Entre no Discord e faça parte da comunidade!

Chapter 1 - Vol 2: Um Velho Caipira à Procura de uma Espada

 Capítulo 1: Um Velho Caipira à Procura de uma Espada


— Hmm. Estou me sentindo inquieto demais...

Já tinham se passado vários dias desde a excursão de treinamento com os jovens aventureiros e a batalha contra o monstro nomeado Zeno Grable. Terminei meu café da manhã de sempre na hospedaria de sempre e, ao sair, minha mão foi naturalmente até o vazio na minha cintura.

E agora, o que eu faço sobre isso?

É claro que eu pretendia continuar dando instruções aos cavaleiros. O pedido da guilda tinha sido só uma distração, mas agora que toda aquela agitação acabou, achei que podia voltar às minhas obrigações... originais? Ainda que o Nidus não fosse exatamente transparente, dava pra perceber que ele queria me manter envolvido com a guilda. Afinal, a equipe da Porta não era a única de novatos. E, se o que a Selna disse for verdade, eles estavam com pouca gente capacitada pra treinar os novatos. Mas mesmo assim... me arrastar pra supervisionar investidas em masmorras? Eu suei horrores na batalha contra o Zeno Grable — com certeza teria falhado se a Selna não estivesse lá. Mesmo que monstros nomeados não apareçam com tanta frequência, eu preferia nunca mais ver algo daquele nível. O estilo de vida que eu queria era um pouco mais... pacato. Nesse sentido, ser o instrutor especial da ordem não era uma má ideia.

— Opa, tô viajando aqui...

Balancei a cabeça, tentando tirar da mente essa história de envolvimento com a guilda dos aventureiros. O que eu queria agora era conseguir uma espada nova pra substituir a que quebrei — e o quanto antes. Eu podia treinar com uma de madeira, mas um espadachim simplesmente precisa ter uma lâmina de verdade na cintura. Vivi muitos anos desse jeito, então ficar sem espada me deixava inquieto.

— Bom... Acho que tá na hora de visitar um ferreiro.

Lembrei do ferreiro que a Allusia tinha me apresentado. Ele tinha umas espadas longas bem bacanas, que é o tipo de lâmina que eu prefiro. Espada longa é um tipo bem comum, dá pra achar em qualquer canto, até em uma forja no meio do nada. Eu não sou do tipo que vive viajando pelo mundo como os aventureiros, então não preciso de algo super requintado. Mas já que a oportunidade surgiu, queria algo melhor do que a minha última espada. Seria ótimo comprar algo um pouco mais refinado... mas minha carteira não tá ajudando.

A Selna, claro, sabia que minha espada tinha quebrado, e chegou a sugerir que a guilda dos aventureiros bancasse uma nova pra mim. Recusei. De algum jeito, eu simplesmente não queria me sentir em dívida com a guilda. Não é que eu tenha uma má impressão deles — o Nidus e o Meigen são boas pessoas. É só que eu tenho minhas reservas quanto a dever favores. Diferente da ordem, a guilda é claramente um negócio, e vê tudo pela ótica de lucro e prejuízo. Sinceramente, não quero me meter nesse tipo de mundo.

— Será que os ferreiros já estão abertos a essa hora? — murmurei enquanto caminhava pelas ruas de Baltrain.

A Lucy tinha arrumado briga comigo por essa hora do dia, mas hoje, nada estava me incomodando. Caminhei pelas ruas pouco movimentadas da cidade, aproveitando a atmosfera tranquila. Depois de andar um pouco, vi uma mulher baixinha correndo na minha direção. Quando chegou perto o suficiente pra ver quem eu era, abriu um sorriso radiante e me chamou:

— Oh? Mestre Beryl!

— Hm? Kewlny?


— O que você tá fazendo tão cedo assim? — perguntei.

— Correndo! Um corpo saudável é a base de um bom cavaleiro!

Kewlny estava só sorrisos. Apesar de ainda ser de manhãzinha, ela já estava encharcada de suor. Talvez tivesse corrido tudo isso desde a casa dela no distrito leste. Era uma boa distância — a maioria das pessoas teria pego uma carruagem.

— Você correu desde o distrito leste? — perguntei.

— Hm? Aham! Corri sim!

— Ha ha ha... Quanta energia.

Caramba, definitivamente não consigo fazer isso. A juventude é mesmo impressionante.

— E você, Mestre, o que tá fazendo fora tão cedo? — perguntou Kewlny, seus grandes olhos azuis encarando os meus.

Era difícil apagar da cabeça a imagem dela quando era garotinha, mas como jovem adulta, ela tinha sua própria beleza. Considerando o quanto eu era mais velho, não tinha pensamentos indecentes, mas o jeito despreocupado dela me deixava um pouco preocupado. Me sentia meio como um pai. Não que eu tenha filhos...

— Também tô dando uma volta matinal — respondi. — Tava pensando em dar uma olhada numa forja por aí.

— Uma forja...?

— É. Aconteceram algumas coisas. — Toquei o lado do quadril onde normalmente ficaria a bainha da minha espada longa.

— Ah, agora que você falou... você não tá armado?

— Nope — quebrou. Preciso arranjar uma espada nova.

— Hm! Entendi!

Por algum motivo, Kewlny ficou animada. Será que precisa de tudo isso? Bom, escolher uma espada é um grande evento pra um espadachim. Acho que dá pra entender esse entusiasmo. Mas, pra mim, não era lá grande coisa.

— Hmmm, a espada do Mestre... Aposto que vai mandar fazer uma sob medida, né? — perguntou Kewlny.

— Que nada. Nem penso tanto nisso assim.

Talvez já tendo encerrado o pique da sua corrida, Kewlny começou a caminhar ao meu lado num ritmo tranquilo, e continuamos conversando. Uma espada feita sob medida era exatamente isso — tudo era personalizado, desde o comprimento da lâmina, o equilíbrio, os materiais usados no cabo, e por aí vai. As pessoas naturalmente têm braços de comprimentos diferentes, mãos de tamanhos diferentes, quadris em posições diferentes... Ou seja, a arma ideal variava de pessoa pra pessoa. E claro, o gosto pessoal também contava muito. No fim das contas, não era incomum um espadachim ter uma espada totalmente feita pra ele.

Mas, óbvio, mandar fazer uma lâmina sob medida vinha com um preço absurdo. Você tinha que se encontrar com o ferreiro mais de uma vez, ajustando os detalhes conforme avançava. Cada encomenda dessas consumia um tempo, um esforço e uma grana absurdos.

— Aah, que desperdício — disse Kewlny.

— Você diz isso, mas eu não tenho grana pra isso.

Depois de ter sido chutado de casa em Beaden, eu tava pagando hospedagem na estalagem todo dia. Parece que consegui um bom desconto por ser hóspede de longa data, mas mesmo assim, não podia sair esbanjando. Não que comprar uma espada nova fosse desperdício... mas também não podia exagerar.

— Por enquanto, vou só dar uma olhada por aí — falei.

— É mesmo? Então espero que ache algo que goste! Ah... — Kewlny interrompeu a fala como se tivesse lembrado de algo de repente.

— Hm? Que foi?

— Ah, é que... eu preciso afiar minha espada. Tinha esquecido completamente...

— Ha ha ha, você continua a mesma de sempre.

Na época do dojo, ela vivia esquecida e sempre atrapalhada. Fico feliz que essa parte dela não tenha mudado. Mas como cavaleira, talvez precisasse ser um pouquinho mais centrada...

— Ah, lembrei! Que tal ir junto comigo depois do treino hoje?! — perguntou Kewlny, empolgada.

— Hm? Você conhece algum lugar? — Allusia já tinha me apresentado ao ferreiro recomendado pela ordem, mas devia ter outros por aqui.

— O Sr. Baldur!

— Baldur...? Você tá falando daquele Baldur?

— Isso mesmo!

Hmm. Não ouvia esse nome fazia um tempo. Nunca imaginei que ele realmente abriria uma forja. Como o tempo voa... Agora até eu comecei a ficar empolgado.

