Selna Lysandra
Minha vida começou nas profundezas do desespero. Eu nasci filha de comerciantes que viajavam pelo mundo todo. Sempre que chegávamos a uma cidade grande, eu ficava apenas olhando para as costas agitadas dos meus pais. Foi uma infância corrida.
Nunca ficávamos muito tempo no mesmo lugar, então eu nunca tive algo como um amigo — até porque eu já não era muito boa em conversar com os outros. Cada vez que nos instalávamos em alguma estalagem, os dias passavam lentamente, e meu espírito apenas se apagava.
— Você é uma menina tão boa e obediente, Selna.
Foi isso que meus pais me diziam. Eu sentia o amor deles, mas eles estavam sempre ocupados demais com o trabalho para colocar comida na mesa. Provavelmente, passei bem menos tempo com meus pais do que qualquer criança deveria. No fundo, eu até achava que não devia atrapalhá-los. Teria sido bom se eles tivessem enxergado a minha docilidade como uma forma de amor.
Naquela fase da minha juventude, transportávamos muitas mercadorias de cidade em cidade, de país em país, sempre com o mínimo de guardas possível. Mas aqueles dias chegaram a um fim repentino.
— Estamos sendo atacados! É enorme!
Não me lembro muito bem do que aconteceu. Lembro da carroça sacudindo violentamente de repente. As pessoas ao redor começaram a se mover às pressas. Um tempo depois, rugidos e gritos tomaram o ar.
— Selna! Corre!
As últimas palavras que ouvi da minha mãe estavam carregadas de dor e tristeza. Ela me empurrou para fora da carroça parcialmente destruída, praticamente me arremessando. Algo grande e assustador estava atrás dela. Não consegui ver direito o que era, mas a imagem ficou gravada na minha mente. O medo instintivo tomou conta, e eu saí correndo, sem destino.
— Ei! Você tá bem?!
Não faço ideia de até onde corri. Pensando bem, me surpreende a quantidade de energia que o meu corpo pequeno conseguiu reunir. De alguma forma, cheguei até os arredores de uma vila no interior, bem longe de qualquer rota comercial. Lá, fui encontrada por um morador.
Apaguei logo depois disso, então não sei que tipo de conversa tiveram sobre eu aparecer do nada. Quando acordei, estava na casa de alguém, olhando para um teto estranho. Meu corpo ferido tinha sido tratado.
— Ei, acordou?
“Não fale com estranhos.” Foi isso que minha mãe me disse uma vez. Consigo até imaginar a expressão séria dela quando falou isso. Apesar de não ter escolhido estar nessa situação, eu estava quebrando essa regra, incomodando um completo desconhecido. Mesmo com a mente imatura, eu me sentia culpada. Mas tudo o que consegui fazer foi ficar em silêncio.
— Qual é o seu nome?
— Selna...
A pessoa que me acolheu era muito paciente. Eu o ignorei completamente, e o único dado que conseguiu arrancar de mim foi meu nome. Isso foi bem rude, considerando que ele tinha salvado minha vida, mas eu não conseguia responder quando ele perguntava o que tinha acontecido ou o que eu estava fazendo naquela vila. Eu não queria lembrar.
Pensando nisso agora, sinto uma vergonha imensa da minha recusa tão descarada... mas eu era só uma criança.
Depois disso, o tempo foi passando lentamente dentro daquela casa. Meus pais nunca vieram me buscar. Apesar de ser tão nova, de alguma forma eu sabia o que tinha acontecido com eles. Aquela coisa que atacou minha família... era tão assustadora que até eu entendi o quão perigosa era.
— O que é isso...?
— Uma espada de madeira. Que tal tentar, só pra mudar um pouco?
Quanto tempo passou desse jeito? Um dia, o homem que estava me abrigando me chamou para sair. Ele segurava uma espada de madeira. Foi aí que descobri que aquele lugar era um dojô de esgrima.
— Isso aí! Hahaha, você leva jeito pra coisa, Selna.
Eu não tinha muito o que fazer, e já estava mais calma. Então, fiz como ele sugeriu e comecei a treinar com a espada de madeira no dojô. Não é que eu gostasse disso, mas também não odiava. Mexer o corpo me tirava daquela inércia de simplesmente ficar parada. Só agora, como adulta, entendo o quanto ele se preocupava comigo; só agora entendo que empunhar aquela espada era a forma infantil que encontrei de tentar retribuir o cuidado dele.
— Você é bem ágil, Selna. Talvez espadas duplas combinem com você.
Durante os três anos em que fiquei no dojô, nunca cheguei a empunhar duas espadas, mas, por algum motivo, aquelas palavras ficaram na minha cabeça. Acho que foi a primeira vez na vida que me dediquei de verdade a alguma coisa. Nunca tive tempo de fazer nada quando estava com meus pais, e também não queria incomodá-los com vontades egoístas. Mas, de alguma forma — realmente, só de alguma forma — comecei a achar que a esgrima era bem legal. Talvez fosse por vingança, por escapismo, ou até por admiração. O que senti naquela época foi se apagando com o tempo, mas não dá pra negar que meu mestre abriu um caminho para o meu futuro.
— Selna, se cuida.
O tempo passou, e fui confiada a meus pais adotivos. Essa troca aconteceu num dia como outro qualquer, e o casal já de idade me olhava com gentileza.
A partir de hoje, eu não era só Selna. Eu seria Selna Lysandra.
— Mestre.
— Hm?
Ele me ensinou a lutar com espada, então acabei chamando-o de Mestre. Todo mundo o chamava assim, então parecia natural. Por algum motivo, ele fez uma cara estranha.
— Muito... muito obrigada.
— De nada.
