uma grande rachadura surgiu no rosto de pedra. Metade dele desmoronou, revelando carne preta e rosada se contorcendo, e sangue azul jorrando de dentro.
— Khhhhhh…!
Ele manteve os olhos furiosos em mim o tempo todo. Enquanto eu esperava, a barra amarela começou a diminuir.
— Já chega.
As últimas palavras que eu disse não foram para o Devorador de Almas, mas para todas as almas cativas que ele manteve em tormento por tanto tempo…
— Descansem em paz…
— Durmam.
O Devorador de Almas deu seu último suspiro.
Level up!
Nível 1229 → Nível 1789
Agora não passava de um monte de entulho e carne retorcida.
Os zumbis também tinham desaparecido—dissolvidos em poças informes de lodo no chão ao lado de seu mestre caído.
Acho que ganhei alguns níveis de habilidade nessa luta, né?
Minhas habilidades de Paralisia e Veneno tinham subido de nível.
Será que eu preciso usá-las um número específico de vezes pra melhorarem? Elas evoluem com base na quantidade de alvos ou a força dos inimigos também influencia?
Ainda havia tanta coisa que eu não sabia sobre minhas habilidades e como esse sistema todo funcionava.
Fico pensando…
— Quando usei minhas habilidades no Devorador de Almas, será que elas também afetaram todas as almas que ele mantinha presas? Seria muita gente envolvida…
Não me sentia nada bem pensando na possibilidade de ter feito todas aquelas almas cativas sofrerem com meu Veneno.
— Desculpem se machuquei algum de vocês… hmm?
O corpo do Devorador de Almas começou a brilhar com uma luz branca pálida.
Uma torrente de espíritos saiu disparada de seu cadáver, subindo em espiral pelo ar. Parecia aqueles vídeos da natureza que eu já vi na TV, com cardumes de peixes nadando juntos numa sincronia linda. Eles giraram sobre mim por um instante antes de avançarem diretamente para o teto de pedra, e então flutuarem para baixo em pequenos flocos de luz pálida… como neve numa noite de inverno silenciosa.
— …………
Uma voz.
— Oh, e aí! Foi comigo que você topou primeiro, lembra? Fiquei tão aliviado quando você escapou daquele minotauro. Mandou bem, cara!
Eu encontrei metade de um crânio logo que cheguei nas cavernas.
— Desculpa o machado não ter sido mais útil contra aquelas criaturas terríveis com quatro braços e cabeça de pássaro… Você fez bem em sobreviver. Tenho orgulho de você.
Eu tinha pego um machado e tentei cortar a pele dura da cabeça de pássaro com ele… Não deu certo.
— Parece que meu velho sobretudo serviu pra alguma coisa! Mal posso acreditar que aquele trapo acabou sendo usado pelo Grande Sábio! Bem… obrigado.
Aquele sobretudo preto que peguei emprestado de um esqueleto…
— Aquela espada curta era boa, sabia! Mas acho que os monstros por aqui eram demais pra ela! Fiquei surpreso quando te vi tentando comer o olho do minotauro, pfft heh heh! Muito obrigado por derrotar o Devorador de Almas…
A espada curta que usei pra arrancar o olho do minotauro… também era de um esqueleto.
— Não acredito que você derrotou um dragão zumbi! Você arrebentou com ele! Bom trabalho, cara! Você é incrível!
Me lembrei daquele crânio flutuando no pântano, lá na caverna de calcário.
— C-com licença…
Uma figura pálida e translúcida flutuou diante de mim.
Reconheci o vestido dela na hora—como poderia esquecer? Era o esqueleto com o qual os homens-lagarto estavam brincando nas cavernas. O espírito da garota parecia gentil e suave, e doía pensar no que aconteceu com ela. Ela apertava os punhos com força.
— P-pode soar bárbaro da minha parte, m-mas… quando você deu uma boa surra naqueles homens-lagarto, eu… Isso me animou de verdade! Obrigada por fazer eles provarem do próprio veneno!