— Parece promissor — falei. — Vamos lá depois do treino, então.

— Fechado!

Bom, já tinha papo demais — tanto eu quanto a Kewlny precisávamos focar no treino. Um espadachim só evolui com esforço constante. Bom, acho que isso vale pra qualquer arte, na real.

O salão de treino da Ordem de Liberion raramente ficava vazio — sempre tinha um bom número de cavaleiros por ali praticando. A ordem não tinha um cronograma fixo de treinos, então cada cavaleiro aparecia quando podia e quando tava com vontade. Claro que, mais pro fim do dia, o número diminuía. Os cavaleiros preferiam o comecinho da manhã ou o começo da noite. Meu horário como instrutor também não era fixo, então eu aparecia de forma meio aleatória, quando dava. No máximo, eu garantia que estaria por lá durante a manhã e um pouco depois do almoço.

Allusia tinha comentado que, desde que cheguei, mais cavaleiros começaram a aparecer para os treinos diários. Isso me deixava muito feliz como instrutor. Cavaleiros são sérios e honestos, e alguém que se dedica a brandir sua espada com certeza melhora com o tempo. Quanto ao que eu fazia exatamente... Bom, observava o estilo dos cavaleiros, dava conselhos, participava de combates simulados e outras coisas de instrutor. Isso aqui não era o dojo, então não tínhamos aquele lance de reunir todo mundo pra praticar os movimentos básicos. Os cavaleiros não eram violentos por natureza, mas como buscavam mais força, a maioria preferia orientações práticas, como lutas simuladas. Era uma experiência nova. E eles realmente ouviam tudo o que eu dizia, então quase não tive problemas até agora.

— Muito bem! Vamos nessa, Mestre!

— Sim, sim, depois que a gente se trocar.

Tendo terminado sua rotina diária de treinamento, Kewlny mais uma vez puxou conversa comigo, completamente encharcada de suor. Ela realmente suava bastante... Bom, ter energia era uma coisa boa. Como tínhamos conversado de manhã, eu planejava visitar o ferreiro da Kewlny depois do treino. No começo, não tinha grandes expectativas com a sugestão dela, mas assim que descobri que se tratava do Baldur, minhas expectativas dispararam.

— Mestre, posso ir junto também?

— Allusia? Claro. Não tenho motivo pra dizer não.

Allusia também estava treinando os cavaleiros e brilhava de suor, assim como eu. Mais uma pessoa suada entrando na conversa... Não me importava com ela indo junto, mas... tinha algum propósito? Não conseguia pensar em nenhum. Mas também não ia admitir isso.

— Quando se trata de escolher sua espada — disse Allusia —, é natural verificar se o ferreiro tem habilidade pra forjar uma lâmina da mais alta qualidade possível.

— Tá, tá — falei. — Se acalma, beleza?

Lá vinha o lado exagerado da Allusia. Vamos relaxar um pouco, né? Allusia vinha usando a espada de despedida que eu dei pra ela esse tempo todo. Existiam incontáveis espadas melhores por aí, mas ela se recusava teimosamente a trocar. Provavelmente tinha algum apego por armas, e considerando que era a comandante dos cavaleiros, eu até preferia que ela carregasse uma lâmina melhor e mais apresentável. Talvez fosse só aquele impulso de “pai coruja”, mas se tivesse a chance, queria que a Allusia escolhesse uma espada nova também... embora provavelmente isso fosse só desperdício de energia da minha parte.

— Certo, então. Vamos nos encontrar na frente do escritório depois que todo mundo trocar de roupa — falei.

— Entendido.

— Certinho!

Então, agora a visita ao ferreiro da Kewlny seria em trio. Era só pra escolher uma espada pra mim, mas esse grupo me deixava mais inquieto do que o normal. Preciso me acostumar com as pessoas me encarando. Que saco.

— Obrigada por esperar.

— Valeu por esperar!

Como era de se esperar, um homem como eu troco de roupa bem antes das duas. Esperei um pouco na frente do escritório até que Allusia e Kewlny apareceram. Kewlny, como sempre, usava uma roupa casual, prática pra se movimentar. Allusia, apesar de não estar com nada chamativo, usava algo que realçava bem as curvas do corpo. Ela não se sentia envergonhada? Bom, se ela tava de boa com isso, não era da minha conta. Kewlny carregava uma lâmina menor que a minha antiga ou a da Allusia. Provavelmente era a espada curta que precisava ser afiada. A arma combinava bem com o corpo pequeno dela.

— Vamos nessa? — perguntei. — Deixo a navegação com você.

— Beleza! A oficina do Sr. Baldur fica no distrito central.

Eu não conhecia o caminho, então Kewlny foi na frente. Caminhamos por um tempo até que Allusia se virou pra mim.

— Mestre, imagino que vá escolher uma espada longa de novo?

— É, esse é o plano.

Eu já estava bem acostumado com o peso e o comprimento de uma espada longa, então nem cogitei trocar de arma depois de tantos anos. Francamente, seria bem difícil me adaptar a uma nova nessa idade. Minha falta de força explosiva ficou evidente na batalha contra o Zeno Grable, mas nem era pra eu estar enfrentando um monstro daqueles em primeiro lugar — aquilo foi totalmente fora da curva, e espero nunca mais ser jogado num barril de pólvora daquele jeito. Bom, enquanto eu continuar sendo o instrutor especial da ordem, não devo cair em situações assim.

Continuamos caminhando pelo distrito central, que era diferente da bagunça do distrito oeste, mas ainda tinha uma certa energia no ar. Vi muito mais gente usando roupas engomadinhas. Muitas organizações importantes do país tinham sede em Baltrain, como a Ordem de Liberion e a guilda dos aventureiros, então provavelmente esse pessoal fazia parte de alguma dessas instituições. Tecnicamente, a guilda não era subordinada a nenhum país, mas estava enraizada no mundo inteiro. Todos os países dependiam dela, especialmente pra manter a ordem pública, embora o grau de dependência variasse.

Agora que pensei nisso, fiquei curioso sobre onde ficava o instituto de magia. Não que eu tivesse algo pra resolver lá, mas queria dar umas boas broncas na cara da Lucy. Se sobrar tempo depois, vou procurar e fazer uma visita.

— Chegamos! É bem ali!

— Hmm.

Depois de andar um pouco mais, paramos em frente a uma casa comum que tinha sido reformada pra virar uma forja. A placa grande pendurada na porta tinha o nome da loja — Forja do Baldur. Simples e direto ao ponto. Kewlny abriu a porta com empolgação e nós três entramos.

— Senhor Baldur! — gritou Kewlny.

— Oooh! Se...jam be... Kewlny?

— Mrgh! Que saudação mais rude foi essa?! Eu sou uma cliente, tá?!

— Gah ha ha! Foi mal! Foi mal!

Um homem meio velho, mas com músculos firmes, apareceu dos fundos pra nos receber. Sua voz era seca e madura. O cabelo curto prateado e a barba bem aparada davam um ar elegante. Os bíceps volumosos apareciam sob as mangas curtas, e o peitoral se destacava claramente, mesmo sob a roupa. O corpo grande do cara definitivamente não combinava com a idade... de um jeito bom, claro. Ele era mais velho que eu, mas mais novo que meu pai.

— Ah, vejo que veio com a Lady Sitrus, e... Oooh?!

Depois de dar uma olhada na Kewlny e na Allusia, os olhos dele pararam em mim.

— Quanto tempo, Baldur.

— Se não é o Mestre Beryl! Faz tempo mesmo! — O choque e a alegria eram evidentes na voz e no rosto dele. — Quantos anos se passaram? Como tem se saído?

— Estou me virando — respondi. — Bom ver que está com saúde, Baldur.

—É. Dá pra ver só de olhar pra esse corpo! —exclamou ele, flexionando os bíceps.

Ele realmente estava com saúde. Parecia que doenças e ferimentos eram conceitos totalmente alheios pra ele.

Allusia pareceu um pouco surpresa com a nossa troca de palavras. —Mestre, vocês se conhecem?

