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Chapter 04 - Vol 2: Epílogo: O mimo de um velho caipira

 Epílogo: O mimo de um velho caipira

— Bem-vindos. Uma mesa para dois?

— Sim.

— Certo. Por aqui, por favor.

Um sino tilintou acima da porta quando a abri, revelando o interior de um restaurante. Era um lugar não muito longe da minha nova casa. Como eu esperava, a casa ficava em um bairro tranquilo, e uma caminhada curta me levava até vários restaurantes. Este aqui parecia um pouco mais sofisticado. No momento em que entrei, percebi que era claramente diferente dos lugares que frequentei enquanto estava hospedado na estalagem — a clientela e a atmosfera não tinham nada a ver com uma taverna barata. As pessoas estavam sentadas no balcão e nas mesas, saboreando suas refeições com bons modos. Era um lugar animado, mas não barulhento, o que criava um clima ideal para uma refeição tranquila.

— Vamos? — perguntei para a Mui. Ela espiava hesitante pela porta.

— T-Tá bom...

Seguimos o garçom até o interior. Eu tinha escolhido esse lugar, em grande parte, por causa da Mui. Estávamos ali para comemorar a nova casa e o fato de estarmos morando juntos. Não era bem isso, mas aquele era o começo da nova vida dela, e eventos assim mereciam boas lembranças. Por isso escolhi um restaurante um pouco caro, mas ainda dentro do possível.

Mui com certeza carregava muitas lembranças amargas. Não havia como apagá-las, mas eu queria oferecer a ela muitas memórias boas também. Seria egoísmo deste velho acreditar que isso era possível? Aliás, foi a Lucy quem me indicou esse lugar. Ainda bem — eu não sabia nada da região.

— Hahaha, estamos só jantando. Não precisa ficar tão tensa.

— M-Mas...

Nos sentamos à mesa, e a Mui estava visivelmente inquieta. Faz sentido, considerando que ela nunca teve a chance de ir a um lugar como aquele. Mas foi exatamente por isso que a trouxe. Não era minha intenção zoar com a cara dela, mas sua reação era preciosa... e aquecia meu coração.

— E então... o que vamos pedir? — murmurei.

— T-Tanto faz pra mim...

A especialidade do restaurante eram frituras, principalmente pratos com carne. Esse tipo de preparo usava uma quantidade absurda de óleo. Não era fácil encontrar lugares que usassem óleo como se fosse água — as tavernas que eu costumava frequentar perto da estalagem focavam mais em pratos cozidos ou assados.

— É uma ocasião especial, então pede algo que normalmente você não teria.

— Uhh... tá bom...

Durante o tempo que ficou na casa da Lucy, a qualidade de vida da Mui deve ter aumentado bastante. Não queria usar esse restaurante como padrão do que ela deveria esperar morando comigo, mas ainda assim queria dar a ela um agrado. De certa forma, escolher esse restaurante era eu querendo bancar o importante. Mas um mimo de vez em quando não faz mal.

— Com licença. Uma cerveja e um suco de uva.

— Certo, já trago.

Comecei pelas bebidas. Mui obviamente era jovem demais para beber álcool, então pedi um suco pra ela. Um item simples assim provavelmente era algo que ela nunca pôde provar nos tempos em que vivia de bicos e pequenos furtos.

Logo depois do pedido, as bebidas chegaram. Um caneco de madeira transbordando de cerveja para mim, e um copo bem menor com suco para a Mui.

— Um brinde ao começo da sua nova vida. Saúde.

— S-Saúde...

Erguemos nossos copos e brindamos. A espuma do meu caneco balançou com o impacto, e um pouco derramou.

— Opa... Hmm, tá ótimo.

— Mmm...

Não posso dizer que sou refinado, mas tomei um gole da minha cerveja de um jeito discreto, sem chamar atenção dos outros. Ahhh, essa é da boa. Nada como uma boa bebida depois de um dia puxado, mas uma cerveja para celebrar algo especial assim... é outro nível. Simplificando: cerveja é sempre boa.

Mui tomava seu suco em pequenos goles. Provavelmente queria saborear o máximo possível. Mas por mim, podia pedir quantos refis quisesse.

Ao vê-la daquele jeito, senti meu rosto se suavizar de novo. Claro que eu já tinha ensinado alunos da idade da Mui no dojô, mas nunca tinha dividido uma mesa assim com um deles. Ela não era minha filha de verdade, mas agora que eu era seu responsável... era quase isso. Não tinha problema mostrar um pouco de carinho. Provavelmente.

— Enfim, vamos começar com algo leve — sugeri. — Tem alguma coisa que você não goste?

