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Chapter 2 - Vol 2: Um Velho Caipira Encontra uma Ladra

 Capítulo 2: Um Velho Caipira Encontra uma Ladra

—Parece que foi um perrengue e tanto.

—É... Bom, não cheguei a perder nada, mas ela conseguiu escapar.

Era o dia seguinte ao incidente, e eu estava instruindo os cavaleiros no salão de treinamento da ordem. Enquanto a gente trocava espadadas, conversava com o tenente-comandante Henbrits Drout sobre o que tinha acontecido. Ele vinha pro salão praticamente todo dia pra se dedicar ao aprimoramento pessoal, e a essa altura, os músculos dele estavam claramente num nível acima de quando nos conhecemos. Participava dos duelos simulados com os outros cavaleiros, mas também passava um bom tempo testando vários estilos de ataque, inclusive alguns que não dependiam só de força bruta. Era bom ver que ele estava evoluindo.

Mas eu não vou ficar pra trás, não! Mesmo sendo o tenente-comandante da Ordem de Liberion, já venci ele uma vez—este velhote aqui ainda tem orgulho e reputação a manter!

—De qualquer forma... —Henbrits olhou pra uma cavaleira baixinha que balançava uma espada de madeira enorme. Ela tinha se posicionado num canto do salão pra não atrapalhar ninguém.— A Kewlny empunhando uma espada de duas mãos é uma ideia bem ousada.

—Por enquanto, acho que combina com ela —respondi.

Os movimentos da Kewlny eram simples e diretos—ainda não dava pra dizer que ela dominava a zweihänder numa luta real. Mas ela sabia disso, e por isso estava praticando os golpes básicos repetidamente. No rosto dela, não via nenhum sinal de hesitação ou ansiedade. Provavelmente via potencial naquela espada nova... Mas tinha lá minhas suspeitas de que o entusiasmo dela vinha, na verdade, do fato de que fui eu quem recomendou a lâmina.

Voltei o olhar pro Henbrits.

—Acho que ela tem potencial pra evoluir bastante em pouco tempo.

—Animador —Henbrits sorriu com simpatia.— O crescimento de um cavaleiro sempre é motivo de comemoração. Não posso deixar vocês me ultrapassarem assim tão fácil.

Havia uma esperança bem clara naqueles olhos amendoados. Ele realmente era uma boa pessoa. Henbrits era honesto com sua arte, tinha um espírito competitivo forte, mas também era direto com quem respeitava. E muito prestativo, diga-se de passagem.

Era verdade que a Allusia tinha uma popularidade tremenda entre o povo e os cavaleiros, mas do que eu via, Henbrits não ficava atrás. Tá, talvez eu esteja exagerando um pouco—em termos de popularidade pura, ele provavelmente perdia pra ela. Mas no sentido de ser idolatrado pelos cavaleiros, ele estava no mesmo nível. A Allusia passava aquela impressão de ser difícil de abordar sem pensar duas vezes, enquanto o Henbrits era acessível com qualquer um. Não que a Allusia fosse antissocial nem nada... Era só uma diferença de estilo de liderança.

Pessoalmente falando, Henbrits também era um dos poucos parceiros de conversa homens que eu tinha. Não é que eu não goste de mulheres nem nada do tipo, mas ficar cercado só por elas o tempo todo às vezes podia ser meio sufocante. Só pra deixar claro—não era por desgostar da companhia delas. É só que, pra este velho aqui, era mais confortável ter outro cara pra trocar ideia.

—Voltando ao assunto da batedora de carteira... —Henbrits falou, pensativo.— Como foi que ela escapou da sua mão? Tinha uma agilidade absurda?

—Ela usou magia —respondi.— Soltei ela no reflexo.

Não era como se eu tivesse decidido soltar, mas com um truque mágico daquele, não consegui esconder meu choque.

—Magia, é?

Só essa palavra já fez o Henbrits ficar em silêncio.

—Tem algum problema com isso? —perguntei.

—Ah, não... Não com você, mas...

Pensei que ele fosse me dar bronca por ter deixado alguém assim escapar, mas parece que não era a intenção. Que alívio. Ou melhor... pensando bem, talvez não fosse tão tranquilizante assim. Ter uma criminosa com habilidades mágicas escondida na capital provavelmente era algo que o Henbrits não podia simplesmente ignorar.

—Normalmente, todos que demonstram aptidão mágica em Liberis são matriculados no instituto de magia —Henbrits explicou.— Depois disso, seguem carreira como aventureiros, integrantes do corpo mágico, ou outros especialistas da área. Tem algo errado nessa história—alguém forte o bastante pra te afastar não deveria estar reduzido a uma simples ladra de bolsos.

—Hmm...

Bom, fazia sentido. Eu mesmo já tinha pensado nisso. Ter talento pra magia já era o suficiente pra te colocar entre os considerados “dotados”. Magos eram raros, então o reino não podia se dar ao luxo de ignorar nenhum—deixar um escapar afetava diretamente a força militar e a influência do país. Era por isso que o Reino de Liberis tinha criado o instituto e o corpo mágico.

Não sei como os outros países lidavam com magos. Mas, considerando tudo, era difícil imaginar qualquer estado tratando usuários de magia com frieza. Liberis, inclusive, vivia emitindo comunicados pra ninguém deixar passar possíveis talentos, e ouvi dizer que a mensalidade do instituto era bem acessível. Se me lembro bem, quem atingia certo nível de habilidade nem precisava pagar. Afinal, o reino não podia deixar talentos promissores irem pro lixo só porque a pessoa não tinha grana.

Aliás, dizem que até hoje é um completo mistério como ou quando esse dom mágico desperta. Já fizeram vários estudos tentando achar fatores determinantes—tipo se vinha do sangue, do ambiente onde a pessoa cresceu, ou de outras variáveis. Mas até agora, nada conclusivo foi encontrado. Se descobrissem a causa, ia dar pra recrutar magos de forma muito mais eficiente—por enquanto, a única maneira era buscar por aí. Quem descobria que tinha magia podia simplesmente bater na porta do instituto e, pronto, tava com a vida ganha. Todo mundo em Liberis parecia entender isso.

Magos têm mesmo é sorte.

De qualquer forma, voltando ao assunto da batedora de carteiras — se ela era capaz de usar magia, entrar no instituto mágico seria um caminho de carreira muito mais produtivo do que pequenos furtos. Não havia motivo para não fazer isso, e uma educação formal eliminaria a necessidade de se esgueirar nas sombras roubando os outros. Mas a ladra de ontem tinha feito exatamente isso, e claramente não era sua primeira vez. Seus movimentos eram confiantes e diretos demais. Provavelmente já vivia de roubo há um bom tempo.

— Se eu tivesse que adivinhar... — murmurou Henbrits. — Suponho que é possível que ela não seja uma maga.

— Como assim? — perguntei. Como alguém pode usar magia e não ser maga?

— Equipamento mágico. Ela pode ter usado algo para facilitar uma fuga de emergência.

— Aaah. Entendi.

Nada menos do que o subcomandante da Ordem de Liberion — ele analisou as possibilidades num piscar de olhos. Eu nem tinha considerado que ela poderia ter usado equipamento mágico ao invés de magia pura. Mas fazia todo o sentido. É claro que uma batedora de carteiras experiente teria algum item que a ajudasse a fugir ao ser capturada. Esse cenário fazia muito mais sentido do que o de uma maga rebaixada a ladra de rua.

— Então acho que ela era mesmo só uma ladra qualquer.

Henbrits assentiu.

— Provavelmente. Não há motivo para alguém com talento mágico recorrer ao roubo.

No geral, eu estava satisfeito com essa explicação. Mas ainda assim, por que uma batedora de carteiras teria um equipamento mágico ofensivo tão absurdo? E por que ela estaria com algo assim em primeiro lugar? A lógica estava sólida, mas agora eu estava ainda mais irritado por tê-la deixado escapar.

Suponho que não adianta ficar pensando nisso. Não tem nada a ver comigo.

Decidi que já tinha falado o bastante sobre a ladra, então mudei de assunto para algo que estava na minha cabeça há um tempo.

— Cara, a capital é realmente diferente — comentei.

— Isso não parece exatamente um elogio — disse Henbrits. — Bem, quando tantas pessoas se juntam num lugar só, você acaba encontrando todos os tipos de humanidade.

Foi mal, Henbrits, não quis ser sarcástico nem nada — só estava dizendo o que pensava. Não quis dizer nada de ruim com isso.

— Ah, quase esqueci. Falando em batedores de carteira... — Peguei o pingente que encontrei no chão ontem e mostrei para Henbrits. Apesar de o pingente não ter ligação direta com a ladra, eu o havia achado logo depois que ela escapou — a conversa com Henbrits me fez lembrar dele.

— Isso é... um acessório de alguém?

— É. Achei ontem à noite. Mas não sei onde posso deixá-lo.

Henbrits encarou o pingente na minha mão. Pelo jeito, ele também não entendia muito dessas coisas. Bem, ele era do tipo que passava os dias treinando, e eu não era muito diferente. Não tinha olho pra coisas refinadas, então não fazia ideia se aquele pingente valia alguma coisa. Mas dava pra perceber que tinha sido bem cuidado — por esse lado, era definitivamente importante pra alguém. Eu queria garantir que ele voltasse pra quem o perdeu.

— O escritório tem um lugar onde você pode deixar itens perdidos — disse Henbrits. — Te levo lá depois do treino.

— Valeu, isso ajuda.

Ótimo, agora posso tirar esse pingente da cabeça. Seria impossível encontrar o dono sozinho; era bem mais provável que a ordem tivesse sucesso com isso.

— Sr. Beryl, posso pedir uma luta?

— Claro, vamos nessa.

Nossa conversa chegou a um ponto de pausa natural, e Henbrits logo me desafiou para um duelo. É admirável como ele é dedicado ao treinamento. Deixei de lado todos os pensamentos sobre ladrões e pingentes e voltei a cumprir meu verdadeiro papel.

— Muito bem, vamos cuidar desse item.

— Por favor, façam isso.

Depois de terminar o treino do dia, entreguei o pingente perdido para o que parecia ser uma sala da guarda ao lado do escritório da ordem. Era uma estação onde ficava a segurança do local, com uma janela de atendimento onde as pessoas podiam fazer solicitações. Vários cavaleiros estavam lá dentro, num clima bem casual, mas assim que me viram, todos se endireitaram imediatamente.

Não precisam ficar tão tensos assim. Só vim deixar um item perdido.

O treinamento estava indo bem para todos os cavaleiros, inclusive os que estavam ali agora. Cada um tinha seus pontos a melhorar, e até mesmo um caipira como eu tinha bastante coisa pra ensinar. É claro que ninguém ia melhorar drasticamente de uma hora pra outra, mas eu já tinha visto progresso real — ser instrutor era, no fim das contas, uma experiência muito gratificante. Henbrits também estava ficando cada vez mais afiado.

Em contraste com os jovens cavaleiros, eu já tinha passado do meu auge. Me orgulhava da dedicação que tive ao treinamento com espada na juventude — bem acima da média — mas, mesmo assim, não consegui me tornar um herói ou salvador ou coisa do tipo. A idade, definitivamente, impõe limites. Meu pai era saudável, mas deixando isso de lado, envelhecer significava se deteriorar como espadachim. No máximo, ele conseguiria manter o nível que já tinha — melhorar como velho era praticamente impossível.

Ainda assim, do ponto de vista da maioria das pessoas, eu era um sucesso enorme. Afinal, saí de um dojô de vila para assumir a posição (exagerada, diga-se de passagem) de instrutor especial da Ordem de Liberion. Honestamente, não podia pedir mais. Apesar de que, pensando bem, só cheguei aqui por causa da insistência absurda da Allusia.

Eu realmente devia parar com isso. Esse tipo de pensamento é inútil — não tem por que ficar sentimental. Já fiz o que pude hoje, então tá na hora de relaxar na estalagem. É, isso parece ótimo.

— Certo. Hora de ir.

Eu estava hospedado na mesma estalagem desde que cheguei a Baltrain. Ela atendia bem às minhas necessidades atuais, mas eu já estava começando a pensar que era hora de encontrar uma casa de verdade. Então, sempre que sobrava um tempinho, eu dava uma olhada por aí em busca de algum lugar para morar. Como era de se esperar do distrito central, morar perto de todas as conveniências vinha com um preço absurdo. Todas as casas por ali estavam bem acima do que eu podia pagar.

Eu recebia um salário da ordem, então não havia necessidade de me mudar imediatamente. Provavelmente seria melhor economizar por um tempo, mas eu queria dar uma olhada nas opções disponíveis. Como não estava com pressa, podia simplesmente ficar de olho em algo que valesse a pena.

Além disso, ultimamente eu estava me dando muito bem com o dono da estalagem. De certa forma, me sentia um pouco grato por ele ter me acolhido, mas aquilo era o negócio dele, e eu estava pagando. Viver ali não era ruim, e eu até estava um pouco relutante em sair. No entanto, se Baltrain acabasse se tornando minha residência fixa, ter uma casa própria não parecia má ideia.

Bom, tecnicamente, se eu encontrasse uma esposa, poderia voltar pra minha casa de verdade em Beaden... mas não tô fazendo nenhum progresso nesse sentido. Seria tolice ter alguma esperança.

— Depois de todos esses anos, o que aquele velho ainda espera de mim?

Não consegui evitar e acabei murmurando isso em voz alta. Sério mesmo, por que ele me expulsou? Na época, acabei indo na onda, levado pelas circunstâncias, mas eu não tinha feito nada de errado. E agora, começava a ficar meio irritado com tudo isso.

Dito isso, eu também não estava insatisfeito com a vida que levava agora. De um jeito ou de outro, sair daquele ambiente do dojô era algo revigorante — ensinar aqui não era nada ruim.

Com esses pensamentos na cabeça, continuei andando pelas ruas do distrito central. O sol ainda estava alto no céu, então Baltrain estava cheia de gente pra lá e pra cá. Muitas lojas estavam lotadas também, criando uma cena bem animada ao meu redor.