Uma pergunta perfeitamente razoável do ponto de vista dela. Allusia e Baldur não haviam treinado no dojo na mesma época, então fazia sentido ela não saber.

—É. Pode parecer surpreendente, mas ele também é um dos meus ex-alunos.

Baldur Gasp—eu me lembrava muito bem dele. Afinal, entre todos os alunos que eu já tinha treinado, ele tinha sido o único mais velho que eu. Ele frequentou nosso dojo na mesma época que Kewlny e Ficelle, por isso Kewlny era tão próxima dele. Veio depois de Allusia, então não o conheceu.

Aliás, em Beaden, o dojo era bem conhecido, então ter treinado lá era um ponto em comum entre as pessoas. Já em Baltrain, quase ninguém conhecia o dojo, então falar sobre ele não fazia muita diferença pra ninguém.

Voltando ao Baldur. Ele treinou no nosso dojo por pouco mais de um ano. O objetivo dele nunca foi aperfeiçoar a técnica com a espada, então ele não ficou muito tempo. Ele bateu à nossa porta querendo entender como era a sensação de empunhar uma espada—segundo ele, isso o ajudaria em sua jornada pra se tornar ferreiro. Ele era mais velho que eu, mas ainda assim cheio de curiosidade e uma sede de conhecimento insaciável. Isso me deixou bem impressionado.

Foi por isso que ele treinou com a espada—não pra aprender técnicas, mas pra entender o que fazia um espadachim escolher determinada lâmina. Pra ser honesto, eu passei mais tempo dando palestras pra ele sobre os fatores que fazem uma arma ser adequada pra um espadachim. Ele pagava a mensalidade, então eu não tinha do que reclamar. Ainda assim, a imagem dele parado num canto do dojo, só observando os outros alunos empolgados balançando suas espadas sem parar, ainda estava bem vívida na minha mente. Baldur foi o único que fez isso. Embora, claro, ele também tenha participado dos treinos.

—Você montou mesmo sua própria loja —disse eu. —Parabéns.

—É, valeu. Foi um caminho bem difícil.

Baldur olhou orgulhoso ao redor da loja. Era relativamente pequena, mas tinha um visual bem legal. Por causa da minha profissão, eu devia muito aos ferreiros, então era capaz de reconhecer quando alguém estava fazendo um bom trabalho. As paredes apertadas da loja do Baldur estavam cheias de armas, e, só de olhar, dava pra ver que todas estavam muito bem cuidadas. Dava pra imaginar o quão afiadas estavam. Aquilo me deu uma boa ideia do nível de habilidade dele.

—Então? —Baldur se virou pra gente. —Imagino que vieram aqui porque precisam de alguma coisa.

—Isso mesmo! Afiação pra mim! —Kewlny respondeu sem nem pensar.

Podíamos deixar minha espada pra depois. Eu tava basicamente só acompanhando mesmo.

Baldur assentiu. —Vamos dar uma olhadinha.

—Toma aqui.

Kewlny tirou a espada curta da cintura e entregou pra Baldur. Ele puxou a lâmina da bainha e ficou encarando o fio por um tempo.

—Kewlny... Você tá falando sério? —Baldur suspirou. —Compra uma nova.

—Waaaah?! Por quê?!

Tudo tem um tempo de vida útil, até armas e armaduras. Assim como minha espada longa chegou ao fim de forma repentina, um dia qualquer lâmina se torna inutilizável (embora seja bem raro uma espada quebrar tão limpo quanto a minha quebrou). A morte da minha espada foi um acidente, nada além disso—ninguém teria como prever aquilo. Mas, salvo circunstâncias estranhas, um ferreiro consegue avaliar bem a vida útil de uma arma.

—A espada dela quebrou ou algo assim? —perguntei.

—Hmm, não exatamente —respondeu Baldur. —Vários lascados ao longo do fio de corte são fundos demais. A afiação não vai resolver.

—Ah, entendi.

Era menos um problema de vida útil e mais uma questão de técnica da usuária. Bem, isso é bem comum. Armas não são versáteis ao ponto de aguentarem qualquer coisa, e existe uma forma correta de usar cada tipo. Pra dar um exemplo extremo: bater com o lado chato da lâmina no inimigo nunca vai cortá-lo, por mais afiada que a espada seja—essa técnica impede que a lâmina funcione direito e acaba tornando a arma inútil.

Se forem usadas corretamente, ferramentas—especialmente armas—podem durar bastante tempo. Espadas foram feitas pra combate, então são bem resistentes. Há três motivos principais pra uma lâmina ficar toda lascada assim: ou a espada tá no fim da vida útil, ou alguém tentou cortar algo que não devia, ou o espadachim não tem técnica compatível com a arma.

—Kewlny, você tentou cortar algo esquisito? —perguntei.

—Por que você pensaria isso?! —ela rebateu. —Eu só usei pra treino e combate!

Treino e combate, hein? Nenhuma das opções excluía a possibilidade de ela ter tentado cortar alguma coisa bizarra, mas decidi deixar o assunto de lado por enquanto.

—Eu já observei sua técnica com a espada —comentou Allusia. —Não acredito que ela tenha usado de forma tão descuidada.

—Hmm...

Bem, Kewlny estudou no nosso dojo—ela não era do tipo que agiria de forma imprudente. Eu também observei os treinos dela, e não vi nenhum momento em que ela tentasse vencer na base da força bruta. No geral, concluí que o dano à espada devia ter outra causa.

—Você fala isso, mas, Kewlny, normalmente a lâmina não fica assim —insistiu Baldur. —Como você tem usado essa espada?

—Normalmente! Super normalmente!

—Calma, calma.

Tentei acalmar Kewlny, já que ela parecia prestes a explodir. A gente não veio aqui pra implicar com ela, e também não ia chegar a lugar nenhum procurando defeito. Hmm. Considerando o porte físico dela, é difícil imaginar, mas talvez...

—Kewlny, como é que você se sente usando uma espada curta? —perguntei.

—Huh? —ela congelou por um momento, sem saber como reagir. —Como me sinto...? É... levinha, eu acho?

—É isso aí —Baldur e eu dissemos em uníssono.

—Hããã? O-O que vocês querem dizer com isso? —perguntou Kewlny.

—Uma conclusão simples —respondi. —Espadas curtas não combinam com você.

Isso fazia total sentido. O óbvio era que cada pessoa tinha um tipo de arma com o qual se dava melhor. E claro, existiam vários tipos além de espadas. Soava simples encontrar uma arma que combinasse com o estilo de alguém, mas na prática era bem complicado. E isso era uma questão totalmente diferente de mandar fazer uma arma sob medida. Pra resumir, mandar fazer algo personalizado significava pegar um tipo específico de arma e adaptá-lo ao corpo e técnica da pessoa. Mas antes disso, era preciso descobrir qual tipo de arma era o ideal — seria inútil alguém que manja de lanças mandar fazer uma espada sob medida. Kewlny não era tão forte assim na época do nosso dojo, então deve ter evoluído bastante depois de entrar na ordem.

—Se você nem sente o peso da arma, não tem como conseguir usá-la direito, né? —Baldur suspirou, cruzando os braços. —Acho que é por isso que você tem se sentido meio travada ultimamente.

Assenti com a cabeça.

—É. Tô pensando a mesma coisa.

—Hrmm...

Era exagero nenhum dizer que o Baldur tinha vindo pro meu dojo justamente pra dar conselhos como esse. Nesse sentido, parecia que o tempo dele tinha sido bem aproveitado. Enfim, o lance da Kewlny estar se sentindo travada era outra história, mas pelo jeito que ela reagiu, não dava pra dizer que ele estava totalmente errado. As armas só funcionam mesmo quando você sente um peso razoável, que dá um tipo de retorno. Claro, se for pesada demais também não rola. Cada pessoa tem um peso e equilíbrio ideal pra si. No meu caso, uma espada longa era perfeita. No da Kewlny, definitivamente espada curta não era o caminho.

—Baldur, posso dar uma olhada nas suas espadas?