Provavelmente, foi a primeira vez que o agradeci. Parece absurdo ter levado três anos pra isso... mas coloquei todos os meus sentimentos nessas poucas palavras.
Meus novos pais eram boas pessoas. Não me mimavam, mas também não eram rígidos. Simplesmente deixaram que eu crescesse. Quando contei que queria ser aventureira, eles ficaram surpresos, mas não foram contra. O jeito como oraram pela minha segurança aqueceu meu coração.
Eu quis me tornar um aventureiro por vários motivos. Meus pais biológicos haviam viajado o mundo todo, então eu também queria ver essas terras com meus próprios olhos. E, mesmo tendo treinado com meu mestre por apenas três anos, queria usar minhas habilidades com a espada. Sentia, de forma vaga, que queria ficar mais forte. Se possível, também queria salvar o maior número de pessoas que conseguisse. Ninguém deveria passar pelo que eu passei.
Talvez tudo isso parecesse um monte de sonhos infantis, mas meus pais nunca se opuseram. Foi assim que me tornei um aventureiro — por puro ego.
O tempo passou. Treinei para ser um aventureiro e fui cumprindo pedidos da guilda. Durante esses dias, de um jeito ou de outro, acabei percebendo o quão incrível meu mestre era. Saber que um homem assim tinha me treinado me dava confiança — e isso me empurrava cada vez mais alto.
◇
— Hã? Ah... Mestre... Beryl...?
Foi um choque — um choque tremendo. Eu havia me tornado uma aventureira, trabalhando firme mesmo com derrotas, sempre encarando tudo com determinação. Quando percebi, já tinha subido ao topo da guilda e conquistado a mais alta e forte das classificações: rank preto. Eu consegui. Claro que devo isso aos meus pais por terem me dado um corpo forte, e meu próprio esforço também não pode ser ignorado. Mas nunca me esqueci do homem que me colocou na linha de partida.
Depois de uns vinte anos, ele já tinha envelhecido bastante. Mas suas virtudes ainda eram fortes como sempre, então o reconheci de imediato.
— Queria ter visitado Beaden e contado como estava indo, mas depois que comecei a trabalhar como aventureira, nunca apareceu uma oportunidade... Nunca pensei que a gente fosse se reencontrar assim.
Quando o Mestre Beryl finalmente conseguiu se lembrar de mim, contei uma meia-verdade. Se eu quisesse mesmo ir vê-lo, poderia ter ido. Estava ocupada com os pedidos da guilda, mas a partir do rank platina eu já ganhava uma grana mais que suficiente. Pegar uma carruagem até Beaden não teria sido nada demais.
Eu só estava com vergonha. Só podia ser isso.
Mas vê-lo junto com a Sitrus, de todas as pessoas, foi completamente inesperado. Meu mestre, instrutor especial dos cavaleiros? Totalmente injusto. Eu também queria ser instruído por ele. Mas como já era rank preto, não estava mais na posição de pedir pra alguém me ensinar. Pelo contrário, eu era quem tinha que treinar uma porção de gente. E ultimamente, ainda por cima, havia monstros nomeados agindo de forma estranha, sem falar nos novatos...
É. Treinar os novatos. Isso naturalmente exigiria supervisores — pessoas extremamente habilidosas.
— Na verdade, a guilda dos aventureiros gostaria de contar com o Mestre Beryl. Vim aqui pra pedir permissão. Também tenho uma carta do mestre da guilda.
Tive que torcer o braço do Nidus e elogiar bastante o Mestre Beryl. Com esse pedido, eu poderia fazer missões ao lado dele e ver com meus próprios olhos sua força. Toma essa, Sitrus. Não é como se eu odiasse ela nem nada — ela é uma boa pessoa. Mas eu tenho certa desconfiança dos cavaleiros no geral por causa do que aconteceu comigo quando era criança. O monstro que atacou meus pais estava fazendo um estrago numa rota de comércio dentro das fronteiras do país, o que era responsabilidade da ordem dos cavaleiros. Era dever deles garantir a segurança pública — tanto nas cidades quanto nas rotas comerciais — e eles falharam.
— Vai pro inferno, seu desgraçado!
— Gaaaaaah!
A espada do Mestre Beryl perfurou a boca de Zeno Grable. A habilidade dele é exatamente como eu lembrava. Quantos aventureiros conseguiriam acompanhar essa velocidade? Zeno Grable era incrivelmente rápido pro seu tamanho, mas o Mestre Beryl conseguiu prever todos os movimentos. Nunca imaginei que encontraríamos um monstro nomeado aqui, mas Zeno Grable teve um azar danado. Apareceu justamente na minha frente — e logo com o Mestre Beryl ali.
— Você fez uma bagunça e tanto, seu maldito.
Mas eu te agradeço, Zeno Grable. Graças a você, posso lutar ao lado do Mestre Beryl. Como agradecimento, vou acabar com você num instante. Que descanse em paz.
— Está interessado em se tornar um aventureiro?
— Tô fora.
Depois que tudo terminou, voltamos para a guilda dos aventureiros. Eu me segurava pra não cair na gargalhada com a conversa entre Nidus e o Mestre Beryl. Não havia a menor chance de um homem do calibre dele se contentar em ser só um aventureiro qualquer. Ridículo ele ser chamado de “instrutor especial” ou algo assim pela ordem. Não dava pra arrumar um cargo melhor, Sitrus?
Enquanto o Mestre Beryl recusava firmemente o mestre da guilda, lancei um olhar discreto na direção dele.
Como sempre, meu mestre tinha aquele rosto amável e gentil. Se ele continuasse ativo assim, então um dia, todos no país — não, no mundo todo — que aspirassem a dominar a espada conheceriam seu rosto... e seu glorioso título de Mestre Espadachim.
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