A propósito, o Reino de Liberis era, como o nome já dizia, uma monarquia. Dizem que o primeiro rei, Spokino Ashford Liberis, fundou o país no extremo norte do continente de Galea. Eu não era exatamente um expert em história, mas pelo menos tinha aprendido o nome dele durante a educação básica. Nosso reino tinha muita terra fértil, então a agricultura era forte. Na verdade, até o distrito sul inteiro da capital era dedicado à produção agrícola. Havia poucas florestas, muitas montanhas e planícies, o que contribuía pra uma grande diversidade de fauna. Também fazíamos fronteira com o mar e tínhamos acesso a todo tipo de riqueza marítima. Resumindo, dava pra dizer que nosso reino era abençoado.

E por isso, mesmo lá longe em Beaden, fome e colheitas fracassadas eram bem raras. Tirando os ataques de monstros e feras selvagens, dava pra viver uma vida relativamente tranquila em boa parte do reino. Mas isso não significava que todos os cidadãos viviam bem. (Aliás, isso é verdade em qualquer país.) Muita gente acabava ficando fora da rede de proteção das políticas nacionais, mesmo que em vilarejos pequenos como Beaden isso quase não acontecesse. Basicamente, essas pessoas acabavam virando bandidos e ladrões.

Eles não se mostravam muito em público, mas havia sim uma quantidade considerável deles em Baltrain. A batedora de carteiras de ontem era só um exemplo. Dizem por aí que eles se reúnem em grande número em um distrito específico. Eu queria acreditar que esse tipo de gente não andava pelo distrito central, mas eles pareciam do tipo que podia surgir em qualquer lugar.

— Hm?

Enquanto eu refletia sobre o reino e andava pelas ruas do centro, vi uma figura ajoelhada na beira da estrada, encarando o chão e se mexendo de forma inquieta. O que será que tá rolando? Não parece ser um mendigo nem nada assim. As pessoas olhavam de lado com curiosidade, mas ninguém parava nem falava com a pessoa ajoelhada.

Conforme me aproximei, ouvi uma voz.

— Não tá aqui... Não tá aqui! Onde foi que eu deixei?!

A figura continuava se arrastando pelo chão, sem ligar pros olhares estranhos dos outros. Um manto surrado cobria o corpo dela, então eu não conseguia ver o rosto. Aquele traje era completamente fora de lugar ali no meio de Baltrain.

Bom, eu podia simplesmente ignorar. Mas reparei numa coisa interessante. Aquela pessoa — a voz, a roupa — era idêntica à batedora de carteiras de ontem.

— Procurando alguma coisa? — perguntei, mantendo uma certa distância, só por precaução.

— Cala a boca! Me deixa em pa...z?!

Era praticamente a resposta que eu esperava. Provavelmente, ela já tinha espantado qualquer um que tivesse tentado falar com ela antes. Mas quando se virou e viu meu rosto, sua expressão se contorceu, deixando bem claro o que estava pensando: "Droga."

Hmm. Parece que ela reconheceu meu rosto. Nosso encontro tinha sido à noite, mas o lugar não estava completamente escuro. Ela provavelmente prestou muito mais atenção em mim do que eu nela. Agora, o rosto dela estava tenso, o pânico escorrendo por todos os poros, e dava pra ver um pouco de cabelo azul-escuro saindo do capuz. Parecia ter por volta da adolescência. Pelo menos, era mais nova que a Kewlny e a Ficelle.

— O quê? Quer alguma coisa?

Em questão de segundos, ela escondeu a expressão e forçou a conversa com frieza. Provavelmente estava apostando que eu não lembrava dos detalhes do incidente de ontem. Decidi fingir que era só um velhote simpático tentando ajudar.

Claro que isso nunca ia acabar desse jeito.

— Você tá, talvez, procurando um pingente? — perguntei.

— Seu desgraçado! — Ao ouvir minhas palavras, ela estreitou os olhos, cheia de raiva. — Devolve! Devolve agora!

— Eita, calma aí.

No momento em que mencionei o pingente, ela se levantou num salto e tentou agarrar minha gola. Mas eu não ia simplesmente ficar parado esperando por isso, então acabei desviando para o lado. Julgando pelos movimentos dela, dava pra ver que ela não tinha nenhuma experiência com combate. No máximo, tinha aquela destreza específica de quem vive de bater carteira.

— Seu...! — ela rosnou.

— Calma, calma. Eu nunca disse que ia ficar com ele.

Depois de falhar em me agarrar, ela tropeçou alguns passos pra frente com o impulso. Continuou me encarando, bufando pelo nariz. Uuuh, que medo. O olhar assassino nos olhos dela era até meio bobo, mas não era o tipo de expressão que uma garotinha devia ser capaz de fazer. Dava pra ver claramente que ela tinha vivido em ambientes bem hostis. A criação difícil era muito mais assustadora do que aquele olhar venenoso. Em certo sentido, era inevitável que existissem pessoas assim nas sombras de um reino próspero... mas mesmo assim, a ideia me deixava meio desanimado. Não é como se eu pudesse fazer algo quanto a isso.

Levantei as mãos num gesto conciliador.

— Olha, eu não gosto muito de chamar atenção. Seria bom se você se acalmasse.

Eu queria deixar claro que ela não devia fazer um escândalo ali no meio da rua, e parece que minhas palavras chegaram até ela. Ela manteve o olhar fulminante, mas ficou de boca fechada. Também não era do interesse dela atrair olhares — no fim das contas, ela não era inocente.

— Vamos direto ao ponto — falei. — Eu não tô com o pingente agora.

— O quê?! — A expressão já carregada dela ficou ainda mais pesada.

— Deixei com a Ordem de Liberion. Como item perdido.

— Tch!

A essa altura, ela provavelmente já tinha entendido o que aconteceu. Eu não tinha feito nada de errado. Só encontrei um item perdido, percebi que era algo tratado com carinho e confiei à uma das organizações mais respeitadas de Baltrain. Ela sabia que não tinha muito como me criticar. Tudo o que restava pra irritação dela era estalar a língua.

— Não tô tentando ser maldoso nem nada — falei. — Se eu disser pra eles que achei a dona, eles devolvem. Mas você vai ter que ir comigo.

Eu tinha certeza que ela tentou roubar minha carteira ontem à noite. E também estava convicto de que ela era reincidente. Mas não tinha provas. O jeito dela, as roupas... tudo nela gritava que estava aprontando. Mesmo assim, como eu não peguei ela no flagra fazendo algo ilegal, também não dava pra simplesmente entregá-la aos cavaleiros.

Por outro lado, eu ia me sentir meio culpado em deixar uma criminosa em potencial solta por aí. Ela podia muito bem roubar alguém enquanto eu fosse até a sede da Ordem buscar o pingente. Então minha solução de meio-termo foi essa — levar ela comigo. Talvez eu até consiga que a Allusia ou alguém mais graduado dê uma bronca nela. Mesmo que seja um assunto bem pequeno pro comandante da Ordem de Liberion se envolver.

— Droga... Tá bom.

No fim, a garota não conseguiu pensar em nada melhor. Depois de hesitar por uns segundos, ela decidiu me obedecer. Eu sabia que ela não confiava em mim nem um pouco, mas o pingente devia ser importante o suficiente pra que ela aceitasse me seguir. Se é assim, então ela não devia ter deixado aquilo cair... mas agora já era.

— Vamos nessa? — perguntei. — Enquanto você não fizer nada, eu também não. Só deixando claro.

— Tch.

Ela estalou a língua de novo, toda cheia de má vontade. A educação dela era bem precária. Eu me perguntava que tipo de criação ela teve, mas também não conseguia evitar associá-la aos moleques que eu treinava no dojo. Já tinha tido alguns pestinhas que foram mandados pra lá, e o treino acabou servindo como válvula de escape pra toda aquela energia acumulada. Estar de novo com uma criança problemática até trazia um sentimento nostálgico.

— Qual é o seu nome? — perguntei.

— Cala a boca. Não vou te dizer nada, velhote.

Tentei puxar assunto e recebi isso. É... eu sei que sou um velho, mas ouvir isso na cara sempre dá uma leve deprimida.

— E-eu entendo. Bem, tenho certeza de que você tem seus motivos. Mas você já sabe disso, né? Não dá pra aplaudir o que você fez ontem.

— Cala a boca — ela resmungou.

Mesmo que ela não quisesse conversar, achei que podia dar pelo menos uma liçãozinha de moral. Mas tudo o que recebi foi uma resposta seca e desconfortável. Pelo jeito que reagiu, não parecia que ela roubava porque gostava disso. Fiquei curioso sobre os motivos dela, mas não sou pai nem tutor dela. Não tinha por que me meter.

Ela andava um pouco atrás de mim, à direita. E, seja lá como fosse, ela era exatamente o que parecia ser. Não passava aquela vibe estranha da Lucy. O cabelo azul-escuro ia até os ombros, e o rosto meio chupado dava a impressão de que ela não estava com a saúde em dia. Os olhos eram puxados e, quando olhava direto pra mim, dava pra ver um brilho esverdeado com tons de amarelo nas íris. Ela era ainda mais baixa que a pequena Kewlny. E, por causa da túnica, não dava pra ver bem o corpo, mas estava claro que ela era bem magra — mais até do que a já esguia Ficelle.

Resumindo: uma garotinha magricela com uma atitude super agressiva. Se estava vivendo de furtos, provavelmente não comia direito. Me dava a sensação de que eu tinha achado um gato de rua por acaso. Mas eu não ia adotar nem nada disso — a gente provavelmente nem se veria mais depois de resolver essa história.

— Chegamos. Bem, aposto que você já conhece o lugar.

Ela não respondeu.

— Não tô pensando em te entregar ou algo assim — continuei. — Pelo menos por enquanto.

Conforme nos aproximávamos do escritório da Ordem, a garota ficou bem mais alerta do que antes. Ela vinha cometendo crimes que davam cadeia, então os cavaleiros provavelmente eram como inimigos naturais pra ela. Mas, como já mencionei, eu não tinha intenção de entregá-la. Minha ideia era só arranjar alguém importante pra dar uma bronca nela.

— Com licença.

Levando a garota — que estava com uma expressão tão tensa que parecia prestes a sair correndo a qualquer momento —, chamei os cavaleiros atrás da janelinha da estação.

— Pois não? Ora, ora, se não é o senhor Gardinant. Trouxe uma criança perdida desta vez?

— Não, não, nada disso — respondi. — Acontece que ela é a dona do pingente que deixei com vocês.

Quem respondeu foi o mesmo cavaleiro a quem eu havia confiado o pingente mais cedo. Ao olhar pra garota, ele deve ter achado que era só uma criança perdida. A Ordem também cuida de crianças assim? As atividades deles são bem abrangentes mesmo.

— Aaah, entendo. Vou buscá-lo.

Convencido com minha explicação, o cavaleiro foi até os fundos.

— Deixa eu avisar uma coisa — murmurei. — Nem pense em tentar arrancar o pingente assim que ele entregar.

— Tch.

Ela estalou a língua mais uma vez, mas isso não fazia diferença — eu já tinha cortado a possibilidade de ela sair correndo. Se eu estivesse no lugar dela, com certeza teria tentado fugir. Infelizmente pra ela, esse velho aqui entende bem como funciona a cabeça de um moleque travesso.

— Obrigado por esperar — disse o cavaleiro, voltando dos fundos. — É esse aqui?

— É esse mesmo! — gritou a garota. — Me devolve!

Assenti com a cabeça.

— Parece que sim. Beleza, vou levar comigo.

O cavaleiro entendeu o recado e não entregou o pingente diretamente pra ela. Peguei eu mesmo.

— Ei! — protestou a garota. — Já não tá bom?! Devolve logo!

— Hã... Senhor Gardinant? — perguntou o cavaleiro, meio sem jeito. Ele lançou um olhar de canto pra garota, que de repente estava bem mais animada.

— Ha ha. Desculpa. Ela é meio esquentadinha.

Eu ia devolver o pingente, claro. Só que mais tarde. Primeiro, precisava que a Allusia ou o Henbrits dessem uma bela lição de moral nela.

— Que algazarra é essa— Oh, Mestre.

Estendi o braço, com um sorriso sem graça, mantendo o pingente longe do alcance da garota, que tentava pegá-lo.

— Allusia? — chamei, virando pra ela. — Chegou na hora certa.

Provavelmente a Allusia já tinha terminado as tarefas do dia e estava indo pra casa. Usava o mesmo casaco de couro casual que vestia quando veio me buscar em Beaden. Era um timing perfeito. Eu até poderia levar a garota pra dentro do escritório, mas estava na dúvida se era certo entrar com ela sem avisar antes.

— Hã... Mestre, quem é essa garota?

Eu, o cavaleiro e a menina — o olhar confuso de Allusia passou por cada um de nós, até se fixar na garota ao meu lado.

— Ah, é... — fiquei meio perdido. — Como posso explicar isso?

— Não me diga... Sua filha ilegítima?! — exclamou Allusia.


— Claro que não! — gritei de volta, quase engasgando com as próprias palavras. — Bem... resumindo, surgiu uma situação. Allusia, será que você pode me emprestar um pouco do seu tempo?

— Não me incomodo, mas...

Por ora, desviei a conversa daquele caminho absurdo. Não parecia certo discutir esse assunto ali fora, então queria entrar no escritório antes de começarmos — por isso chamei a Allusia, e aparentemente ela não via problema. No entanto, a garota não parecia disposta a colaborar. A expressão dela ficou ainda mais fechada ao ver a Allusia. A comandante da Ordem de Liberion era provavelmente a última pessoa com quem uma batedora de carteiras queria cruzar. Achei interessante que até esse tipo de gente reconhecia o rosto da Allusia. O fato de terem tanto receio dos cavaleiros mostrava que a Ordem estava cumprindo bem seu papel.

De qualquer forma, não íamos resolver nada daquele jeito. Eu queria entrar, mas será que a garota realmente seguiria com a gente?

— Não tem nada a ver com te prender — falei. — E eu vou te devolver isso aqui assim que a gente conversar.