—Claro, fique à vontade.

Fui olhando as armas penduradas na parede, procurando algo que combinasse com a Kewlny. Se espada curta era leve demais, provavelmente o mesmo valeria pra uma longa. Apesar dos nomes —“curta” e “longa”— essas lâminas nem eram tão diferentes assim em tamanho. Pensando só em peso, uma lança ou machado poderiam ser opções, mas os movimentos da Kewlny tinham sido moldados para lutas com espada. Eu não descartava a possibilidade de um talento oculto nela, mas seria difícil explorar isso agora. E pra ser sincero, eu mesmo só sabia lutar com espada. Além disso, espadas são o básico de um cavaleiro... provavelmente.

Fui eliminando opções na minha cabeça uma por uma. Até que meus olhos bateram em uma espada. Peguei ela.

—Oh, que tal essa?

—Hã? Sério mesmo? —Kewlny perguntou, surpresa com a escolha.

—Só experimenta segurar, por enquanto.

—Uhh... Tá bom.

Era grande. Bem grande. E o que mais chamava atenção era o ricasso sem fio logo acima do punho. Era uma espada de duas mãos, comumente chamada de zweihander. Eficiência, estilo e compatibilidade não se descobrem sem testar, e a Kewlny tinha bastante força física, apesar do corpo pequeno — então era possível que esse tipo de arma combinasse com ela.

—Hup... Tipo assim? —Kewlny perguntou meio insegura, segurando a zweihander em posição de combate.

—É. Não parece ruim —comentei.

No dojo, a gente só usava espadas de madeira de uma mão. A Kewlny ainda usava uma espada curta, então o gosto dela devia ter se formado naquela época de treino. Por isso, entendi a surpresa dela ao receber de cara uma recomendação dessas.

—E aí, o que achou?

Não queria forçar nada. No máximo, meu objetivo era ajudar a achar uma arma que servisse pra ela, então se essa não servisse, era só continuar procurando.

—Hmm... Não é leve, mas também não tá exatamente pesada —respondeu.

—Hm. Isso é bom.

Era impressionante conseguir segurar uma espada de duas mãos e dizer que ela não era pesada. Quando foi que a Kewlny virou esse tipo bombadinha? Pra falar a verdade, talvez até fizesse mais sentido ela usar uma alabarda ou um machado de haste longa — e isso era um pensamento meio assustador. Vendo ela assim, a espada curta provavelmente não pesava mais que um galho pra ela. Isso explicava por que ela não estava conseguindo usá-la direito.

—Esse, tipo... ricasso? Acho que é isso? Ele chama bastante atenção —Kewlny mexeu as mãos no punho, testando diferentes pegadas.

—É. O jeito de usar essa parte é um pouco diferente das espadas comuns de duas mãos.

Diferente das espadas normais, a zweihander tinha um trecho sem fio perto do cabo chamado ricasso. Usando ele como ponto de apoio, dava até pra manejar a espada como se fosse uma alabarda. No geral, a zweihander oferecia uma gama maior de aplicações táticas que uma espada comum.

—Combina com você e tudo mais, mas se quiser ficar com ela, vai ter que pagar —Baldur disse, sendo bem direto.

Ele não podia sair distribuindo armas de graça. Afinal, como ferreiro, essa era a profissão dele, sem dúvidas. Fiquei imaginando quanto custaria aquela espada. Recomendei a zweihander na maior tranquilidade, mas pelo clima que se instalou no lugar, parecia que a Kewlny já tinha decidido. Será que tava tudo certo mesmo? Talvez eu devesse ter pensado um pouco mais antes de sugerir.

—Ah, verdade. Quanto custa? —Kewlny perguntou.

—Vamos ver... —Baldur pensou um pouco. —Te dou um desconto — oitenta mil dalcs. É o mínimo que posso fazer.

—Mrgh... Não tenho tudo isso comigo —Kewlny respondeu, fazendo uma careta.

O dalc era a moeda local de Liberis. Dependia bastante de onde e de como você vivia, mas cem mil dalcs por mês já davam pra ter uma vida confortável em Beaden. Oitenta mil dalcs... Considerando o tipo de arma e a qualidade, até que estava barato. Mas a Kewlny só tinha vindo aqui pra afiar a espada. Provavelmente estava sendo sincera quando disse que não tinha dinheiro o suficiente com ela. De qualquer forma, era uma quantia considerável pra gastar de uma vez. Ainda assim, era um bom preço por uma arma novinha. Com certeza tinha desconto.

Aliás, eu estava pagando três mil dalcs por noite na estalagem onde estava hospedado. Como eu tinha reservado por um longo período, esse valor aparentemente já era um baita desconto também. Talvez eu devesse só alugar uma casa. Preciso pensar nisso com calma.

— Ah, beleza. Espera aqui um pouquinho.

No instante em que ouviu que a Kewlny não tinha grana suficiente, o Baldur desapareceu nos fundos da forja. Voltou um momento depois segurando um zweihander com uma lâmina um pouco mais curta.

— Pode levar esse aqui por vinte mil.

— Hã?! Sério?!

— Isso tá bem barato mesmo — comentei, analisando o zweihander com atenção. Aparentemente não tinha nenhum defeito. Nada de lascas visíveis, e a lâmina parecia bem afiada. — Por que vender tão barato? — Por mais que eu olhasse, essa espada valia mais que vinte mil.

— Ah, fiz essa há um tempo só pra testar umas coisas — explicou Baldur. — Tipo um protótipo. A lâmina é meio curta, né? Mas tá só pegando poeira lá nos fundos. Se a Kewlny for usar mesmo, vendo baratinho.

— Entendi.

Era uma situação rara, mas que acontecia. Todo artesão buscava aprimorar suas habilidades. Propaganda e tudo mais ajudavam a atrair clientes, mas o faturamento de um ferreiro dependia, acima de tudo, do quanto ele era bom. Então, depois de forjarem vários tipos de armas pra treinar, acabavam com peças curiosas — itens bons, mas que o ferreiro ficava com pena de vender. Se fosse de qualidade ruim, eles destruíam sem dó. Mas se era bem-feito, entrava numa espécie de limbo. Eu já tinha recebido umas espadas assim do ferreiro de Beaden.

— A lâmina ser mais curta pode até ajudar — comentei. — A Kewlny é bem baixinha.

Era uma espada barata, de qualidade decente — uma combinação perfeita pra quem queria testar um tipo novo de arma. E ainda por cima, o fato da lâmina ser mais curta que a de um zweihander normal era uma vantagem. A Kewlny era pequena, então ia ser complicado manusear uma lâmina muito longa.

— Fechado! Eu vou levar! — decidiu Kewlny.

— Tranquilo. Valeu pela compra.

E assim, sem pensar muito, a Kewlny escolheu o zweihander como nova arma. Fui eu que recomendei, mas será que fiz certo? Fiquei um pouco preocupado.

— Ah, a propósito, Allusia?

— Sim? O que foi?

De repente, me dei conta de algo e me virei pra Allusia. Ela estava observando as espadas na parede. Aparentemente, realmente tinha interesse por lâminas. Se ao menos comprasse logo uma substituta...

— Hm, usar um zweihander na ordem é de boa? — perguntei. — O pessoal não usa sempre espada longa?

A Allusia usava espada longa, e pelo jeito de lutar do Henbrit, ele também era especialista nisso. Praticamente todos os outros cavaleiros treinavam com espadas de madeira padrão. Ou seja, davam preferência pra espada longa. Ia parecer meio estranho ter alguém usando um zweihander no meio deles.

— Não há nenhuma restrição específica quanto a isso — explicou Allusia. — Cada cavaleiro recebe uma espada longa ao entrar na ordem, mas é mais simbólico do que outra coisa.

— Entendi... — Parece que não era problema, ainda bem.

Mas... pera aí, Allusia. Se a ordem te deu uma espada, por que não usa ela em vez da velha do dojo? Será que posso perguntar isso? Melhor não? Vai ver a espada da ordem não era feita pra combate, só pra cerimônias ou eventos especiais.