— Não...

— Eu como de tudo. Sempre foi assim.

— Entendi... É bom não ser enjoada.

— Hmph.

Acho que não foi a melhor pergunta. Assim como a Mui disse, ela nunca teve o luxo de escolher o que comia — a vida toda foi assim. Não importava se a comida estava ruim ou até estragada, se não comesse, morreria. Essa foi a infância dela. Mas agora que estaríamos vivendo juntos, eu não permitiria que ela continuasse vivendo daquele jeito. Eu não era rico, mas tinha dinheiro suficiente pra alimentar uma criança. Isso graças à Allusia, na verdade.

— Certo, então vamos de legumes fritos e ensopado de cogumelos.

— Claro.

Passei o pedido para o garçom. Legumes fritos com certeza combinavam com cerveja, então foi a minha escolha. Peguei o ensopado porque achei que combinava mais com a Mui. Me lembrou do ensopado da minha taverna preferida. A linguiça de lá era divina. Mas já tinha decidido que o prato principal de hoje seriam as frituras. Eu normalmente nunca comia isso, e duvidava que a Mui já tivesse experimentado alguma. Por isso queria que ela aproveitasse bastante essa comida gostosa nesse dia importante.

— Ooh, isso aqui tá com uma cara ótima.

— Mmm...

Nossa comida chegou logo depois. Os legumes estavam fritos até ficarem crocantes — o vapor que subia deles abria ainda mais o apetite. Vi que tinham deixado sal ao lado dos pratos, mas decidi dar uma mordida sem temperar primeiro. Com uma crocância deliciosa, os sabores da natureza explodiram na minha boca.

Hmmmm, isso aqui é bom demais. Combina perfeitamente com a cerveja. Fritura é uma maravilha. Depois temperei um pedaço com sal e dei outra mordida. O salzinho realçou ainda mais o sabor e o leve amargor dos legumes, formando a dupla perfeita com minha cerveja. Uma delícia.

— Vai lá, come também, Mui.

— Ah, tá bom...

Não devia ser nada interessante me ver só jogando comida na boca. Mui ficou sentada, toda dura, encarando o ensopado por um tempo, até que estreitou os olhos com determinação. Pegou uma colherada e levou à boca.

— Bom... — murmurou.

— Né?

Bastou uma provada pra ela se render ao sabor. Mui devorou o ensopado com vontade, sem o menor traço de elegância. Nem sabia direito como segurar a colher — só enfiava a comida na boca, fazendo a colher bater no prato o tempo todo. Se a Haley tivesse visto isso, provavelmente teria dito alguma coisa... mas mesmo os maus modos da Mui à mesa pareciam adoráveis aos meus olhos.

Talvez fosse porque eu sentia que devia muito à irmã dela. Eu começava a sentir uma vontade de apoiar a Mui bem maior do que tinha imaginado. Nosso encontro tinha sido meio torto, e eu não tinha seguido nenhum caminho tradicional pra virar o tutor dela. Mas, como adulto, renovei minha decisão de cuidar dela até que crescesse.

Crianças são fofas por natureza, mas o sentimento que nascia por uma filha — mesmo que só no papel — era de outro nível. Estava começando a entender por que meu pai vivia pegando no meu pé por causa de netos. Vai ver ele se sentiu assim quando eu nasci.

— Não precisa comer com tanta pressa — falei. — O ensopado não vai fugir.

— C-cala a boca...

Só quando falei é que a Mui percebeu o quão rápido estava mandando ver no prato. Desviou o olhar, morrendo de vergonha... mas ainda assim, não parou de comer.

Ha ha ha! Ninguém vence a barriga vazia.

— Certo então...

Já tinha passado da metade dos meus legumes fritos. O prato da Mui também não ia durar muito mais. Ou seja, estava na hora de chamar o prato principal: o tão esperado frito de carne. Bom, os legumes também tinham sido fritos, mas o verdadeiro astro da refeição tinha que ser a carne. E já que estava nisso, precisava de mais bebida. O copo da Mui também estava quase vazio.

— Com licença — chamei o garçom. — Por favor, fritas de javali. E mais uma caneca de cerveja e um suco de uva.

O javali era um animal de porte médio, e eu já tinha comido carne dele durante o tour pela região oeste com a Kewlny e a Ficelle. Naquela vez, foi um kebab; dessa, seriam fritas. Estava pronto pra saborear com calma o quanto um bom chef podia extrair de sabor da carne.

— Obrigado por esperar.

— Ooooh...