A garota hesitou por alguns segundos, obviamente contrariada, mas no fim cedeu.

— Tch. Tá. Mas que seja rápido.

Pelo menos agora ela entendia que eu não queria fazer mal nenhum. Normalmente, uma batedora de carteiras teria aproveitado a chance pra fugir — ninguém a segurava e ninguém estava de olho nela. Parecia só uma menina malvestida andando com um velho. O fato de ela não ter fugido mostrava que o pingente era muito importante pra ela.

Ela devia saber que, se lidasse mal com aquilo, poderia acabar presa. Ainda assim, queria tanto aquele pingente de volta que estava disposta a correr o risco. Talvez tivesse muito valor monetário... mas, por algum motivo, não parecia ser isso — se fosse, ela já teria vendido. Um batedor de carteiras não anda por aí com algo valioso sem trocar por dinheiro. No fim, eu não sabia a verdade, e nem tinha como descobrir sem mais informações.

— Muito bem — disse Allusia, assentindo pra mim e pra garota. — Vamos usar uma sala de recepção?

— Claro. — Me virei pra garota. — Vamos por aqui.

— Cala a boca. Não me trata como uma pirralha.

Ela era claramente uma criança — e bem petulante —, mas guardei esse comentário pra mim. Não deixei de notar a leve contração na sobrancelha da Allusia com a resposta dela.

Ótimo. Pelo jeito, a comandante vai dar uma bronca daquelas.

Depois de atravessarmos o escritório por um tempo, nós três chegamos à sala de recepção — o mesmo lugar onde estive quando meu pai me expulsou.

Assim que nos sentamos, Allusia se virou pra mim.

— E então? Quem exatamente é essa garota, Mestre?

— Indo direto ao ponto — comecei —, ela é uma batedora de carteiras que tentou roubar minha carteira ontem. Logo depois que fugiu, achei esse pingente no chão. Aparentemente é dela, então veio buscá-lo.

— O quê...?

— Não estou pensando em entregá-la nem nada — acrescentei logo. — Pelo menos por enquanto.

Allusia ficou um tempo sem palavras. Aquilo era bem incomum vindo dela. Mas, talvez por orgulho como comandante dos cavaleiros, logo retomou a postura neutra. Quando olhou pra garota, o olhar dela era gélido.

— O que foi? — murmurou a garota, ainda mais tensa. Apesar disso, estava bem mais quieta agora. E eu entendia bem por quê. Ela tinha sido arrastada por um velho desconhecido pra uma conversa a portas fechadas com a comandante da Ordem de Liberion. Seria absurdo pedir pra ela ficar tranquila.

Allusia suspirou.

— Haaah... Se o senhor diz, Mestre, então não vamos detê-la.

Mesmo que Allusia quisesse prendê-la, não podia. As leis deste país eram bem pacíficas — salvo em crimes muito sérios, uma infração não levava a nada se a vítima não registrasse queixa formal ou se o criminoso não fosse pego em flagrante. Pra prender essa garota, a vítima mais recente (no caso, eu) precisaria entregá-la. Caso contrário, os cavaleiros só poderiam agir se a pegassem no ato.

Sendo bem sincero, ela não passava de uma ladrazinha. Não representava ameaça real à vida de ninguém, então o país era relativamente tolerante nesse tipo de caso. E, pra ser honesto, eu tinha um bom motivo pra não denunciá-la.

— Sabe, ela nem chegou a levar nada meu — expliquei. — Quando tentei segurá-la, ela me atacou com magia.

— Magia... disse?

Eu sabia que a Allusia tinha entendido aonde eu queria chegar. Durante minha conversa com o Henbrits, ele disse que era improvável alguém com talento mágico recorrer à criminalidade de rua. Na época, eu tinha aceitado esse argumento. Mas, mesmo que equipamento mágico não fosse tão versátil ou valioso quanto o poder de um mago de verdade, ainda assim era caro. Eu mesmo vi isso de perto quando fui às compras no distrito oeste com a Kewlny e a Ficelle.

Além disso, era extremamente raro encontrar equipamento mágico ofensivo que servisse pra atacar diretamente outras pessoas. Eram poucos os que existiam, e os que existiam eram itens de alto nível. Afinal, se fosse algo comum, causaria um aumento drástico nos crimes. Sabendo disso, por que uma simples batedora de carteiras teria algo assim? Ela roubou? Alguém deu pra ela? Coisas desse tipo são mais fáceis de rastrear que itens comuns, então provavelmente seriam difíceis de vender. Talvez por isso ela estivesse usando em vez de tentar passar adiante.

Será que aquelas chamas tinham mesmo vindo de algum tipo de equipamento? Meu instinto dizia que isso era importante. Não que meu instinto seja sempre confiável...

— Você sabe usar magia? — perguntou Allusia, encarando a garota.

— Não tenho que te contar nada...

—Você tem, sim. Como uma cavaleira do reino, eu não posso simplesmente ignorar alguém com talento pra magia. Você devia saber disso.

Oooh, Allusia tá indo mais fundo do que eu esperava. E a garota não tava negando... talvez ela realmente tivesse o dom pra se tornar uma maga. Ainda era possível que estivesse escondendo algum equipamento mágico debaixo das roupas, mas pelo que eu via, não parecia ser o caso.

—Se você consegue usar magia, não precisa se esconder — Allusia continuou. — Acima de tudo, não podemos fechar os olhos pra uma garota como você vivendo nessas condições miseráveis. Não sei se podemos ser seus aliados, mas pelo menos, não somos seus inimigos.

—Cala a boca...

Allusia tava no ataque. Ela não ganhava absolutamente nada ao indicar essa garota pro instituto de magia, mas mesmo assim tava insistindo. Com certeza isso era parte da personalidade sincera dela.

Resolvi me pronunciar também, querendo dar um suporte pra Allusia.

—Como eu disse desde o começo, não tô querendo te prender nem nada. Mas agora estamos ligados — nossas vidas se cruzaram quando você tentou roubar minha carteira.

Eu senti a ansiedade e o nervosismo da garota sentada ao meu lado, embora parecesse que boa parte da desconfiança dela já tinha diminuído. De qualquer forma, era uma ligação bem peculiar. Eu não tinha vontade nenhuma de entregar essa ladra — na verdade, queria fazer algo por ela. Infelizmente, eu não era herói nem santo, e era impossível salvar toda criança em apuros. Mas de vez em quando, aparece alguém que tá ao nosso alcance. É da natureza humana querer ajudar quando dá.

A garota ficou em silêncio por alguns segundos e, então, com uma firmeza surpreendente, disse:

—Eu não tenho o suficiente.

—Hm?

Dor e determinação estavam estampadas no rosto da garota.

—Eu não tenho dinheiro suficiente pra ressuscitar minha irmã mais velha.

Hã? Quê? É isso mesmo? Magia não faz o menor sentido pra esse velho aqui. Meus olhos se arregalaram, mas eu não reagi além disso — fiquei calado. Então é sobre ressurreição? Isso cheira a encrenca.

O silêncio tomou conta da sala de recepção depois da confissão da garota. O que ela quis dizer com “ressuscitar”? Provavelmente no sentido literal... mas como a irmã dela morreu? Será que magia de ressurreição realmente existia? Minha mente tava girando em mil possibilidades só por causa dessa palavra. Era confuso.

—Eu não tenho dinheiro... nem tempo, então...

—Você recorreu ao crime — completou Allusia.

A dor no rosto da garota ficou ainda mais evidente. Ela entendia perfeitamente que roubar era um crime e que merecia punição. E parecia não gostar da vida de ladra. Hmm. Pessoalmente, acho que as palavras dela já são uma justificativa forte o bastante, mas não é meu papel julgar. Eu sou só um velho, afinal.

—No entanto... Não, vamos parar por aqui — Allusia estava prestes a dizer algo mais, mas se interrompeu. Agora os olhos dela estavam focados em mim.

Eu sabia o que ela queria dizer: não existia magia de ressurreição. Eu também tava me esforçando pra não tocar nesse assunto.

Esse velho aqui não sabe nada sobre magia. Não conheço nenhum detalhe sobre como funcionam os feitiços. Mesmo assim, dava pra imaginar que magia de ressurreição não era real. Se fosse, o mundo funcionaria de um jeito bem diferente. Mas apontar isso pra garota agora não faria sentido.

O silêncio na sala tava ficando sufocante e desconfortável, e eu não aguentava mais — odiava esse tipo de clima pesado. Também não queria zombar da situação da garota. Foi por isso que decidi mudar um pouco o foco da conversa.

—Por curiosidade — eu disse —, quanto tá faltando?

—Me disseram... cinco milhões de dalcs — respondeu ela, com a voz baixa, sem levantar os olhos.

—É um valor e tanto — murmurei.

Cinco milhões de dalcs era mais do que a maioria das pessoas conseguia juntar com trabalho honesto. O "me disseram" dava a entender que alguém tinha passado esse número pra ela. E eu tive um mau pressentimento — uma sensação azeda — de que quem tinha dito isso tava manipulando a menina. Ah, esse velho aqui odeia, odeia mesmo, esse tipo de canalha. Como alguém tem coragem de empurrar uma criança pro crime, uma criança que nem consegue tomar decisões direito ainda? Vergonha pros adultos.

De repente, Allusia se levantou.

—Com licença, preciso me ausentar um instante.

—Aaah, hm, claro.

E com isso, Allusia saiu da sala de recepção. Não era do meu feitio comentar, mas era estranho ela sair sem dar uma explicação. Talvez tivesse lembrado de algum assunto urgente. E agora cá estou, em silêncio ao lado dessa garotinha. Hmm. Isso tá complicado. Queria poder chamar o Kewlny agora.

—Como sua irmã morreu?

Esse foi o tópico que escolhi pra quebrar o silêncio... e me arrependi na hora. Definitivamente não era a melhor pergunta pra aliviar o clima.

—Não sei. Só me disseram que ela morreu.

Diferente de mim, a garota não pareceu muito afetada pelas minhas palavras. Talvez ela não tivesse mais cabeça pra se preocupar com isso. Olhei de lado. A cabeça dela estava baixa, e as mãos cerradas em punhos sobre os joelhos. Eu não sabia como a irmã dela tinha morrido nem o que ela tinha vivido, então não fazia ideia de como confortá-la. E se eu dissesse algo errado, podia acabar pressionando ainda mais a menina.

—Entendo...

Nossa conversa parou de novo. Meu desvio de assunto não durou nem alguns segundos... Quero Allusia de volta já.

No meio do silêncio, pesquei da memória algo que tinha me escapado.

—Ah, é. Já é a segunda vez que eu pergunto, mas...

—O quê?

Apesar de já ter trocado várias palavras com ela — embora não exatamente em clima de amizade —, eu ainda não sabia absolutamente nada sobre essa garota.

—Você pode pelo menos me dizer seu nome agora, né? Ah, eu sou Beryl Gardinant.

—Mui... Mui Freya.

—Então a senhorita se chama Mui, hein? Entendido.

—Para com isso. Não sou uma pirralha.

—Ha ha ha, desculpa.

Apesar da atitude dela, o nome tinha um som bem fofinho. Parecia que ela odiava ser tratada como criança, mas, pelo menos mentalmente, eu ia continuar fazendo isso. Diferente da Lucy, ela era exatamente o que aparentava ser. Devia estar ali nos seus treze ou quinze anos. Não havia necessidade de perguntar sua idade exata — ela parecia jovem, talvez até infantil, mas claramente não era uma garotinha. O jeito de falar e a postura dela iam muito além do que se espera de uma adolescente comum. Provavelmente tem a ver com o ambiente em que cresceu. Pena que, pra ela, eu já estava acostumado a lidar com pestinhas. Afinal, crianças que curtem brincar com espadas geralmente também têm uma tendência a serem traquinas.

Fiquei satisfeito por finalmente ter iniciado uma conversa. Mui de repente respirou fundo e, sem que eu dissesse nada, falou:

— Ei, velhote.

— Hm? O que foi? — Pensei em pedir pra não me chamar de "velhote", mas deixei pra lá. Ela não tava errada...

— Já não tá bom? Devolve logo.

— Ah, verdade, ainda tô com o seu pingente. Foi mal, desculpa aí. — Achei que já dava pra devolver sem problemas. — Vou te entregar. Mas...

Ergui o pingente diante dela.

— O quê?

— Você vai ter que ficar por aqui mais um pouco. Quero tentar fazer algo por você.

— Tch...

Ela estalou a língua de novo, mas não pareceu exatamente uma recusa. De algum jeito, eu percebi isso. Provavelmente. Bom, agora que eu sabia o nome dela, dava até pra investigar se quisesse. Só não sabia o quanto a Allusia tava disposta a se envolver nisso.

Mui pegou o pingente e, depois de passar a mão suavemente na superfície dele, o guardou com cuidado no bolso. O rosto dela suavizou por um instante, antes de voltar àquela expressão eternamente agressiva. Que contraste...

— Era da sua irmã? — perguntei.

— É... — A voz dela tinha um tom de tristeza. — Foi a única coisa que consegui recuperar.

Mui ainda era muito nova. Na idade dela, era impossível lidar com a morte de um familiar com facilidade. E, pelo comportamento, dava pra ver que ela adorava a irmã. Fiquei curioso sobre os pais dela, mas deixei esse assunto de lado por enquanto. Tinha algo mais urgente — alguém tinha manipulado a Mui pra roubar cinco milhões de dalcs. Seria um pouco diferente se magia de ressurreição realmente existisse, mas isso parecia improvável. Da próxima vez que eu visse a Lucy ou a Ficelle, ia perguntar sobre isso.

Justo quando a conversa com a Mui parecia chegar ao fim, Allusia entrou na sala.

— Perdão, estou de volta.

— Ah, bem-vinda.

Ela se sentou e se virou para a garota.

— Agora então, sobre a sua situação...

— Ah, o nome dela é Mui — interrompi.

Allusia assentiu.

— Entendo. Então, Mui...

— O quê?

Os olhos de Allusia estavam fixos na Mui. Pelo visto, tinha acontecido alguma coisa enquanto ela estava fora. O que será que ela fez?