— Mestre, mestre! — chamou Kewlny toda feliz, recebendo o zweihander embainhado do Baldur.

— Hm? Que foi?

— Essa é minha primeira vez usando uma espada de duas mãos. Você pode, tipo, me ensinar um monte de coisas?

— Claro. Vou te ensinar o básico. — Deixar ela por conta própria só com o zweihander não ia dar certo mesmo.

— Foi mal, mas aqui não tem espaço pra isso — disse Baldur.

Ah, então ele não tinha espaço pra treinar ali. Era o distrito central, afinal — o preço dos terrenos era altíssimo. Ter espaço pra manusear um zweihander significava pagar bem mais caro.

— Então vamos usar o salão de treinamento da ordem — sugeri.

— Fechado! Vou contar com você!

Tinha surpreendentemente poucos lugares em Baltrain onde dava pra brandir uma espada livremente. O salão de treinamento da ordem e o da guilda dos aventureiros eram os únicos que eu conhecia. Não dava pra sair balançando espada na rua, né?

Fui eu que recomendei uma espada de duas mãos, mas nem dominava tanto assim uma. Meu conhecimento com espada longa até ajudava no uso geral, mas mesmo assim...

— Espere um pouco, Mestre.

O negócio da Kewlny ali já tinha terminado, então eu estava pronto pra ir até o salão de treinamento e ensinar o básico pra ela, mas a Allusia me interrompeu de repente.

— Você ainda não escolheu uma espada pra você — disse ela.

— Ah, é mesmo.

Tinha esquecido completamente. Valeu, Allusia.

— Hmm? Uma espada pro Mestre Beryl? — perguntou Baldur. As orelhas se animaram, e eu não deixei passar o brilho suspeito nos olhos dele.

Para com isso! Eu só quero uma espada normal!

O olhar afiado do Baldur se fixou no espaço vazio na minha cintura. — Ah, é. Tô vendo que você tá sem uma.

— Aaah, aconteceu umas coisas. A minha quebrou. — Não tinha por que mentir. Tinha quebrado mesmo. Não que eu esperasse que isso fosse acontecer.

— Duvido que tenha usado errado nem nada — disse Baldur. — Teve um acidente?

— Algo assim.

Baldur soltou uma risada calorosa.

Ei, foi um acidente de verdade! Como mais você descreveria enfiar uma espada na boca de um monstro nomeado e ver um aventureiro de rank negro fatiar a lâmina junto com a cabeça do bicho?

— Enfim, uma espada longa, né? — perguntou Baldur. — Tenho várias aqui, mas não faria mais sentido mandar fazer uma sob medida?

Lá vem você com a mesma ladainha do Kewlny! Eu tô de boa com uma espada comum!

— Bom, não tô exatamente nadando em dinheiro — falei. — Posso comprar uma direto da prateleira, sem problemas.

Não era mentira, embora eu admitisse — a ideia de uma espada feita sob encomenda era tentadora. Qualquer espadachim sonha em ter uma dessas pelo menos uma vez na vida. Mas eu não sabia se tinha habilidade suficiente pra justificar algo assim. Também não tinha grana nem tempo sobrando pra investir. Bom... tempo talvez até tivesse.

Baldur assentiu.

— Se é o que você quer, não vou insistir. Mas ainda assim...

Hora de mudar um pouco o rumo da conversa.

— Sinceramente, acho que quem precisa mais de uma espada feita sob medida é a Allusia.

Eu até achava legal ela ainda estar usando a espada que deixei com ela como despedida, mas a real é que era só uma lâmina mediana forjada no meio do mato. Difícil dizer que era digna da comandante dos cavaleiros da Ordem de Liberion. Não dei algo inútil, mas considerando o nível e o status dela, essa teimosia me incomodava.

— Não, já tenho minha espada — insistiu Allusia.

Baldur olhou pra ela sem expressão.

— Se ela diz...

Aí é que tava o problema. A Allusia costumava escutar tudo o que eu dizia, mas nesse ponto específico ela simplesmente se recusava a ceder. O que será que fazia ela agir assim? Eu não conseguia entender.

Baldur deu de ombros.

— Bom, não adianta tentar convencer quem já tá com a decisão tomada. Vem, tenho várias espadas longas. Pode escolher a que quiser.

— Beleza, valeu.

O motivo pelo qual eu não queria uma lâmina sob medida era diferente do motivo da Allusia não querer largar a espada de despedida, mas tínhamos algo em comum: ninguém ia nos fazer mudar de ideia. Sabendo disso, só me restava desistir de convencê-la.

Mudei o foco e comecei a olhar as espadas longas penduradas nas paredes da loja do Baldur. Tinham várias, mas pareciam bem parecidas entre si. A maioria das lâminas tinha entre oitenta e cem centímetros de comprimento. A espessura era mais fina do que as espadas largas da Selna. Todas tinham mais ou menos o mesmo peso — um peso com o qual eu já estava bem acostumado.

— Hmmm.

Peguei uma por uma pra examinar. Nenhuma era ruim. Todas estavam afiadas e bem equilibradas. Em termos de espadas longas padrão, não tinha do que reclamar. Minha intuição dizia que não perdiam em nada pras que vi no fornecedor oficial da Ordem.

— São boas — murmurei. — Todas têm um corte excelente.

— Claro, né? Eu vivo disso.

Hmm. Tô achando que qualquer uma dessas serve. Todas foram feitas com qualidade em mente, e são parecidas — no bom sentido. Claro, até tenho interesse em outros tipos de arma além da espada longa, mas depois de tantos anos treinando com esse estilo, não era agora que eu ia mudar.

— Tem alguma que você recomenda? — perguntei ao Baldur.

— Difícil dizer... Todas essas espadas longas são praticamente iguais.

A resposta era bem o que eu esperava. A principal vantagem da espada longa era a versatilidade, servia pra várias situações — a mesma lógica das espadas curtas. Armas com especialidades específicas costumam ter nomes diferentes. Em outras palavras, espadas longas são totalmente... medianas.

— Se tá com tanta dificuldade pra escolher uma, por que não manda fazer uma sob medida? — Kewlny se meteu na conversa.

A nova espada dela, uma zweihander, era grande demais pra usar na cintura, então ela carregava nas costas com uma alça. A combinação da estatura baixinha dela com aquela espadona até que era estilosa. Ainda não dava pra saber se ela ia conseguir usar direito, mas aparência também conta pra um cavaleiro. Claro que não fazia ideia se a Ordem ia aceitar ela empunhando aquilo.

— Nem pensei muito nisso... — murmurei. — Hm, talvez eu ainda esteja preso à minha espada antiga.

A minha querida espada quebrada nunca foi uma obra-prima, mas serviu bem durante muito tempo, e eu acabei me acostumando com ela. Talvez ainda tivesse um apego inconsciente.

— A gente cria vínculo com a arma que usa por anos — concordou Allusia.

Era exatamente isso, mas vindo dela, a frase carregava um peso diferente. Seria bom se fosse só impressão minha, mas no fundo eu sabia que era verdade. Nunca dá pra ter a mesma arma duas vezes. Mesmo com os mesmos materiais e técnicas de forja, sempre sai diferente. Às vezes, dá pra notar de cara. Outras, só dá pra perceber quando começa a usar de verdade. Minha espada antiga, como a da Allusia, era uma arma comum forjada em Beaden, mas eu a usei por tanto tempo... Suas peculiaridades deviam ter se enraizado em mim, mesmo que eu não percebesse até agora.

— Bom, o destino também tem um papel na hora da escolha — disse Baldur. — Se não for um incômodo tão grande ficar sem espada por um tempo, não precisa comprar nada hoje.

Baldur era um ferreiro — um artesão por natureza, um espadachim por treinamento, mas não exatamente um vendedor. Por isso, não forçava ninguém a comprar. Eu agradecia por isso.

— É...