Logo depois, o garçom chegou com a carne de javali, cada pedaço envolto num dourado crocante e brilhante. Minha boca encheu d’água — até engoli em seco. Saía vapor da carne, como que pra enfatizar o quão fresquinhas estavam, e ainda dava pra ouvir o som do óleo estalando na casquinha. Só de olhar, já dava pra saber que seriam maravilhosas, então minha expectativa foi lá em cima.

— Uau... — murmurou Mui. A expressão deslumbrada dela era uma visão e tanto.

Com certeza ela nunca tinha comido nada assim. Os olhos dela brilharam diante do dourado da fritura. Agora sim, ela parecia uma criança da idade dela... O tempo iria curar as feridas do coração dela, mas às vezes, a comida podia ajudar nesse processo também. Pelo menos era o que eu acreditava — uma boa refeição purifica a alma.

— Certo, vamos atacar enquanto tá quente — falei.

— S-sim!

Diante do que provavelmente era o maior banquete que já tinha visto, Mui estava a mil por hora. E eu não ia estragar esse momento dizendo que era só uma refeição simples. Tirar o encanto de uma emoção assim é coisa de adulto amargo.

Os pedaços de javali pareciam meio duros pra morder, então cortei um com a faca, separando a casquinha crocante e revelando a carne macia por dentro. Um corte a mais e os sucos escorreram, mostrando que a carne estava cozida por completo. Caramba, que delícia. Era disso que eu tava falando.

— Hom...

Dei a primeira mordida. No momento em que meus dentes afundaram, uma onda intensa de carne, gordura e sabor invadiu minha boca. Mordi mais fundo no pedaço generoso, e ainda mais suco explodiu no meu paladar. Estava fervendo também — quase queimou minha língua e o céu da boca. Igual aos legumes fritos, o gosto de óleo era praticamente inexistente.

Os ingredientes da capital realmente eram de outro nível. Nunca teria experimentado algo tão bom lá no fim de mundo chamado Beaden. Cara, não achei que fosse ser tão incrível. Tenho que admitir — subestimei o poder da fritura. Nunca imaginei que podia superar as expectativas assim. Fritura é insano.

— Mmm...! Mmm...!

Se até eu tinha entrado em estado de êxtase, dava pra imaginar como a Mui reagiu ao provar carne frita pela primeira vez. No começo, ela levou o javali à boca com timidez, mas depois da primeira, da segunda mordida, o rosto dela se iluminou rapidinho. Ela ficou completamente maravilhada enquanto devorava a carne.

Sem dúvida, adorável. Mas isso não tinha a ver com o fato de ela ser minha filha agora... Qualquer criança se deliciando com comida gostosa é a definição pura de fofura. Não aceito discussão.

— Hm? Que foi? — perguntei.

Mui estava comendo com uma energia impressionante, mas de repente parou. Será que se queimou?

Ela ficou parada por alguns segundos. — Aqui... — disse, passando um pedaço cortado do javali do prato dela pro meu, meio desajeitada.

— Hein? Já encheu?

— N-não é isso... Tá absurdamente bom, mas...

Depois de transferir a carne, Mui murmurou alguma coisa incompreensível. Não entendi direito. Achei que a gente só estivesse curtindo a refeição juntos.

— É que eu nunca... comi com ninguém assim... Só com a minha irmã.

— Hm.

Pouco a pouco, palavra por palavra, Mui foi explicando.

— Eu não sei muito bem como dizer isso... mas, tipo, não é ruim comer com você também... então pode ficar com esse.

— É mesmo? Valeu.

Não sabia exatamente o que tinha mudado no coração dela. Mas com certeza era algo bom. Ela perdeu a irmã, sobreviveu sozinha no submundo... Isso era um passo precioso. Precisava valorizar essa realização — não podia ser grosseiro e dizer que não precisava dividir o que tinha.

— Mui, daqui pra frente, você ainda vai comer muitas coisas deliciosas, conhecer um monte de gente legal, e tenho certeza de que vai aprender muita coisa. Você vai se tornar uma adulta incrível. Na verdade, eu garanto.

— Que papo é esse...?

— Digo, você dividiu sua comida gostosa comigo, né? Isso é coisa de uma pessoa legal e encantadora.

— Cala a boca...

— Ha ha ha ha.

Como sempre, ela continuava emburrada. Mas aquele jeito espinhoso que tinha quando nos conhecemos tinha sumido por completo. Peguei o pedaço de javali que ela tinha cortado pra mim. Tinha sido cortado de qualquer jeito, a casquinha até descolou. Se fosse o garçom que tivesse feito isso, seria motivo de reclamação. Mas aquele pedaço, esse fritado torto, foi facilmente a carne mais saborosa do dia.





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