— Alguém do instituto mágico veio confirmar sua aptidão — disse Allusia. — Vamos discutir seu futuro, incluindo se haverá punição ou não, depois que—

— Eu chegueeeeei, Allusia! — Uma pessoa de voz animada invadiu a sala, escancarando a porta. — Ouvi dizer que encontraram uma futura maga! Hm? Você tá aqui também, Beryl? E você deve ser a garota em questão?!

A recém-chegada foi direto até a Mui. Os cabelos loiros platinados esvoaçavam atrás dela.

— Q-Quem diabos é você?!

Mui claramente ficou chocada com a entrada repentina. E eu entendia perfeitamente. Tive a mesma reação na nossa primeira reunião. Mas sabe, Mui... essa aí é a chefona do corpo mágico. Infelizmente.

— Opa. Desculpa pelo susto. Eu sou Lucy Diamond. Ocupo o cargo de comandante no corpo mágico do Reino de Liberis.

De algum jeito, Lucy conseguiu se acalmar um pouco. Continuava minúscula como sempre — era uma cabeça mais baixa que a própria Mui. Quem não a conhecesse jamais acreditaria que ela ocupava um cargo tão alto.

— O quê? — Mui zombou. — Você é só uma pirralha.

Lucy ficou indignada.

— Quem você tá chamando de pirralha?! Você é que é uma tampinha!

— Quem você chamou de tampinha?!

— Agora, agora, vamos com calma — falei.

Obviamente, ia acabar assim mesmo. A Mui reagiu do jeitinho que eu esperava, e a Lucy também. Já tinha passado por um bate-boca igual com a Lucy antes, então senti até uma pontinha de nostalgia enquanto tentava acalmar as duas. Me senti tipo... o responsável por elas.

— Mui, ela é mesmo a comandante do corpo mágico — falei.

— Sério? — Mui claramente ainda tava com o pé atrás.

Pra me convencer, a Lucy tinha feito uma demonstração mágica. Especificamente, ela invocou um baita fogaréu sem pedir licença... mas isso seria totalmente inapropriado dentro de casa. Não ia dar pra avançar enquanto a Mui não acreditasse na gente. O que fazer?

— Aqui. Agora acredita?

— Ah!

Enquanto eu pensava em tudo isso, Lucy criou uma pequena chama na palma da mão. Por que ela não fez isso comigo?! Por que teve que soltar uma labareda gigante?! Isso não é justo!

— Bom... Acredito que você seja uma maga — murmurou a Mui, ajustando um pouco a imagem que tinha da Lucy.

No mínimo, só uma maga conseguiria criar fogo do nada. Fiquei agradecido que isso bastou pra convencer a Mui, mas ainda tava meio chateado que a Lucy não fez o mesmo comigo. Só que agora não era hora de falar disso, então engoli em seco.

— Então? Presumo que é você quem tem os fundamentos pra usar magia? — perguntou Lucy com um sorriso, apagando o fogo. — Que notícia maravilhosa. Não importa a idade, sempre há escassez de magos.

Allusia logo interveio:

— Antes de chegarmos a isso... Lucy, ela tem certas circunstâncias atenuantes.

— Hmm?

A julgar pela atitude despreocupada da Lucy, parecia que ela ainda não tinha sido informada sobre a situação da Mui. Eu não sabia exatamente o que a Allusia havia dito a ela, mas considerando o quão rápido a Lucy chegou aqui, as coisas provavelmente foram feitas às pressas. Essa conversa teria sido bem diferente se ela soubesse do passado da Mui ou da questão da magia de ressurreição. Apesar do jeito espalhafatoso, a Lucy era totalmente séria quando o assunto era magia, então ela dificilmente ignoraria algo assim.

— Lucy, posso te perguntar uma coisa?

— Hm? O que foi?

Fiquei em dúvida se era certo tocar nesse assunto na frente da Mui, mas resolvi seguir em frente — mais cedo ou mais tarde, ela teria que saber da verdade. Se magia de ressurreição realmente existisse, seria uma coisa. Mas se não existisse, a Lucy com certeza não perdoaria alguém por extorquir uma criança com talento raro pra magia e transformá-la numa ladra de quinta. E, se tudo isso fosse uma farsa, eu teria que estar pronto pra dar apoio emocional pra Mui. Só podia torcer pra garotinha não sair por aí quebrando tudo.

— Magia de ressurreição existe?

O comportamento barulhento da Lucy e seus movimentos animados pararam de repente. A resposta dela foi curta e cruel.

— Não.

— M-Mentira!!! — gritou Mui. — Não mente pra mim!

Lucy se virou pra ela com o rosto sério.

— Não estou mentindo. Magia de ressurreição não existe neste mundo. Aposto minha vida nisso.


A expressão da Lucy era séria como nunca — não era o rosto de alguém contando piada. Acho que minha impressão sobre ela estava completamente errada. Como comandante da unidade mágica, era natural presumir que ela sabia mais sobre magia do que qualquer outro no país. E ali estava ela, negando totalmente a possibilidade. Talvez os mecanismos por trás da ressurreição simplesmente ainda não tivessem sido descobertos... mas se fosse esse o caso, a Lucy teria dito isso.

— I-Isso só pode ser mentira! Não pode ser... Não pode!!!

— Beryl, Allusia, o que exatamente está acontecendo aqui?

Vendo o quanto a Mui estava abalada, qualquer um perceberia que a gente não estava tratando magia de ressurreição como uma piada boba. Lucy me encarou, depois olhou pra Allusia, e então voltou os olhos pra mim. Ah, fala sério, pergunta pra Allusia! Quando se compara um velho com a comandante dos cavaleiros, o normal é dar prioridade pra segunda, né? Por que eu? Allusia percebeu o olhar da Lucy, mas não se meteu. Acho que vai deixar comigo mesmo.

— Aah, sobre isso...

Não tive escolha a não ser contar tudo pra Lucy — como conheci a Mui, sobre sua magia e o dinheiro que ela achava que precisava pra ressuscitar a irmã.

— Entendi...

Depois de ouvir toda a história em silêncio, Lucy assentiu. Não havia desprezo nem pena em seu rosto. Ela apenas escutou, completamente séria o tempo todo.

— Muito bem — Mui, não é?

— Merda... Por quê? Por quê?!

Mui não respondeu. Manteve a cabeça baixa, os olhos vagando de um lado pro outro, murmurando pra si mesma. Já esperava por isso — a revelação foi um choque enorme pra ela. Ainda assim, ela não se entregou ao desespero — e isso mostrou o quanto era emocionalmente forte. Fisicamente e mentalmente, ainda era só uma criança, então o simples fato de estar aguentando firme já era mais do que suficiente.

Quando alguém fala sobre magia de ressurreição, não seria absurdo rir ou ignorar por completo. De tão irreal que soa, qualquer um com um mínimo de educação reagiria assim. Mas pra uma criança, é diferente. E isso vale em dobro pra uma que nunca recebeu a educação adequada. Com algumas mentiras bem contadas, adultos mal-intencionados podem empurrar crianças imaturas por caminhos inumanos.

Eu mesmo nunca passei por algo assim, mas sabia que era uma história comum. No nosso dojô, apareciam crianças de todo tipo. Tínhamos desde garotos espertos e bem-criados até os que pareciam não saber nada do mundo. O mundo de uma criança é surpreendentemente pequeno — existe um limite para o quanto uma mente jovem consegue absorver. É natural que elas acreditem nas mentiras de um adulto que pareça simpático e fale com lógica.

Por isso, achei essa situação imperdoável. A esgrima não era só aprender a balançar uma espada — era um meio de estudar muitas coisas, com a espada como ferramenta. Pelo menos era nisso que eu acreditava. Não achava que todo mundo precisava ser um santo, mas, no mínimo, os adultos tinham a responsabilidade de oferecer alguma orientação pra crianças que não sabiam nada sobre o mundo. Às vezes isso vinha dos pais, às vezes de uma figura de autoridade, outras vezes de um professor.

De qualquer forma, o criminoso que enganou a Mui não podia continuar convivendo livremente entre os adultos. Quem merecia punição de verdade não era a Mui, mas o desgraçado que a influenciou a roubar. Não que eu pudesse fazer algo a respeito, claro. Era como se um sentimento pesado de frustração e revolta estivesse se acumulando dentro de mim, sem ter pra onde ir.

— Ei, Mui — disse Lucy.

— Não pode ser... Como isso pode ser verdade?

— Mui!

— Ah!

Lucy praticamente gritou, e sua voz ecoou pela sala. Ao ouvir aquilo, Mui levantou ligeiramente os olhos.

— Quem foi que te contou isso? — perguntou Lucy.

— Por que... você quer saber?

— Pra dar uma surra — respondeu Lucy, sem rodeios. — Se alguém tá enganando uma criança tão pequena e forçando ela a cometer crimes, não dá pra deixar essa pessoa solta por aí. Além disso, é um pecado grave insultar os caminhos da magia.

Lucy lançou um olhar sincero pra Mui. Embora fosse meio rude pensar assim, achei surpreendente ver a Lucy brava por algo desse tipo. Eu já sabia que ela era absurdamente obcecada por magia... mas fazia sentido que ela não chegasse a comandante da unidade mágica sem um forte senso de ética. Quem encheu a cabeça da Mui com essas mentiras não podia ser perdoado. E eu concordava totalmente com isso, mesmo que tivesse que deixar a parte da surra pra ordem ou pro exército mágico.

— Fazer isso... não vai trazer minha irmã de volta...

Mesmo assim, Mui não se animou com a ideia. Ela vinha cometendo crimes com a firme convicção de que poderia ressuscitar a irmã — e as palavras da Lucy, de repente, destruíram tudo o que sustentava essa crença, deixando ela em estado de choque. Ainda assim, era bom termos chegado a um entendimento. Apesar de tão jovem, a Mui tinha uma força mental absurdamente assustadora.

— Mui. — Lucy se sentou ao lado da garotinha e colocou uma mão sobre o punho cerrado dela. — O que aconteceu com a sua irmã mais velha foi muito triste. Mas, se quem mentiu pra você continuar solto, tanto você quanto a dignidade da sua irmã vão continuar sendo manchadas. Você está bem com isso?

O olhar da Mui permaneceu fixo no chão. Era difícil encontrar as palavras certas em momentos assim. Às vezes, tentar consolar uma criança podia ter o efeito contrário. Nesse ponto, a Lucy praticamente acertou em cheio com o que disse. Alguém enganou a Mui. E, ao fazer isso, usou a morte da irmã como base pra uma mentira, desrespeitando não só a Mui, mas também a memória da irmã dela.

Eu não era um herói, um ladrão cavalheiresco ou um homem de justiça. Eu sentia indignação, mas não era impulsivo o bastante pra sair correndo e fazer algo a respeito. Além disso, eu tinha acabado de conhecer a Mui. Com a Lucy, no entanto, era diferente. Ela não ligava pra essas coisas — agia por alguém que tinha acabado de conhecer, até por uma ladra de quinta. Os sentimentos dela eram muito mais puros que os meus. Dá pra dizer que isso era parte essencial de quem ela era. Igual ao nosso primeiro encontro. Ela tinha se deixado levar por uma emoção intensa e resolveu testar seus poderes contra as minhas habilidades. Mas, nesse caso, o que a guiava era um senso de justiça muito mais forte.

— Eu não... É óbvio que eu não tô bem com isso — Mui mal conseguiu dizer.

— Isso mesmo. Sua dignidade, e a da sua irmã, precisam ser protegidas. E só você pode fazer isso — respondeu Lucy sem hesitar.

Eu e a Allusia já éramos meros espectadores. Não era o nosso lugar pra interromper — o certo era ficarmos em silêncio. Mesmo tendo conhecido a Mui depois da gente, era a Lucy quem estava mais próxima dela.

O jeito que ela desviou a conversa da existência da magia de ressurreição também foi bem feito. Conseguiu redirecionar o sofrimento mental da Mui pra um fator externo com bastante habilidade. Acho que isso é sabedoria de mulher mais velha. Não que esse fosse o momento de tirar sarro disso. Beleza... tomara que isso resolva as coisas.

— Eu nunca soube... o nome do cara que me contou sobre a magia de ressurreição — Mui murmurou. — Ele só se chamava de “Crepúsculo”.

— Crepúsculo...

Essa palavra não significava nada pra mim, obviamente. Dava pra imaginar que era algum tipo de codinome, mas isso não dizia nada sobre quem ele era de verdade.

— Crepúsculo — repetiu Allusia. — Provavelmente é a Mão Sombria do Crepúsculo.

— Você sabe de quem ela tá falando, Allusia? — Essa pergunta era tudo que eu conseguia contribuir como espectador.

— Sim. É um bando de ladrões — esse nome tem aparecido com frequência perto da capital. Se tem alguém se chamando de Crepúsculo, é provável que seja o líder.

— Eu também ouvi falar deles — disse Lucy. — Devem ser só ratos se esgueirando nas sombras.

Pelo visto, esse tal de Crepúsculo não era grande coisa. Se ele fosse do mesmo nível dos comandantes da Ordem de Liberion ou do corpo de magos, a situação estaria muito mais séria, talvez até exigindo uma força de subjugação. Mas como não tinham enviado nenhum tipo de tropa, é sinal de que essa organização não devia ser tão perigosa assim. Provavelmente eram só ladrões comuns, no fim das contas.

— Não existe cicatriz maior pra sua dignidade do que ser manipulada por ratos como esses — disse Lucy. — Fique tranquila, pequena. Eu vou acabar com eles.

— Eu acreditei nele. Eu realmente acreditei nele...

Opa. A Lucy pisou na bola. Diminuir demais o tal de Crepúsculo só deixou a Mui ainda mais deprimida. Afinal, ela tinha seguido direitinho o que ele dizia.

— Ah. É... foi mal por isso — murmurou Lucy, meio sem jeito.

Era difícil lidar com uma garotinha que tinha sido levada à ladroagem pelas circunstâncias. Se ela fosse só uma pirralha bagunceira, seria bem mais simples, mas a coisa não era tão fácil assim.