Ela fez uma reverência, e eu sorri reflexivamente em resposta.
A garota sorriu de volta, e então desapareceu suavemente.
— Isso também me animou! Nunca imaginei ver o dia em que aqueles homens-lagarto pagariam pelo que fizeram… Obrigado por tirar nossos restos mortais das mãos deles. Te desejo toda a sorte do mundo na sua jornada, jovem.
Também reconheci as roupas desse espírito—era o homem que os homens-lagarto estavam zombando, fingindo que ele estava sendo queimado vivo.
— N-nós também! Aqueles homens-leopardo fizeram coisas horríveis…
— Você desmontou os brinquedos deles e nos colocou pra descansar, não foi? Muito obrigada. Você é uma pessoa muito gentil.
Os dois crânios que faziam parte daqueles nunchakus que o homem-leopardo usava.
— Espero que nossos tesouros te ajudem quando voltar à superfície. Devem durar um bom tempo… contanto que a economia não tenha quebrado, né? Enfim, use com saúde!
— Ha ha, não acredito que você caçou todos aqueles monstros nas ruínas, você é demais! Se cuida por aí, tá? Boa sorte!
Um menino e uma menina, de mãos dadas—reconheci na hora como os dois esqueletos deitados juntos na sala lacrada.
— Por fim… claro que é você — murmurei.
Cinco figuras apareceram diante de mim. Reconheci de imediato quem estava à frente do grupo.
Afinal, ele usava o mesmo manto que eu.
Era o Grande Sábio Anglin, Herói das Trevas, com seus quatro companheiros atrás dele.
—
Ele estava tentando dizer algo, mas eu não conseguia ouvir. Vi ele mexendo os lábios dizendo "obrigado", mas não entendi o resto. Parecia que havia uma névoa nos meus olhos me impedindo de compreender.
O Grande Sábio continuou falando, sem se abalar.
Logo, suas formas começaram a desaparecer.
—
O Grande Sábio me disse algo, então se virou para seus companheiros, que o receberam calorosamente. O grupo todo acenou para mim, sorrisos e mais agradecimentos nos lábios. Levantei um pouco a mão em resposta.
— …
As últimas palavras do Grande Sábio foram as únicas que consegui ouvir com clareza.
— Por favor… deve… Deusa…
— …?
Estremeci e sacudi a cabeça, despertando de repente.
Será que eu cochilei?
Uma onda de cansaço me atingiu em cheio.
— O que foi isso…?
Será que eu tava alucinando? É estranho... achei que tava vagando por essas ruínas sozinho, mas... na real, eu nunca estive sozinho, né? Aqueles que vieram antes de mim sempre estiveram lá, me observando em silêncio, cuidando de mim.
Eu não sabia de toda a verdade — provavelmente nunca vou saber. Mas, mesmo assim, isso me trouxe uma sensação boa. Era o mesmo tipo de calor que meus pais adotivos me davam.
"…"
As últimas palavras do Grande Sábio ecoavam nos meus ouvidos, repetidas em uníssono por todas as almas que haviam sido descartadas nessas ruínas.
— Por favor. Você precisa derrotar aquela Deusa.
— Olha, eu não devo nada pra vocês. Mas, dito isso... podem descansar em paz.
Cerrei o punho com a mão esquerda e o envolvi com a direita. A imagem da Deusa surgiu na minha mente.
— Pode demorar um pouco, mas antes de eu sair desse mundo... vou acertar as contas com aquela Deusa imunda do meu jeito.
Peguei o cristal dourado do corpo do Devorador de Almas e me levantei devagar. Recuperei minha bolsa de couro e fui subindo as escadas em direção àquela porta enorme. Então, por um instante, olhei pra trás.
— Até mais.
Pra quem eu tô me despedindo? Nem eu sei ao certo.
Enfiei o cristal no encaixe da porta, que se abriu com um estrondo.
A primeira coisa que me recebeu do outro lado foi a luz quente e suave do sol — como um velho amigo que eu não via há semanas.
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