Eu não conseguia ignorar o quão inquieto me sentia sem uma espada, mas também não sabia se deveria comprar uma agora. Apesar de ser exigente, não era a ponto de querer algo feito sob medida. As espadas do Baldur não eram ruins — só não ressoavam comigo por algum motivo. Não dava nem pra explicar isso de forma lógica.

— Ah, é mesmo. — Os olhos do Baldur brilharam. — Se algum dia você for atacar uma masmorra ou algo assim, me traga os materiais. Eu compro de você. E se quiser, posso forjar uma espada com eles.

— Ha ha ha. Se isso acontecer, pode deixar.

Por que todo mundo achava que eu queria ir atacar masmorras? Baldur não sabia que eu tinha ido à Floresta de Azlaymia. A Allusia provavelmente sabia, mas não era exatamente algo pra sair espalhando por aí. Mesmo assim, o assunto continuava surgindo. Por quê? Por que todo mundo acha lógico que eu vá em expedições a masmorras? Eu sou só um velhote comum que quer viver em paz.

Enquanto eu continuava olhando as espadas, ainda incapaz de escolher uma, a porta da loja se abriu.

— Com licença — disse uma voz vinda da entrada. — Baldur, está aí? Ah, Mestre... e Sitrus.

— Que cara é essa? — reclamou Allusia. — Bom, acho que a gente tem se esbarrado bastante ultimamente.

Baldur se virou para a porta.

— Oh? Se não é a Selna. Que foi? Tenho quase certeza de que afiei suas espadas largas outro dia.

Era a aventureira de ranking negro, Selna. Pelo visto, nos encontrarmos aqui foi só coincidência mesmo — ela realmente tinha vindo tratar de negócios com o Baldur. De qualquer forma, a gente vinha se esbarrando direto. Mesmo quando os aventureiros estavam hospedados em Beaden, eu mal via algum por aí, mas desde que vim pra capital, isso acontecia direto.

— Sim, você afiou. Mas hoje não vim por isso. — Selna assentiu e largou alguns itens no balcão com um baque. — Estes são materiais do monstro nomeado Zeno Grable. Quero que você use eles pra forjar uma espada longa.

— Um monstro nomeado? Quando foi que você conseguiu um troféu desses? — murmurou Baldur enquanto examinava as garras, peles, ossos e outras partes.

— Foi outro dia — respondeu Selna com orgulho. — Os materiais finalmente foram todos reunidos.

Baldur pegou uma peça, deu um peteleco nela, e então, talvez achando que não era suficiente, puxou um martelinho e começou a bater levemente.

— Hmm... É bem resistente, hein.

Zeno Grable era realmente duro na queda. Tinha sido um sacrifício só pra eu conseguir arranhar o couro dele, então suas garras e ossos com certeza eram fortes também.

Depois de examinar tudo, Baldur fez a pergunta óbvia que todos estávamos pensando:

— Selna, por que você quer uma espada longa?

Tive um mau pressentimento. Bem, dizer assim era meio rude. De todo modo, imaginei que fosse isso mesmo, mas me calei, torcendo pra estar errado.

— Estava pensando em dar ela pro Mestre Beryl — respondeu Selna. — E já que ele tá aqui, facilita tudo.

Exatamente o que eu esperava.

— Selna — falei. — Tenho quase certeza de que já recusei.

Apesar da minha recusa, eu estava mesmo agradecido. Eu estava sem arma no momento, e nem conseguia fingir desinteresse por uma lâmina feita com materiais de um monstro nomeado. Sinceramente, parecia algo bem empolgante.

No entanto...

Foi a Selna quem derrotou o Zeno Grable, e toda a expedição estava sob responsabilidade da guilda — eu não queria ser o velhote que se meteu no meio e saiu com os espólios. Além disso, como já mencionei antes, não queria ficar devendo nada à guilda dos aventureiros.

— Mas, Mestre, esse material é de altíssima qualidade — disse Baldur, dando sua opinião sem rodeios. — O resultado vai depender da minha habilidade, mas sinto que dá pra fazer algo incrível. Já que ela tá oferecendo, por que não aceita logo?

— Hm? “Mestre”? — Selna inclinou a cabeça. — Você também treinou lá, Baldur?

Ah, certo. Ainda não tínhamos explicado como eu conhecia o Baldur. Não era algo que muita gente sabia. Apesar de ela e Baldur terem treinado no mesmo dojô, eles eram tipos bem diferentes de alunos. Pra falar a verdade, a Selna nunca teve muito o jeito dos outros. Eu a ensinei a usar espada, mas naquela época, nosso relacionamento era diferente do de instrutor e discípula. Por isso que, até hoje, não consigo evitar olhar pra ela com olhos de um guardião.

— É, o Baldur também treinou no nosso dojô — respondi. — Mas ele ficou só um pouco mais de um ano.

— É mesmo? — perguntou Selna, parecendo um pouco surpresa, mas logo entendeu. — Isso explica o faro de espadachim mesmo sendo ferreiro.

— Bom, foi justamente por isso que entrei no dojô — disse Baldur.

Era como ele disse — esse tinha sido o motivo de ele vir pra Beaden. Ele é um velho meio excêntrico. Aposto que havia dezenas de dojôs por aí, então por que escolher logo um no interior? Bem, enquanto ele não se arrependesse da escolha, isso pouco importava.

— Mestre, permita-me corrigir um ponto — disse Selna. — A guilda dos aventureiros não tem mais relação com isso.

— Como assim? — perguntei.

Selna sabia que eu estava relutante em aceitar uma espada feita sob medida. Então, se ela ainda insistia em me arranjar uma arma feita com os materiais do Zeno Grable, significava que tinha um jeito de resolver minhas preocupações.

— Esses itens são meus pertences pessoais — explicou. — Eles foram parte da minha recompensa por eliminar o alvo. Além disso, você não recebeu um centavo pela derrota do Zeno Grable.

— Foi você quem matou ele — retruquei. — Não tenho direito de aceitar recompensa alguma.

— Não é bem assim. Mesmo que o grupo tenha sido temporário, todos da expedição devem ser recompensados. Porta e os outros também receberam a parte deles.

— Hmm...

Saber disso tornava mais difícil recusar. Eu tinha ouvido dizer que a eliminação de um monstro nomeado vinha acompanhada de uma recompensa. Mas como o mundo dos aventureiros era algo tão distante da minha antiga vida rural, nunca soube muito além disso. Se aqueles três novatos tinham aceitado dinheiro, então não havia motivo para eu recusar. Eu não entendia completamente como funcionava, mas sabia de uma coisa: eu não tinha intenção de aceitar nenhum dinheiro da guilda.

Selna parecia já esperar esse meu pensamento.

— Mesmo que você queira ignorar a recompensa em dinheiro... bom, eu quebrei sua espada, e queria me redimir com você. Só isso.

— Quando você coloca dessa forma... — Eu já tinha dito que ela não precisava se preocupar com a minha espada, mas aquilo claramente estava pesando na consciência dela.

— A essa altura — disse Baldur —, seria até falta de educação você não aceitar.

— É...

Ele tinha razão. Se isso não tinha relação com uma recompensa da guilda e sim com um presente pessoal da Selna, então não devia me incomodar, certo? Mas incomodava. Não havia motivo para a Selna usar esses materiais valiosos comigo. Ainda assim, objetivamente falando, ela tinha quebrado minha espada. Seria grosseiro continuar recusando a chance dela de consertar isso? Eu não entendia muito bem essas sutilezas emocionais. Talvez fosse um efeito colateral de ter passado tempo demais isolado numa vila no fim do mundo.

— Hmm, bom... — Pensei mais uma vez. — Se você faz tanta questão, então acho que posso aceitar. Agradeço.

Selna assentiu com força.

— Sim! Eu faço questão! Por favor, aceite!

Minha preocupação principal era evitar me envolver com a guilda dos aventureiros mais do que o necessário. Se eu não precisava me preocupar com isso, então aceitar a oferta dela não parecia tão ruim. E eu realmente estava precisando de uma nova espada.

— Uma espada para o Mestre Beryl! — Baldur bradou, encarando os materiais. — Já tô me coçando pra começar!