— Ah, sim. Você não tem pais? — perguntou Lucy.

Hã? Sério que você vai perguntar isso? Agora? Ela com certeza tem uma situação complicada. Eu apostaria que não tem pais por perto. Se tivesse, não estaria roubando por aí. Tô confuso, Lucy. Você sabe ou não sabe ler o clima? Decide aí!

— Eu não conheço meus pais... — respondeu Mui. — Desde sempre foi só eu e minha irmã.

— Você, por acaso, é moradora do distrito sudeste? — perguntou Lucy.

Isso despertou minha curiosidade. — Distrito sudeste?

Baltrain era composta de um distrito central cercado por quatro distritos: norte, oeste, leste e sul. Nunca tinha ouvido falar de um distrito sudeste. Era improvável que fosse só ignorância minha. Mesmo desconsiderando os turistas locais e estrangeiros, Baltrain tinha um fluxo enorme de pessoas e mercadorias entrando e saindo da cidade. Uma cidade grande assim precisava ter sua geografia bem definida. Até o Kewlny não tinha mencionado nada sobre isso durante nosso passeio pelo distrito oeste.

— As terras entre a fronteira dos distritos leste e sul são baratas e mal cuidadas — explicou Allusia, com uma expressão amarga. — Por conveniência, os locais deram esse nome e—

— Ah, tudo bem, Allusia. Já entendi — assenti com a cabeça.

Aquilo já era informação suficiente pra mim. Em resumo, era uma favela. Devia ser difícil pra Ordem de Liberion, que prezava tanto pela ordem pública, admitir a existência de um lugar assim. Isso seria o mesmo que confessar publicamente que não estavam cumprindo com o dever deles. Naturalmente, a culpa não era só da Ordem — a existência de favelas indicava um problema administrativo. Quando um assentamento crescia demais, surgiam várias correntes sociais que prendiam as pessoas. Não que isso tivesse algo a ver com um caipira como eu...

— Só pra constar, também existem magos vindos do distrito sudeste — disse Lucy de repente. Talvez ela achou que minha troca de palavras com a Allusia tinha sido um pouco preconceituosa, então jogou essa informação (francamente desnecessária).

— Eu não falei nada... — Não era minha intenção discriminar quem morava lá. Nosso dojo já tinha treinado um monte de alunos com origens estranhas ou desconhecidas. — Não importa onde a Mui nasceu ou foi criada — ela ainda é a Mui — falei. — O único fato que importa é que ela é uma garota com potencial pra se tornar uma maga, certo?

— Isso mesmo — confirmou Lucy.

Mui ainda tinha cometido um roubo, então era justo que ela enfrentasse algum tipo de punição ou, no mínimo, uma bronca. Se isso redimisse seus crimes, ela teria um histórico limpo e poderia frequentar o instituto de magia sem arrependimentos. Primeiro, precisávamos livrá-la dos sentimentos de culpa e arrependimento.

— Perdão, nos desviamos do assunto — disse Lucy. — Mui, você sabe onde esse tal de Twilight está?

— Não sei se ele está lá... mas temos uma base no distrito central.

— Distrito central? — murmurei.

Eu não tinha inspecionado cada canto do distrito central, nem era exatamente íntimo da área, mas não tinha visto nenhum sinal de um grupo perigoso se reunindo por lá. Ou talvez fosse justamente porque estavam se escondendo que os cidadãos comuns não percebiam sua presença.

— Allusia. Como a ordem vai agir? — perguntei.

— Vamos ver... Se intensificarmos as patrulhas com foco em reunir informações e conseguirmos localizar o esconderijo deles, então um ataque direto à base pode ser considerado.

A voz de Allusia era baixa, mas dava pra sentir a firmeza nas palavras dela. Como responsável pela ordem pública na capital, ela não podia tratar aquela situação com leveza. A organização com tanta autoridade dada pelo país não ia ficar de braços cruzados sabendo que havia um covil de criminosos por perto. Ainda mais com Allusia no comando.

Nesse ponto, eu não me opunha em ajudar. Não sabia até onde meu cargo de instrutor especial poderia ser usado, mas eu não era um completo estranho nessa situação. Se minha força pudesse servir de algo, eu queria contribuir. Eu certamente conseguiria lidar com ladrões que não eram especialistas em combate.

Lucy virou o olhar na direção de Allusia e suspirou.

— Por que você tá levando isso tão na boa? Eu vou esmagá-los agora mesmo. Mui, mostra o caminho.

— Agora?! — Allusia e eu exclamamos ao mesmo tempo.

— V-Você vai mesmo agora? — perguntei.

— Claro — respondeu Lucy, sem rodeios.

Ela tinha razão — era melhor agir rápido. Mesmo que provavelmente estivesse certa, parecia que ela tinha tomado a decisão rápido demais. Não era como se isso precisasse ser resolvido imediatamente. Mas também não era hora de cruzar os braços. Arrancar o mal pela raiz era melhor quando feito cedo. Ainda assim, resolver isso aqui e agora parecia algo complicado. Isso não ia ser um passeio no parque.

— Acredito que você está sendo apressada demais — disse Allusia. — Devíamos tirar um tempo pra nos preparar e reunir informações.

— Você continua a mesma certinha de sempre, Allusia — retrucou Lucy, com um olhar sério. Ela tinha aceitado meu espanto e a insistência de Allusia em fazer preparativos, mas sua lógica também fazia sentido — um ataque surpresa e imediato podia ser a melhor opção.

— Primeiro, precisamos considerar quem é esse tal de Twilight — disse Lucy, levantando um dedo. — Pra ser sincera, eu não sei muito sobre ele. Tanto eu quanto a Allusia já ouvimos esse nome, e ainda assim nunca conseguimos pegá-lo. Ele deve ser esperto.

— Então não seria ainda mais importante se preparar? — contestou Allusia.

Eu não sabia exatamente qual era a postura da Ordem de Liberion e do corpo mágico em relação à ordem pública. No mínimo, não era política deles atacar qualquer inimigo à vista. Por mais autoridade que tivessem, isso seria completamente desequilibrado. Por outro lado, também não podiam simplesmente deixar criminosos agirem livremente.

Nesse sentido, a Mão Negra do Crepúsculo era um problema — era uma quadrilha conhecida, com nome e fama, mas que nunca tinha sido capturada. Podia-se dizer que eram bons em fugir. Por isso, o raciocínio de Allusia era que o melhor seria preparar-se bem e cortar todas as rotas de fuga possíveis.

— Você tá vendo isso do jeito errado — disse Lucy. — Isso é responsabilidade da ordem, sim, mas se demorarem demais, eles vão escapar de novo. A informação que a Mui trouxe vai ser desperdiçada.

— Entendo...

Lucy realmente tinha um ponto — os ladrões com certeza estavam atentos. Se os cavaleiros começassem a fazer perguntas, patrulhar mais ou agir de alguma forma, os bandidos perceberiam. Eles sabiam que eram criminosos, e se notassem que a lei estava se aproximando, dariam no pé rapidinho. Na verdade, era exatamente por serem tão rápidos em reagir que ainda não tinham sido capturados.

O plano da Lucy era dar o bote de uma vez só, antes que percebessem que estavam na mira. Normalmente, teríamos que procurar a base deles, mas a Mui era a carta na manga. Já que ela sabia onde era, podíamos ir direto ao ponto.

— Além disso, o que vocês vão fazer com a Mui enquanto ficam se preparando? — apontou Lucy. — Mesmo que a levem pra proteção, eles não vão desconfiar do sumiço dela?

— Eu consigo me virar muito bem sem a ajuda de vocês... — protestou Mui.

— Sem ter que roubar? — perguntou Lucy.

— Tch...

Provavelmente não. Talvez ela conseguisse continuar se virando se continuasse roubando, mas infelizmente pra ela, ninguém naquela sala aprovava isso. A outra opção seria colocá-la direto no instituto de magia, mas isso exigia seguir os trâmites certos e organizar tudo antes.

De qualquer forma, a Mui tinha se recuperado bem mais rápido do que eu esperava. Ainda estava um pouco cabisbaixa, mas já tinha voltado a responder com grosseria, como na primeira vez que nos vimos. As circunstâncias dela ainda deviam estar corroendo por dentro. Mas apesar da idade, ela provavelmente já tinha entendido que não havia nada que pudesse fazer.

A irmã morta dela nunca voltaria. Talvez, no fundo, ela já soubesse disso. Mas por não querer aceitar essa realidade, continuava roubando carteiras. Se quiséssemos quebrar esse ciclo, teríamos que derrubar esse tal de Twilight. Bom, não que eu fosse fazer algo a respeito. Justiça com as próprias mãos era ilegal.

— Certo. Tem um ditado que diz que devemos bater o ferro enquanto está quente — disse Lucy. — Vamos, Mui, Beryl.

—Hã? Eu?

Eu também? Achei que você fosse levar a Allusia! Nem tô armado agora! Minha espada querida foi partida ao meio... A única coisa que eu tenho agora é de madeira.

—A Allusia chama muita atenção — explicou Lucy. — Se o comandante dos cavaleiros for visto rondando por aí, isso já é o suficiente pra levantar suspeita e fazer todo mundo correr.

Eu até queria dizer que a própria Lucy chamava bastante atenção também. Mas, de longe, ela parecia só uma garotinha.

—Tudo bem ir, mas... eu tô desarmado, sabe?

—Leva uma espada de madeira — disse Lucy. — Você pretende matar um monte de ladrões de quinta?

—Uaaaah...

Claro que eu não queria matar ninguém, mas vai saber com o que esses caras tão armados. Parecia meio perigoso ir sem uma lâmina de verdade do meu lado.

—Relaxa — insistiu Lucy. — Com a sua força, você não vai ter problema nenhum. E se piorar, eu te protejo.

—Haaah... Tá bom.

Eu ainda tava um pouco preocupado, mas ter alguém forte como a Lucy por perto me deixava um pouco mais tranquilo. Se as coisas ficassem feias, eu podia recuar e focar só em proteger a Mui. A Lucy sabia se cuidar sozinha — o fato de ela ter dito que ia me proteger significava que esses ladrões não eram nada pra uma maga do nível dela.

Quando percebi, Lucy já tinha assumido o controle da situação. Ela se virou pra Mui.

—Você tá de boa com isso? — perguntou.

—Tô... — Mui hesitou por alguns segundos. — Tudo bem. Eu levo vocês lá.

—Tenho certeza de que vocês dois vão dar conta, mas tenham cuidado — disse Allusia, se despedindo.

—Uhum.

—Valeu.

Com isso, eu, a Lucy e a Mui saímos do escritório da Ordem.

O sol já tava se pondo, quase encostando no horizonte do oeste. Queria resolver logo esse ataque relâmpago antes que escurecesse de vez.

A Mui guiou a gente pelo distrito central, e a Lucy parecia entediada por não ter nada pra fazer.

—Ah, sim — disse Lucy, virando-se pra Mui. — Quanto de magia você consegue usar?

Mui hesitou um pouco, mas respondeu depois de um momento:

—Consigo soltar umas labaredas... mas só isso.

—Hmm. Quem te ensinou o básico da magia?

—Sei lá. Eu só... consegui um dia e comecei a usar.

—Entendo. Que talento.

—Hmph.

Elas continuaram nesse bate-papo rápido. Julgando só pela aparência, pareciam duas garotinhas tendo uma conversa tranquila. Hm, a combinação de duas menininhas com um velhote é mesmo bem desequilibrada. Se alguém me parasse pra perguntar o que eu tava fazendo, ia ser difícil arrumar uma desculpa. Ainda bem que a Lucy tava aqui — aí acho que passava.

De qualquer forma, a Mui usava magia só porque conseguia. Fiquei pensando por um momento nos jeitos que um mago podia manifestar seus talentos — o processo todo era ainda mais confuso do que eu achava. Mas isso explicava por que o reino vivia correndo pra lá e pra cá tentando recrutar usuários de magia. Achar um mago era tipo olhar pra uma pedrinha na rua e ela de repente virar ouro. Liberis não podia deixar passar nem uma chance dessas.

Falando nisso, sobre encontrar usuários de magia...

—Aliás, Lucy, como você ficou sabendo disso tudo? — perguntei. Imaginava que a Allusia tinha contado quando saiu da sala de recepção, mas não fazia ideia de como a informação chegou tão rápido até a Lucy.

—Usei um dispositivo de comunicação mágica — ela respondeu. — Eles são instalados em estabelecimentos importantes, como o escritório da Ordem e o Instituto de Magia. Tenho um na minha casa também, mas é grande demais pra carregar.

—Hmm... Que conveniente.

Então esse tipo de coisa existia mesmo. A magia realmente tinha uma lista infinita de usos. Parecia útil demais, mas eu não precisava entrar em contato com ninguém com frequência, e ninguém precisava falar comigo também. Quem quisesse falar comigo normalmente ia até o escritório da Ordem. E se algo muito sério acontecesse, era só procurar a Allusia que ela resolvia.

Fiquei curioso sobre como as coisas estavam em casa — será que meu pai e o Randrid tavam bem em Beaden? Pensando bem, meu círculo social era bem pequeno. Mas eu era só um caipira do interior. Não importava se meu círculo crescesse ou não, não conseguia imaginar uma situação em que eu precisaria de um dispositivo de comunicação mágica. Pra mim, isso era o senso comum, então não ter um não me parecia nenhum problema.

—Ei, estamos quase lá — disse Mui de repente, encerrando nossa conversa fiada.

Apesar das circunstâncias, ela tava traindo o lugar onde sempre viveu. Aposto que tem muita coisa passando pela cabeça dela. Provavelmente ela nem tava cem por cento segura sobre essa decisão.

Mesmo que o estilo de vida dela fosse malvisto pela sociedade, ser ladra já fazia parte da identidade dela. E considerando a idade, talvez ela fizesse esse tipo de coisa há boa parte da vida. Mas, para o bem ou para o mal, ela conheceu a mim, a Allusia e a Lucy. As conexões que ela fez por um acaso do destino estavam tentando rasgar o tecido da realidade dela. Eu só podia torcer pra que essa nova vida não trouxesse mais desgraça. Na minha opinião, limpar completamente os crimes dela e entrar pro Instituto de Magia era um caminho muito melhor do que depender de um bando de ladrões. A Lucy devia saber disso também, por isso estava ajudando.

—Parece que não tem ninguém de guarda — comentei.

—Estamos no meio do distrito central — disse Lucy. — Colocar guardas aqui chamaria atenção demais.

Chegamos num lugar a uns dois quarteirões da rua principal do distrito central. Ainda não era exatamente noite, então tinha bastante gente andando por aí. O lugar pra onde estávamos indo não parecia diferente de qualquer outra casa, então se a Mui não tivesse nos guiado, a gente podia ter passado direto.

— Mui, tem certeza de que é essa a casa? — perguntou Lucy.

— Tenho sim. Certeza absoluta.

Agora... como a gente vai atacar? Eu não fazia ideia do layout interno da casa — nem sabia quantas pessoas estavam lá dentro. Provavelmente não estava lotada, mas não dava pra contar com isso. Afinal, esse esconderijo era um ponto ideal pra tocarem as operações deles. Tinha muita gente e comércio por perto, o que ajudava eles a se misturarem e ainda oferecia bastante "presa". Um bando de ladrões não ia querer largar um lugar desses se pudessem evitar. Então, mesmo que não tivessem vigias, era bem provável que tivessem gente pronta pra agir a qualquer momento.

É só pensar nisso como uma dungeon: sempre assuma o pior, prepare-se e aja pra superar qualquer obstáculo.

Enquanto eu estava perdido nos meus pensamentos, Lucy marchou na direção da casa.

— Muito bem. Vamos?

— Hm?

Ela não vai soltar magia aqui, vai? Estamos no meio do distrito central de Baltrain, bem no centro da cidade. Tem casa dos dois lados. Destruir o esconderijo por fora seria loucura.

— Com licencinhaaa! — gritou Lucy, arrombando a porta.

Aaah, então esse é o plano. Invadir pela porta da frente. Sinto que perdi tempo demais pensando em estratégia. Mas... é bem a cara da Lucy mesmo.

— Quê?! Quem tá aí?!

Os ladrões reagiram à visita inesperada. Como se fosse uma resposta, uma porta mais ao fundo se escancarou e alguém gritou com raiva.

— Hein? Só uma pirralha? Qual é, garotinha, se perdeu?

No momento em que o cara viu a Lucy, a atitude dele mudou um pouco. No fim das contas, tudo que a Lucy tinha feito até ali foi abrir a porta de forma espalhafatosa. Esses caras tinham montado base no centro da cidade, e tinha muita gente circulando do lado de fora, então eles provavelmente não queriam chamar atenção. Fazer algo muito escandaloso seria burrice.

Mas sério, galera... vocês podiam pelo menos ter trancado a porta. Estão bem relaxados pra um bando de ladrões.

De qualquer forma, parecia que o rosto da Lucy não era muito conhecido do público. Achei que alguém como ela — a comandante da tropa mágica — chamaria muito mais atenção. Mas o cara que estava falando com ela claramente não reconheceu quem ela era.

— Hmm... Vocês são a Mão Sombria do Crepúsculo, por acaso? — perguntou Lucy.

O homem se encolheu. — O quê?!

Ele agarrou Lucy pelo cangote na mesma hora. Eu mal ouvi ela murmurar “Ai, ai...” antes de o sujeito jogar ela pra dentro do prédio e bater a porta com força.

— Droga! — gritei. — Você é um saco, viu?! É isso que acontece quando entra sem pensar!

Corri até a porta, mas dessa vez eles tinham trancado. Por mais que eu empurrasse ou puxasse, não adiantava nada.

— Hmm... Será que eu arrombo isso aqui? Não...

Não era muito elegante arrebentar uma porta assim do nada. Forcei os ouvidos, tentando ouvir o que rolava lá dentro, mas o barulho da rua abafava quase tudo. Meu ouvido não era lá grandes coisas.

— Gyaaaah!

Mas aí, como se me tirasse sarro por estar hesitando, ouvi um grito vindo de dentro — alto o suficiente pra nem importar se meu ouvido era bom ou não.

— Aaah! Mas que inferno!

Eu não sabia o que estava acontecendo lá dentro. Mas aquela voz gritando não era da Lucy, então duvidava que ela estivesse em apuros. Ainda assim, tinha alguém gritando, então não dava mais pra ficar parado.

— Mui, se afasta!

— H-Ei?!

Firmei as pernas e comecei a chutar a porta com toda força. Se eu tivesse uma espada de verdade, feita de metal, dava pra quebrar uma porta de madeira fácil, mas a única arma comigo também era de madeira. Não tinha escolha a não ser ir na base da brutalidade mesmo. A cada chute, ficava mais e mais ansioso com o responsável por toda essa situação.

No fim das contas, a tranca não era tão resistente assim. Depois de alguns chutes, ela começou a entortar e ranger.

— Tá abrindo!

Mais precisamente, a tranca quebrou. No último chute, ouvi o estalo metálico do trinco se rompendo. Arrebentei a porta e entrei correndo.

Tinha um cara caído no chão, se contorcendo de dor. Ele cobria o rosto com as duas mãos e dava pra ver uma fumacinha saindo pelos dedos. É, certeza que foi a Lucy. Aposto que ela queimou o rosto dele. Mesmo ele sendo um canalha, me peguei torcendo pra que ela tivesse pegado leve e que a magia não deixasse uma queimadura séria. Eu com certeza não ia querer passar por isso.

— Q-Quem diabos são vocês, seus desgraçados?!

Eu ainda não tinha uma visão completa da situação, mas a Lucy com certeza tinha feito alguma coisa. Tinham mais uns sujeitos com cara de poucos amigos dentro da casa, e todos pareciam bem irritados. A entrada dava pra uma sala de estar até que espaçosa. No meio do cômodo tinha uma mesa oval, com várias cadeiras derrubadas ao redor. Pelo que consegui contar — incluindo o cara no chão — tinham cinco homens e uma mulher. E como tinha uma escada lá no fundo, imaginei que podia ter mais gente no andar de cima.

No centro daquela confusão toda estava a Lucy.

— Oooh, Beryl. Bom trabalho. Enfim, que sujeito grosseiro, me jogando aqui pra dentro do nada!

Ela nem parecia nervosa. Não demonstrava nem um pingo de culpa. O homem no chão já não gemia mais, mas ainda rolava de um lado pro outro com as mãos no rosto.

De repente, outro cara se virou pra mim, a voz alterada:

— Aaah? Você tá com essa pirralha aí?!

Dava pra sentir a crítica e a irritação na voz do sujeito. Mas mesmo com toda aquela situação bizarra, nenhum dos ladrões fez menção de atacar. Bom, melhor assim do que virem todos pra cima.

— Dois pirralhos esquisitos e um velho... — murmurou um deles, com os olhos passando por cada um de nós. Então o olhar dele parou na Mui. — Hm? Ei, você — a fedelha ali no fundo. De onde é que eu te conheço?

O tom dele mudou de confuso pra convicto num instante. Mui ficou tensa quando ele apontou pra ela.

—Só ignora ele —falei, dando um tapinha na cabeça dela.— Você tá fazendo a coisa certa.

Não havia motivo nenhum pra Mui se culpar. Mesmo que estivéssemos fazendo algo errado, fui eu e a Lucy que forçamos isso nela. Agora era papel dos adultos assumirem a responsabilidade. Por impulso, acabei colocando a mão na cabeça dela, mas talvez o ombro fosse melhor. Não queria que a pirralha me odiasse tanto. Não que o nosso relacionamento fosse lá grandes coisas no momento.

—N-Não pode ser, você é—!

O dedo do cara tremia levemente. Mui não conseguiu aguentar o olhar acusador dele e baixou os olhos pro chão.

—Sua pirralha desgraçada!

Uma força hostil tinha acabado de aparecer no esconderijo deles, acompanhada de uma ladra conhecida—não era difícil entender o que tava acontecendo. Em resposta a essa revelação, um dos homens furiosos se jogou pra cima da Mui. Mas que azar o dele. Quando ele esticou a mão, eu desci minha espada de madeira com força no pulso dele.

—Guh?!

—Foi mal, mas vou me meter nessa.

—Muito bem, Beryl. Acaba com eles —disse a Lucy, ainda agindo com aquele ar despreocupado enquanto observava a nossa pequena troca.

Faz alguma coisa também, caramba! Não era você que devia cuidar disso? Aliás, pensando bem—melhor segurar um pouco. Cara, é difícil saber quando é a hora certa de usar um mago.

De qualquer forma, era complicado balançar uma espada nesse cômodo apertado. Mas, pelo nível do cara que veio pra cima da gente, esse grupo aí não parecia ser lá muito habilidoso em combate, então provavelmente ia dar tudo certo no fim.

Logo depois que rebati o ataque, um silêncio estranho tomou conta do lugar. Esse silêncio só foi quebrado com a aparição de um homem grande, espiando do alto da escada nos fundos.

—Que barulheira é essa? —perguntou ele.

—C-Chefe! Invasores! —gritou a ladra com a voz esganiçada.

Chefe, é? Esse brutamonte aí deve ser o manda-chuva. Se ele for o tal “Twilight” que a gente tá procurando, talvez isso se resolva rápido.

—Twilight...

E justo quando pensei nisso, a Mui murmurou o nome dele com um tom sombrio. Oooh, então é ele mesmo. Seria ótimo só socar ele e sair fora. Mas se deixarmos a limpeza pros cavaleiros, tudo deve se resolver de um jeito ou de outro.

—Quem diabos são vocês? —perguntou Twilight.— Que recepção chique essa, hein? Cês sabem que tão no meio da capital, né?

O homem desceu as escadas com uma calma e controle que eu não esperava, considerando o tamanho dele. E ele era grande mesmo—maior que eu. Mesmo com aquelas roupas, dava pra ver que o corpo dele era bem treinado. A cada passo que dava, dava pra ouvir o som de metais tilintando—parecia usar um monte de acessórios como colares e pulseiras. O cabelo longo tava preso pra trás, e ele carregava uma espada curta meio gasta na cintura.

Quero ter certeza que ele é o cara certo.— Então você é o Twilight? —perguntei.

—Não tenho que responder isso —respondeu ele com desdém.

O fato dele não negar já era resposta o suficiente pra mim. Eu tinha certeza de que era ele. A subordinada dele tinha gritado sobre invasores, então esse lugar era claramente um covil de ladrões. E ainda chamou ele de Chefe, então era óbvio que ele mandava ali. Mesmo que ele não fosse o Twilight, já tínhamos motivos de sobra pra prender todo mundo.

O pior cenário seria se a Mui tivesse mentido pra gente, ou se tivesse se enganado e nos levado pra casa de um civil qualquer. Fico feliz que evitamos esse desfecho. Ia pegar muito mal pro exército e pro corpo mágico sair por aí tratando pessoas comuns como criminosos. E a Lucy tava especialmente fora da linha—se ela machucasse alguém inocente, a situação ia ficar ainda pior.

—Oh? —O homem que eu achava ser o Twilight deixou o olhar cair sobre a garota ao meu lado.— Você é... como era mesmo o nome? —Ele bagunçou o próprio cabelo, tentando puxar da memória.— Ah, certo. Mui, né? Isso mesmo. Então, o que cê tá fazendo aqui? Por que trouxe esse povo violento pra cá? Cê não queria ressuscitar sua irmãzinha com ma—

No momento em que ele soltou aquelas palavras, o ar dentro do prédio mudou.

Lucy começou a emanar uma sede de sangue absurda.

—Você ousa profanar o bom nome da magia? —ela sibilou, a voz fria dela ecoando pelo cômodo.

—Ah? Quem é essa pirralha? Pera aí... você é a Lucy Diamond?

A atitude do homem mudou também. Ele aparentemente reconheceu quem era a Lucy—ou melhor, o que ela representava. Mas não parecia ter certeza. Fiquei até curioso—o que será que entregou a identidade dela?

—Hmph. Pensar que um marginal qualquer conheceria meu nome.

—Ha ha ha! É uma honra te conhecer —disse o homem.— Então foi você quem enganou a nossa pequena Mui?

—Foi você quem enganou ela —retrucou Lucy.

—Oooh, que assustadora. Você é bem cruel, hein.

Os dois continuavam trocando farpas. Twilight se aproximava da Lucy devagar, mas com firmeza, e dava pra perceber que ele tava testando a gente, vendo se podia resolver tudo só na conversa. E agora, o que fazer? Eu sabia muito bem o quão forte a Lucy era, então não tinha necessidade de protegê-la. Mas estávamos em um lugar fechado, sem espaço pra uma batalha de verdade—ela provavelmente não podia sair lançando magia por aí, ia afetar tudo ao redor. Quando ela me atacou fingindo ser um duelo amigável, tinha escolhido uma área bem ampla no distrito central, com poucas pessoas e prédios por perto.

As habilidades do Twilight ainda eram um mistério. Não dava pra prever o que ele podia fazer. Se ele fosse algum tipo de guerreiro, quanto mais perto estivesse, mais vantagem teria. Era perigoso deixar ele se aproximar demais.

Mesmo enquanto eu pensava nisso, ele já tinha chegado bem perto da Lucy—se desse mais um passo, estaria ao alcance de tocá-la.

—Enfim, por agora... —os olhos de Twilight brilharam com um olhar afiado.— Que tal morrer?

Ele levantou a mão direita, e o som de metais tilintando ecoou pelo salão. Os outros brutamontes relaxaram, suas expressões um misto de alívio, desdém e confiança recuperada. Eles deviam ter uma fé considerável nas habilidades do chefe. Agora então... o que será que Twilight e Lucy vão fazer em seguida? Todos os olhos estavam voltados para eles — inclusive os meus.

Quem se moveu primeiro foi Lucy Diamond. Ela soltou um pequeno suspiro e ergueu a mão direita.

— Hrk...

No instante seguinte, os olhos de Twilight reviraram e ele caiu de joelhos, sem forças.