Bem, as armas dessa loja eram prova da habilidade dele. Só me restava rezar para que minha espada não acabasse virando uma aberração única no mundo.

Encarei Baldur com um olhar sério. — Uma espada normal, entendeu?

— Pode deixar — ele respondeu com energia. — Não tô planejando forjar nada esquisito, relaxa.

— Parece um ferreiro habilidoso — disse Allusia. — Dá pra notar só de olhar pras espadas dele.

Enquanto conversávamos, ela examinava as armas da loja junto com a Kewlny. É bom ver que você tem um olhar apurado, Allusia. Agora, esse velhote aqui ia adorar se você entrasse no clima e também pegasse uma espada nova. Não? É, imaginei. Droga.

— Vamos ver... Ainda tenho que processar os materiais, então me dá uma semana — disse Baldur. — Pode vir buscar depois disso. Posso considerar que você vai pagar, Selna?

— Sim, tudo bem — respondeu Selna. — Não me importo com o preço — capricha ao máximo.

— Gah ha ha! Pode deixar!

Era pra ser minha espada, mas as coisas estavam andando sem minha opinião. Será que a lâmina ia sair mesmo normal? E o custo, será que ia ser aceitável? Tô começando a ficar preocupado.

— Bom, acho que vou ficar esperando ansioso — falei. — Volto em uma semana. Pode ser?

— Perfeito — respondeu Baldur. — Pode esperar coisa boa, Mestre. Até mais, pessoal!

Baldur pegou os materiais do balcão e desapareceu nos fundos. Provavelmente estava empolgado com a ideia de forjar uma arma, fosse pra mim ou não. E além disso, quando os materiais eram de primeira, era a chance perfeita pra um ferreiro mostrar o que sabia fazer.

Kewlny e Selna já tinham terminado de olhar as armas, então era hora de irmos embora.

— Certo, Mestre, vamos voltar pro salão de treino! — exclamou Kewlny, com um sorriso enorme no rosto. Ela se colocou ao meu lado, com o zweihander preso nas costas.

— Opa, quase esqueci — murmurei.

De um jeito ou de outro, ela provavelmente estava ansiosa pra testar a arma nova. Era bem diferente do que ela usava antes, então eu ia focar em ensiná-la a manejar aquilo. Ela tinha bons instintos — entendendo o básico, conseguiria evoluir sozinha até certo ponto.

— Mestre, vou me despedir aqui — disse Selna.

— Ah, valeu, Selna. Vou usar a espada com gratidão quando ela estiver pronta.

— Tá tudo bem. Nem precisa agradecer. Até mais, pessoal.

Depois de entregar os materiais, Selna saiu da Ferraria Baldur. Ela parecia bem aliviada, como se tivesse tirado um peso enorme dos ombros. Será que quebrar minha espada pesou tanto assim na cabeça dela? Se eu tivesse recusado, isso poderia ter afetado ela de um jeito bem ruim. Bom, agora que sei disso, vou colocar um pouco de esperança nessa espada que vai sair.

Virei pra Kewlny. — Vamos? A gente já treinou hoje, então vamos pegar leve.

— Sim, senhor!

— Também vou voltar — disse Allusia. — Tenho umas tarefas pra cuidar.

Espera aí. Ela tinha compromissos, mas mesmo assim decidiu vir com a gente? Tomara que isso não tenha bagunçado o cronograma dela. Allusia vivia ocupada, então espero que olhar as espadas tenha servido de pausa pra ela.

Bom, fazia tempo desde a última vez que eu ensinava alguém a usar uma espada de duas mãos. A Kewlny tinha deixado nosso dojo no meio do treinamento, então ter a chance de orientá-la de novo era uma bênção.

Vamos lá! Hora desse velhote entrar em ação!

— Certo, pronta pra começar?

— Sim, senhor!

Estávamos no salão de treinamento da Ordem de Liberion. Já tínhamos feito uma sessão de treino no dia — essa era a segunda. Curiosamente, não havia mais ninguém por lá. Era uma cena rara, já que normalmente sempre tinha gente, independentemente da hora. O sol já tava se pondo, então talvez fosse só tarde demais. O salão silencioso parecia ainda mais espaçoso, e nossas vozes ecoavam no ar vazio.

— Primeiro, tenta segurar a espada numa postura de combate — instruí.

— Entendido!

Kewlny segurou a espada nova em posição. Normalmente a gente treinava com espadas de madeira, mas essa era a primeira vez que ela empunhava um zweihander. Por isso, queria que ela se acostumasse com a sensação da arma de verdade. Não íamos trocar golpes nem nada — minha espada ainda era de madeira, afinal.

— A mecânica básica é parecida com a que você já conhece com a espada curta — expliquei. — Mas tem duas diferenças principais.

— Hm. Hm.

Uma espada de duas mãos era muito maior, mas ainda assim, era uma espada, então os fundamentos não mudavam tanto. Ainda assim, havia vários fatores importantes.

— Primeiro: golpes diagonais. Você quase nunca deve erguer um zweihander e descer ele de cima pra baixo.

— Hã? Sério?

Kewlny pareceu surpresa, e eu entendi o motivo. Muita gente se empolgava com a ideia de levantar uma espadona e descer com tudo. Era uma cena que passava aquela sensação de força. Mas bem pouca gente burra tentava isso de verdade.

— É. Tem vários motivos, mas o principal é o cansaço. Ficar levantando um zweihander acima da cabeça várias vezes vai te deixar exausta rapidinho. Tenta fazer alguns golpes de teste pra baixo.

— Sim, senhor! Hup! Hyah!

Kewlny fez exatamente como eu disse e desceu a espada algumas vezes. Obediência também podia ser uma arma poderosa... Duvidar era normal, mas tentar algo antes de criticar era ainda mais importante.

— Ah, cansa mais do que eu esperava — comentou Kewlny.

— Pois é. Quanto maior a arma, mais força você precisa. Se sair balançando a lâmina feito louca, vai ficar sem energia rapidinho.

—Sim, senhor!

—Você está tentando mover os braços separadamente. Pense em todos os seus membros como uma parte só, conectada.

—I-Isso é difícil!

—É uma questão de foco. E esse problema não vai sumir se você simplesmente ignorar. Preste atenção constante enquanto balança a espada.

—S-Sim, senhor!

—Isso aí! Vamos com mais dez golpes. Um. Dois...

—Hah! Hoh! Hyah!

Estávamos só eu e Kewlny, homem e mulher sozinhos numa sala, mas não havia nada de romântico no ar. Estávamos 100% focados—corpo e mente—no treinamento.

—Opa. Já tá esse horário?

O sol já havia sumido além do horizonte oeste. A sombra aos meus pés se estendia até se perder na escuridão.

—Haah...

Kewlny estava ofegante. Não dá pra subestimar o aprendizado dos fundamentos. Manter uma espada pesada de duas mãos em posição e balançá-la repetidamente acabava com a estamina. E isso era ainda pior quando a arma não era familiar.

—Hm. É seu primeiro dia, então vamos encerrar por aqui.

—S-Sim, senhor...

Passei um bom tempo observando sua postura básica e guiando os movimentos do treino. O salão de treino estava iluminado, mas lá fora já era breu completo, o sol havia desaparecido de vez. Hmm, talvez tenhamos ido longe demais, ou nos empolgamos um pouco. Kewlny se gabava da resistência dela, e mesmo assim estava exausta.

—Vamos focar nos fundamentos por enquanto.

—Sim, senhor!

O caminho para dominar a espada não se atravessa do dia pra noite. Se fosse possível melhorar em um único dia (e só algumas horas, ainda por cima), ninguém teria dificuldade. Esgrima se constrói com repetição, repetição e mais repetição—até fazer o sangue ferver e a sanidade bater em retirada. Bom, isso provavelmente vale pra qualquer habilidade. Se magia pudesse ser dominada em um ou dois dias, o instituto mágico nem existiria.

Pelo pouco que vi hoje, os movimentos da Kewlny estavam acima da média. Mas, como esperado, ela tinha o péssimo hábito de usar força bruta pra balançar a espada. Talvez nem percebesse isso. Vai levar tempo pra corrigir, mas ela tinha bons instintos. Pensando bem, ela tinha força o bastante pra balançar uma espada só com os braços, o que já era impressionante por si só.

Melhor seguir com paciência.

De qualquer forma, é difícil notar erros de técnica e hábito se você não estiver prestando atenção específica. E pra isso, é preciso saber o que procurar. Kewlny nem percebia que estava balançando a espada do jeito errado, e era extremamente difícil notar isso assistindo de longe. Mas é exatamente pra isso que serve um instrutor. Isso só reforçava meu desejo de acompanhar o crescimento da Kewlny até o dia que eu pudesse entregar a “espada de despedida” dela. Embora, considerando que agora a arma dela era uma zweihander, não sei se eu conseguiria forjar uma.

—Meus braços tão doendo um pouco, mas minha cintura e as coxas tão queimando — reclamou Kewlny.

—Isso é bom. Quer dizer que você tá usando os músculos certos.

Firmar bem as pernas era ainda mais importante quando se usava uma arma grande como uma zweihander, mas isso também colocava mais carga na parte inferior do corpo. Não era bom forçar demais, então achei melhor encerrar antes que o corpo dela começasse a gritar de vez. Além disso, já estava bem tarde.

Só um comentário à parte: ver aquela cavaleira pequena balançando uma arma enorme era uma bela cena. Talvez fosse só meu gosto pessoal falando mais alto, mas tinha um certo charme nisso. Eu usava uma arma totalmente comum, então talvez esse estilo mais espalhafatoso chamasse ainda mais a atenção aos meus olhos...

—Hmm, tá escuro pra caramba — comentei ao sair do escritório.

—As ruas estão completamente vazias — disse Kewlny. — Mas acho que é de se esperar.

Não havia ninguém à vista, exceto alguns poucos cavaleiros de guarda. Considerando o horário, era óbvio.

—Kewlny, quer que eu te acompanhe até em casa?

—Ah, não, não precisa! Eu tô bem! Ainda sou uma cavaleira, sabia?!

—É mesmo? Beleza, então.

Mesmo sendo a capital, um lugar relativamente seguro, ainda podia ser perigoso pra uma mulher andar sozinha à noite. Tenho quase certeza que até um velhote como eu serviria pra afastar encrenqueiros, mas Kewlny recusou com vontade. Bom, ela definitivamente era uma cavaleira, então não valia a pena insistir.

—Te vejo depois, Kewlny. Se cuida.

—Pode deixar! Valeu pelo treino, Mestre!

—Hm, bom trabalho hoje.

Nos despedimos em frente ao escritório e eu segui sozinho pela escuridão. Felizmente, ainda tinha alguma luz saindo dos prédios e postes iluminando o caminho, então não estava completamente escuro. Mas a visibilidade era bem ruim mesmo assim.

O caminho do escritório da ordem até a hospedaria onde eu estava não era longo. No caminho, fiquei refletindo sobre o dia. Tô ficando velho. Depois de viver tantos anos, eu meio que preciso escavar a memória assim, senão esqueço as coisas.

Kewlny parecia ter aptidão pra espada de duas mãos. Ela era do tipo que confiava na força, então, mesmo sem estar acostumada com o novo formato da lâmina, não deixava a espada escapar. A base dela era firme também, então se enraizar no chão e balançar uma arma pesada parecia combinar com o estilo dela. A única preocupação era que ela poderia acabar se destacando demais como a única da ordem usando uma zweihander. Allusia me disse que isso não seria um problema, então provavelmente está tudo certo.

—Hm...

Enquanto pensava a fundo no treino de hoje, notei uma figura vindo na minha direção. Já era bem tarde, então praticamente não tinha mais ninguém usando aquela rua além de mim. Mesmo com a visibilidade péssima por causa da escuridão, meus olhos foram atraídos por aquela visão inesperada. Era raro ver alguém andando por ali depois do pôr do sol.

A luz da lua ajudava um pouco na visibilidade. A pessoa que vinha na minha direção usava um manto escuro, que fazia com que ela praticamente se misturasse com a escuridão. O capuz caía baixo sobre o rosto, escondendo as feições. Não que eu fizesse questão de ver o rosto de um transeunte qualquer. Era meio suspeito andar por aí de capuz à noite, mas eu também não podia falar muito—eu mesmo estava vagando por aí sozinho no escuro, com cara de poucos amigos.

Não vale a pena tirar conclusões sobre um estranho. Melhor eu me apressar e voltar logo pra estalagem antes que algum guarda local ache que eu tô aprontando.

—Opa.

A rua nem era tão estreita assim, mas quando passamos um pelo outro, a figura encapuzada esbarrou em mim. Não era educado encarar, e por mais que eu quisesse só sair do caminho, esquecer isso tudo e ir direto beber alguma coisa na estalagem...

—Isso eu não posso deixar passar.

—Hgh?!

Agarrei a mão que tentou me alcançar no meio da escuridão. Já achava essa pessoa meio suspeita, e meu instinto estava certo. Um batedor de carteiras—e dos bons. Num segundo estava andando normal, no outro, foi direto no meu bolso. Mas que pena, hein! Se tem uma coisa que esse velhote aqui ainda tem de bom, é a visão.

—Merda! Me solta!

—Sem chance.

A ladra era uma mulher, e pelo tom de voz, não parecia ser muito velha. Ela congelou por um momento, mas logo se recuperou e começou a se debater. Me dava um aperto no coração ver uma garota tão nova recorrendo a esse tipo de coisa, mas eu ainda precisava entregá-la à guarda local.

—Tch!

—Whoa?!

De repente, bem acima do braço que eu tinha prendido, chamas surgiram do nada.

Magia?!


Instintivamente, me defendi do calor. Naturalmente, isso significava soltar o braço dela.

—Ah...

Quando percebi, já era tarde demais—a distração com fogo tinha funcionado, e a garota já tinha desaparecido num beco sem nem olhar pra trás. Por um instante, pensei em correr atrás, mas eu não estava em Baltrain há tanto tempo assim. Não conhecia direito a área e basicamente não sabia onde os becos davam. Soma isso à escuridão, e não dava pra garantir que eu conseguiria alcançá-la. Que droga. Bom, pelo menos ela não chegou a conseguir pegar nada do meu bolso, então não tinha saído tão no prejuízo assim.

—Hm...?

Enquanto olhava na direção do beco, notei algo no chão brilhando sob a luz da lua. Me aproximei por curiosidade.

—Um pingente? Parece que alguém perdeu isso.

Peguei o objeto. Parecia bem antigo, mas muito bem cuidado. Tinha alguns arranhões na superfície, mas nem sinal de poeira ou sujeira. Eu não sabia se a guarda dos cavaleiros cuidava de itens perdidos, mas decidi levar o pingente pra eles no dia seguinte. A Allusia ou o Henbrits provavelmente saberiam me dizer onde entregar.

—Tô começando a pegar birra de fogo...

Primeiro a Lucy, depois o Zeno Grable, e agora isso—ultimamente, era só problema envolvendo fogo. De todo modo, pra uma maga cair tão baixo a ponto de virar batedora de carteira... Ela devia estar passando por um aperto sério. Pelo timbre da voz, devia ter mais ou menos a idade da Kewlny, talvez até menos. Não que eu pudesse fazer algo a respeito. Alguma desgraça devia ter acontecido com ela, mas eu não tinha escolha a não ser deixar pra lá. Eu não era herói nem ladrão cavalheiresco; não tinha esse tipo de senso de justiça nobre. Mas também não era nenhum canalha.

—Enfim, hora de voltar pra estalagem.

Naturalmente, ninguém respondeu ao meu resmungo. Em dias assim, o melhor a fazer era voltar logo pra casa, tomar um banho e cair na cama. Enquanto andava pelas ruas desertas de Baltrain, o único som que se ouvia era o eco dos meus passos silenciosos.


Chaper List:

Comentários Box