— Haah... Que tolice.

Lucy parecia exasperada. Não demonstrou nenhum tipo de comemoração pela vitória, nem mesmo aquela satisfação que exibiu quando lutou comigo. Apenas olhou para o homem caído com frieza, como se dissesse silenciosamente o quanto estava decepcionada.

Espera aí. O que ela fez? Twilight levantou a mão, depois a Lucy fez o mesmo e... ele simplesmente desabou?

— Q-Que foi isso? — murmurei sem perceber.

De onde eu estava, só consegui ver o Twilight caindo do nada. Se eu não soubesse que a Lucy era uma maga, teria pensado que ele simplesmente se autodestruiu.

— Hm? Beryl, você nunca viu isso antes?

— Hã? Aaaaah.

Pensei por um instante, e de repente me dei conta. Era aquilo...

Na minha primeira luta contra a Lucy, quando ela me forçou a enfrentá-la, ela tinha usado uma magia poderosa no final — como uma carta na manga. Eu só consegui desviar por sorte. Nunca soube o nome daquela magia. Só sabia que era difícil de evitar ou bloquear, e que um golpe direto seria fatal.

— Relaxa, eu não matei ele — acrescentou Lucy.

— Ah, entendi... — Não parecia nada disso, mas não tive escolha a não ser confiar na palavra dela. Afinal, não havia nada que eu pudesse fazer.

— Um, dois, três... seis? Que saco. — Os olhos de Lucy passaram do corpo caído de Twilight para os capangas.

— Eek!

A violência inimaginável nos olhos daquela garotinha fez os ladrões engolirem em seco. E eu entendo eles. Também não queria ser acertado por magia nenhuma.

— Beryl — disse Lucy. — Cuida do resto.

— Waaah...

Depois de dar uma olhada nos ladrões restantes, Lucy jogou toda a responsabilidade pra mim e chamou a Mui com um gesto. Pegou duas cadeiras, se jogou em uma e esperou. Mui parecia não fazer ideia do que fazer, mas claramente estava intimidada pela Lucy, então se sentou, bem sem jeito.

A expressão de total desconforto da Mui me marcou. “Cuida do resto”, ela disse. Mas o que exatamente eu tenho que fazer? Não vamos deixar eles escaparem, certo? É fisicamente impossível capturar todos. Será que eu só tenho que nocautear eles pra não conseguirem correr?

— Droga... Fiiilhoo daaaa...!

Um dos ladrões se encheu de coragem, soltou um berro e veio pra cima de mim. Esses caras realmente não pareciam ser bons de briga — eram bem mais lentos que um cavaleiro comum, que dirá que Allusia ou Henbrits. Pelo que vi, eu estaria bem, mesmo se todos atacassem ao mesmo tempo.

— Hup.

— Ugh?!

Desviei facilmente do soco supertelegrafado dele, ergui minha espada de madeira e acertei com força no queixo exposto. Não o mataria — desde que ele não mordesse a língua. Eu vivia fazendo batalhas de treino com os cavaleiros da Ordem de Liberion, então a diferença de nível entre mim e esses ladrões era absurda.

Aquele único golpe foi o bastante pra derrubar o cara. Mesmo se ele tivesse o corpo treinado, não conseguiria ficar de pé depois de uma pancada daquelas no queixo. Fiz uma breve oração mental. Por mais que sentisse pena, não sou santo a ponto de demonstrar piedade.

— Seu desgraçado! — gritou um dos homens que restavam. — Todo mundo, avança junto!

A ordem reacendeu os ânimos dos que hesitavam após ver o companheiro caído, e todos partiram pra cima de mim ao mesmo tempo.

Bom, não era uma ideia totalmente ruim. Eu não podia me mover direito nesse espaço apertado, então a melhor chance deles ganharem seria me forçar a um combate caótico, corpo a corpo. Mui não era combatente, e a Lucy tava ali de espectadora, então eu tava basicamente sozinho contra todos esses caras. Nessas situações, o número era mais eficiente que qualquer arma. Mas isso só valia mesmo pra um grupo bem treinado que soubesse coordenar ataques... ou pra bichos selvagens que lutam por instinto. Não achava que eu fosse fraco o suficiente pra ser derrubado por meia dúzia de ladrões que nem sabiam o que estavam fazendo.

— Hmph!

— Gah?!

Dois deles vieram ao mesmo tempo. Dei meio passo pro lado e escapei do agarrão de um. O outro veio um segundo depois, e eu enfiei a guarda da espada na cara dele. Esse caiu, e aí eu bati com a espada na nuca do primeiro. Ele caiu sem emitir um som sequer.

— Ooooooh!

— Aqui.

— Hrk?!

Outro homem veio com uma adaga erguida. Acertei direto no pescoço exposto dele. Mesmo segurando um pouco a força, o cara apagou na hora. Meus pêsames.

— Maldito!

Outro tentou me derrubar com um tackle, e eu mandei o cotovelo direto no topo do crânio dele. Às vezes, o corpo é a melhor arma. Principalmente quando a velocidade é o mais importante. Espadachim era meu foco, claro, mas não foi a única coisa que treinei todos esses anos.

— Ugh...

Depois de levar uma no alto da cabeça, o sujeito caiu com a cara no chão. Dei um chute no pescoço dele só pra garantir. O barulho que ele fez parecia um sapo sendo esmagado, e depois parou de se mexer.

— E-Eeeeek!

— Opa.

A última mulher que restava deu um passo pra trás, apavorada depois de ver todos os outros caírem um a um. Hmm... não gosto de bater em mulher, mas ela é ladra. Perdão, mas você vai ter que dormir também.

— Foi mal por isso.

— Agh!

Dei dois passos na direção dela e acertei a barriga com minha espada. Bater no rosto teria sido demais, então preferi evitar. O impacto da minha espada de madeira a tirou do chão, e ela foi jogada contra a parede. Opa, acho que não peguei leve o suficiente.

— Ufa...

Com aquele último golpe, todos os ladrões estavam no chão. O que antes era uma casa barulhenta agora estava mergulhada num silêncio estranho.

— Velhote... você é forte pra caramba... — murmurou Mui, olhando para o estrago.

— Hm? Bom, contra esse tipo aí, até que sou.

Se essa demonstração de força foi suficiente pra impressionar ela, então era óbvio que nunca tinha lutado de verdade, nem passado por treinamento ou qualquer coisa desse tipo. Já imaginava. Se ela tivesse sido algo além de uma ladra—alguém envolvida com violência ou até assassinato—bem, eu não saberia direito o que fazer. Mas de qualquer forma, eu não queria machucar a Mui.

— Hwaah... Bom trabalho — disse Lucy, abafando um bocejo. — Contando com o chefe, são sete pessoas, né? Já é mais do que o suficiente pra uma investigação.

— Investigação? — perguntei, meio confuso. Achei que já tinha acabado depois que pegamos esse tal de Twilight e os capangas dele.

— Dá uma olhada nos enfeites dele.

— Hmm? — Fiz o que Lucy mandou e encarei o Twilight desacordado, mas não entendo muito dessas coisas. — Bom... parecem chamativos, eu acho.

— Todos são equipamentos mágicos.

— Hã?

Equipamento mágico? Daqueles que a Ficelle gosta? Os itens que têm todo tipo de efeito mágico? Eram iguais aos que vi naquela loja de equipamentos mágicos quando passei pelo distrito oeste com a Kewlny e a Ficelle.

— Ele tá indo bem demais pra um batedor de carteiras — comentei, revendo minha impressão sobre o Twilight.

Equipamento mágico era caro, e o Twilight tava cheio de acessórios. Eu só tinha dado uma olhada rápida, e nem manjo dessas coisas, mas só pelo que vi, o que ele tava usando devia ter custado uma fortuna. Se todos fossem realmente mágicos (mesmo que eu não soubesse os efeitos), então ele tinha literalmente jogado muito dinheiro fora pra conseguir aquilo tudo.

— Muito provavelmente, alguém tá fornecendo esses equipamentos mágicos pra esses ratos — disse Lucy. — Aposto que esse é o verdadeiro mandante.

— Entendi...

Então tinha alguém por trás fornecendo equipamento mágico caríssimo pra ladrõezinhos de rua? Não era nada atrativo. O que será que tão tramando? Bom... não tem muito a ver comigo, né...

— Certo. — Lucy se levantou da cadeira e deu uma olhada geral no cômodo. — Acho que vou chamar a ordem pra lidar com isso.

— Eu mesmo não consigo carregar todos esses ladrões pra fora — falei.

Deixar a Ordem de Liberion cuidar do assunto era o caminho mais seguro e confiável. Infelizmente, eu não tinha autoridade pra convocar ninguém, então Lucy teria que avisar a Allusia.

Nunca tinha pensado nisso direito, mas qual era meu status dentro da nação, afinal? Eu não era um cavaleiro nem nada assim, mas como era instrutor especial da ordem, também não era exatamente um civil. Será que eu tinha mesmo autoridade pra prender e julgar criminosos? Dessa vez não teria problema, já que a comandante do corpo mágico tava comigo. Mas se algo parecido acontecesse quando eu estivesse sozinho? Qual seria a atitude certa? Eu não fazia ideia dos meus limites. Precisava perguntar isso pra Allusia. Se tudo que eu fizesse fosse dar aula de espada no quartel, não teria problema. Mas claramente não era só isso. Não dava pra garantir que eu não acabaria me metendo em confusão de novo, então era melhor entender logo até onde eu podia ir.

— Beryl, cuida da casa pra mim.

— Ah, beleza. Acho que é o jeito mesmo.

Lucy nos deixou pra trás. Pensando bem, com quem tínhamos ali, era mais eficiente eu cuidar dos ladrões enquanto Lucy levava o relatório. Na verdade, nem tinha outra opção. Agora eu estava sozinho com a Mui.

— O quê? — perguntou a garota, notando meu olhar.

— Nada...

A gente não precisava conversar, mas o clima estranho no ar era desconfortável. Estávamos no meio de um covil de ladrões, cercados por seis homens desacordados e uma mulher inconsciente. Não tínhamos feito nada de errado, mas mesmo assim eu me sentia meio culpado. Mui estava olhando pro Twilight com uma expressão complicada.

Ela devia estar sentindo raiva e decepção. Mas, sem dúvida, ele tinha sido um dos que cuidaram dela. Não dá pra esperar que uma criança processe esses sentimentos confusos de uma hora pra outra. Talvez fosse melhor oferecer algum tipo de apoio emocional. O Randrid, que agora estava em Beaden, era ótimo nisso, mas eu não fazia a menor ideia de como agir.

— De qualquer forma, é melhor amarrar eles pelo menos — murmurei. Seria um problema se algum deles começasse a se debater no chão ou tentasse fugir. Eu podia lidar com isso fácil, mas queria evitar ouvir sermão da Lucy.

— Beleza. Deve ter corda por aqui.

Mui começou a revirar o lugar. Ela já tinha usado essa base antes, então parecia saber mais ou menos onde estavam as coisas. Eu não sabia o que passava pela cabeça dela. Eu tinha me envolvido com ela por acaso, mas... será que fui egoísta ao querer dar a ela uma vida mais feliz e completa? Será que me meti onde não devia? Já vivi muitos anos, mas o mundo ainda era cheio de mistérios.

— Achei. Ei, o que foi? — perguntou Mui, me tirando dos pensamentos sombrios.

— Hm? Ah, nada. Vamos amarrar logo eles.

Não dava pra deixar uma criança preocupada comigo — seria vergonhoso como adulto. O tempo não para, e também não dá pra voltar atrás. Tanto eu quanto a Mui só podíamos aceitar a realidade como ela é.

— Pronto. Mui, pode me trazer aquilo ali?

— Tch. Tá bom.

Meu primeiro trabalho em grupo com a Mui acabou sendo a ingrata tarefa de prender um bando de ladrões. Pessoas desacordadas são absurdamente pesadas. Ninguém em sã consciência gosta de fazer isso. Eu, com certeza, não gosto.

Depois de alinhar os sete ladrões amarrados no chão, me sentei numa cadeira próxima. — Acho que é isso.

— Tô exausta... — resmungou Mui, desabando numa cadeira com uma expressão cansada.

— Bom trabalho — falei pra ela. — Embora soe meio estranho nessa situação.

— Hmph. — Bom, a gente já tinha feito tudo que podia. Eu não tinha como interrogar os ladrões sozinho nem nada assim, então agora era só esperar a Lucy voltar.

O tempo passou lentamente. A gente não tinha muito o que conversar. Eu não detestava falar com crianças, nem detestava a Mui. Já tinha ensinado vários alunos da idade dela no dojô, então não sou exatamente ruim com crianças. Mesmo assim, essa situação era simplesmente péssima. A gente tinha invadido o esconderijo dos ladrões e nocauteado todo mundo—o que mais havia pra dizer? Então ficamos em silêncio, ouvindo os gemidos ocasionais dos caras caídos. Lucy, volta logo, por favor.

De repente, a voz da Mui cortou meus pensamentos.

— O que eu sou...?

— Hm? — Me virei pra ela, atraído pelas palavras. A expressão dela estava rígida, e os lábios se moviam só um pouquinho.

— O que eu faço agora?

Eu não tinha uma resposta certa pra ela, e também não podia dizer qualquer coisa irresponsável—Mui ainda era uma criança. Em poucos anos, ela já tinha acumulado experiências e criado seus próprios valores. Tinha que existir uma escolha que acalmasse um pouco a confusão que ela sentia sobre si mesma, sobre o futuro, e sobre o que os outros pensavam. Seria mentira dizer que eu não fazia ideia, mas ainda assim, não era um problema que eu pudesse resolver sozinho.

— Bom, de um jeito ou de outro, vai acabar dando certo — falei. — Isso aí é responsabilidade dos adultos.

Passar isso com firmeza era a única resposta que eu podia dar.

— Ha ha... É mesmo?

Mui deu uma risada fraca. Claro que ela não ia confiar numa resposta dessas. A gente nem tinha uma relação de verdade pra começar, nem tempo teve pra construir uma. Ainda assim, eu estava sendo sincero—agora que vários adultos tinham se metido, era nosso dever colocar ela de volta nos trilhos. Seria um peso enorme na consciência de todo mundo se simplesmente largássemos ela depois de tudo isso.

A conversa morreu e o silêncio voltou. Não sei quantos minutos se passaram até que a Lucy apareceu pela porta da frente.

— Volteeei! — Ao contrário de mim e da Mui, a voz dela era leve como sempre.

Atrás dela vinham a comandante da Ordem de Liberion e vários outros cavaleiros. Todos estavam de armadura e com os olhos atentos ao redor.

— Obrigada pelo trabalho, Mestre.

— Você também, Allusia. — As coisas aqui já estavam praticamente resolvidas, mas...

— Esses são os culpados? — Allusia perguntou, lançando um olhar gelado pros homens que eu e a Mui tínhamos imobilizado. Aquele era o olhar da comandante confiável da ordem, e nada era mais tranquilizador em uma emergência. Só torço pra ela nunca olhar pra mim desse jeito. Esse velhote aqui só quer uma vida tranquila.

— É, posso garantir que são esses os caras que vocês estavam procurando — respondi.

— Aposto que esses ratos têm culpa em outras tretas também — acrescentou Lucy. — Tenho assuntos com eles, então vou participar do interrogatório.

— Entendido.

Com isso, Lucy garantiu presença na investigação da ordem. Como comandante da unidade mágica, ela provavelmente tinha bastante liberdade pra isso.

— Levem todos — ordenou Allusia.

— Sim, senhora!

Os cavaleiros atrás dela avançaram e começaram a carregar os ladrões. Alguns já tinham acordado—se debatiam, mas mesmo que não estivessem amarrados, não teriam a menor chance contra cavaleiros treinados. Então foram todos levados sem problemas. Não sei como seria o interrogatório, mas como era a Allusia, provavelmente não teria tortura envolvida. Já com a Lucy... aí é outra história. Ela é bem capaz de fazer alguma loucura.

— A propósito... — Mesmo que eu quisesse dizer que tudo estava resolvido, ainda restava uma pendência. Me virei pra Allusia e Lucy. — O que vamos fazer com a Mui?

Ela não tinha mais casa. Todos sabíamos que ela estava usando esse lugar como base. Mas agora, eu, a Lucy e a ordem tínhamos acabado de destruir tudo. Dizer pra ela simplesmente continuar vivendo aqui e se virar sozinha era inaceitável; por outro lado, mandar ela embora também seria irresponsável. Já que nós, adultos, nos metemos, tínhamos que ir até o fim. Isso era o certo a se fazer.

— O escritório até tem alguns quartos, mas... — Allusia lançou um olhar pros cavaleiros que levavam os ladrões embora.

Eu conhecia bem o escritório. Tecnicamente dava pra passar a noite lá, mas não era um lugar apropriado pra morar. Me deixaria inquieto deixar uma garotinha sozinha naquele ambiente. Além disso, Mui só conhecia a mim, Allusia e Lucy. Jogar ela no meio de um monte de cavaleiros podia acabar criando atritos desnecessários.

— No momento, tô hospedado numa estalagem, então...

Dito isso, também não era fácil pra mim cuidar dela. Lá em Beaden, até dava pra dar um jeito, mas aqui em Baltrain, eu só tinha um quartinho. E acima de tudo, duvido que a Mui ia querer morar numa estalagem com um velho. Se não houvesse outra opção, eu não ia fazer cerimônia... mas ainda assim, seria uma solução temporária. E minha carteira também não tava exatamente recheada.

Lucy nos olhou com aquele brilho de sempre. — Ela é uma maga em formação, lembra? Podem deixá-la comigo por enquanto. Eu tenho uma governanta também.

As coisas pareciam bem sombrias até Lucy falar — com um tom de quem não tinha nada a ver com aquela situação toda. Nunca tinha parado pra pensar nisso antes, mas que tipo de casa a Lucy morava? Ela era comandante do esquadrão mágico há um bom tempo, então devia ser uma moradia de gente rica. Ela até mencionou que tinha uma governanta. Quanto será que um comandante desses ganha?

Resumindo: não dava pra deixar a Mui aqui, o escritório da ordem não era o ideal e seria complicado tanto pra mim quanto pra Allusia acolher a garota. Naturalmente, a única opção era aceitar a sugestão da Lucy.

— Hmph.

Mui bufou enquanto observava os adultos resolvendo tudo. Não parecia exatamente uma reação positiva, mas também não dava pra dizer que ela tava recusando. No mínimo, ela entendeu que o problema imediato podia ser resolvido se contasse com a Lucy. Não parecia contra, mas também não estava feliz.

— Acho que tá na hora de voltar, né?

Todo mundo ficou em silêncio, então minhas palavras ecoaram de um jeito estranho. Não parecia certo encerrar o dia ali — eu queria ir pra algum lugar onde a gente pudesse relaxar um pouco. O escritório da ordem era a escolha mais óbvia.

— De fato. Não podemos ficar aqui pra sempre — disse Allusia.

Ela deu ordens a um cavaleiro que estava de prontidão. Mesmo que os ladrões tivessem sido presos, outros podiam usar o esconderijo. Allusia ordenou que o local fosse selado e colocado sob supervisão da ordem até que a situação fosse esclarecida.

— Trabalhei demais hoje — comentou Lucy. — Acho que também vou voltar.

— Você que diga... — resmunguei.

Ela tava toda sorridente, mas senti que fui eu quem fez a maior parte do serviço. Mesmo que fossem amadores, enfrentei cinco ou seis deles. Bom, os truques do Twilight ainda eram um mistério, então era possível que ele tivesse acabado comigo se quisesse.

— Tch.

Talvez incomodada com esse clima amigável, Mui estalou a língua. “Incomodada” talvez não fosse a palavra certa — talvez ela só não estivesse acostumada com esse tipo de ambiente. De certo modo, ela tinha vivido exatamente o oposto de uma vida tranquila. Ainda não sabia quase nada sobre ela, mas queria ajudar no que pudesse. Essa era a responsabilidade de um adulto que resolveu se meter na vida dela. De algum jeito, a Mui parecia ser do tipo que eu simplesmente não conseguia ignorar.

Não achava que ela fosse sair quebrando tudo por aí, mas se ninguém cuidasse dela, parecia o tipo que podia desabar. Isso era mais um pressentimento meu do que qualquer outra coisa. Já tinha visto muitas crianças crescerem, e mesmo vindo de um dojô no interior, eu confiava bem na minha intuição.

Se eu estivesse errado, tudo bem. Mas se estivesse certo, queria trabalhar junto com a Allusia e a Lucy pra fazer algo por ela.

— Vamos? — perguntei, estendendo a mão sem pensar muito. A Mui era durona, mas ainda era uma criança que precisava da orientação de um adulto. Sabia que ela não era obediente o suficiente pra segurar minha mão, mas o gesto já era quase instintivo pra mim.

— Hmph.

Como esperado, a Mui não pegou na minha mão. Andar de mãos dadas com um velho pelas ruas de Baltrain provavelmente era um pesadelo pra ela. Mesmo assim, pelo olhar no rosto dela, não parecia que tinha se incomodado. Só isso já era o suficiente pra mim.

Certo então. Hora de voltar pro escritório.

Allusia, Lucy, Mui e eu voltamos até a entrada do escritório da Ordem de Liberion. No fim das contas, alguns cavaleiros comuns ficaram responsáveis por supervisionar o esconderijo dos ladrões. Mui e eu não podíamos continuar por lá, e como líderes das suas respectivas organizações, nem Allusia nem Lucy podiam ficar presas naquele lugar. Felizmente, a casa ficava no meio do distrito central e tinha várias residências normais por perto, então era improvável que algo perigoso acontecesse. E se acontecesse, os cavaleiros já estavam acostumados com esse tipo de coisa.

Assim que entramos no escritório, Allusia chamou um dos cavaleiros que tinha ajudado a levar os ladrões para interrogatório.

— Onde eles estão?

— Senhora. Foram confinados no subsolo.

Hã. Eu nem sabia que o escritório tinha porão. Acho que nunca tive motivo pra descer lá.

A Ordem de Liberion não era só uma formalidade — os cavaleiros não estavam ali só pra aparência. Em uma cidade enorme como Baltrain, eles mantinham a ordem pública e podiam mobilizar esquadrões a qualquer momento — como tinham feito neste caso. Não era ingênuo a ponto de achar que a ordem era toda certinha em todos os assuntos, tanto públicos quanto privados, mas duvidava que fizessem algo escancaradamente ilegal. Era uma questão de equilíbrio entre o bem e o mal, então provavelmente existiam zonas cinzentas dentro da organização. Talvez até nessa situação específica... mas não era da minha conta, então não ia me preocupar com isso.

— Muito bem. Vou me retirar por hoje — disse Lucy. — Amanhã volto. Ainda tenho um monte de perguntas pra fazer.

— Aaah, mm-hmm — assenti. — Valeu por... uh, por hoje.

Será que era certo agradecer? Não sabia bem. Parecia que a Lucy só me arrastou de um lado pro outro. Mas, bom, ela entrou em ação assim que percebeu que a Mui estava envolvida, então, por esse lado, o agradecimento era merecido.

Lucy rapidamente se virou pra Mui e agarrou o braço dela.

— Anda — disse. — Você vem comigo.

— Tch. Tá bom, já entendi. Me solta.

Observei enquanto a Lucy puxava a Mui. Aquela cena parecia coisa de pai e filha. Espero que o jeito direto da Lucy ajude as duas a se darem bem.

— Até mais, Mui — chamei.

— Hmph.

Minha despedida só recebeu um resmungo em resposta. Mui provavelmente não me odiava, mas a relação entre a gente era meio estranha — eu nunca sabia bem como agir perto dela. Na real, eu era mais do que um conhecido, mas menos que um amigo. Sabia demais sobre a situação dela pra fingir que não tinha nada a ver, mas também era velho demais pra ser considerado um “igual”. No dojô, meus relacionamentos com os alunos sempre foram bem definidos. Se eu tivesse algo assim com a Mui, talvez nossas interações fossem bem diferentes.

— Beleza, então.

Olhei pro céu. Um brilho vermelho intenso se espalhava no horizonte, como se tentasse tingir todo o continente de Galea com aquela cor escarlate. Numa última tentativa de resistir à noite, minha sombra se estendia sob meus pés... e logo seria engolida pela escuridão.

De algum jeito, conseguimos resolver tudo antes do fim do dia.

Não estava fisicamente cansado, mas depois de tudo o que rolou, me sentia mentalmente exausto. Ainda assim, minha parte nessa bagunça tinha acabado. A Lucy tinha falado que provavelmente tinha alguém por trás dos panos, mas esse não era meu papel. Isso com certeza ia além das minhas obrigações como instrutor especial, e sendo bem honesto... não fazia questão nenhuma de me meter.

— Preciso reorganizar a frequência das patrulhas e as rotas — disse Allusia, cortando meus devaneios. — Vai sair agora, Mestre?

— É... Acho que vou voltar pra estalagem por hoje.

Essa mudança nas patrulhas devia ter a ver com os ladrões que pegamos hoje. O esconderijo deles ficava num lugar bem inesperado, bem no meio do distrito central, e eu duvidava que tivéssemos pego todos. Os cavaleiros iam ter que apertar a vigilância.

— Então até amanhã, Mestre.

— É. Mas pega leve, Allusia.

Dito isso, deixei o escritório. A Allusia era uma pessoa super séria no fundo, então tentei dar uma palavra de incentivo pra ela não se sobrecarregar. Provavelmente ela nem precisava ouvir isso — com certeza sabia como cuidar bem da própria saúde. Mas, por via das dúvidas, não custa avisar.

— Ufa...

Suspirei. De um jeito ou de outro, o dia foi bem agitado. Caminhei pela rua de volta à estalagem. Tudo o que eu queria era chegar logo, encontrar uma taverna por perto e tomar uma bebida. Nada melhor pra aliviar a fadiga. Ainda não conhecia tão bem assim o mapa de Baltrain, mas como já estava morando aqui fazia um tempo, tinha começado a gravar os comércios e pontos principais da cidade. Entre eles, conhecia algumas tavernas próximas — ficavam perto da estalagem, não eram barulhentas demais e serviam boa comida e bebida. Eram, obviamente, os destinos perfeitos.

Pra algumas pessoas, invadir o esconderijo de ladrões seria um baita evento. Mas eu tava me sentindo até tranquilo demais. Como um cara na casa dos quarenta e tantos, isso tudo não foi lá uma grande virada na minha vida. Não esperava nenhum desdobramento importante nesse caso. Na real, nem queria.

— Bom, vou fazer o que der.

Não adiantava pensar demais. Meus murmúrios se perderam no céu de Baltrain. O interrogatório dos ladrões do Twilight provavelmente ia demorar. Eu nem sabia se existia mesmo esse tal “cabeça” por trás — se existisse, a ordem ia precisar de provas concretas antes de agir, e esse tipo de investigação não se resolve em um ou dois dias.

Ou seja, meu trabalho diário como instrutor especial ia continuar como sempre. Como de costume, só precisava focar no treinamento dos cavaleiros.

De qualquer forma, o esforço é pra amanhã. Hoje... hoje eu mereço me recompensar um pouco.

— Se não me engano, é por essa viela... Ah, ali está.

Cheguei a uma taverna que ficava a um quarteirão da estalagem. Mesmo não estando na rua principal, ela não ficava atrás da concorrência — sempre tinha bastante gente dentro.

Depois de um dia cansativo, nada melhor que uma boa bebida num lugar como esse. Abri a porta dupla e os sons do vai e vem animado do local se espalharam pela rua. O movimento parecia bom. Fico até feliz de ver um dos meus lugares preferidos indo bem.

Depois de dar uma olhada em volta, entrei.

— Com licença.

Hora de uma boa bebida e uma boa noite de sono. Depois disso, era só fazer o meu melhor e seguir em frente. Lucy e Allusia com certeza sabiam como lidar com o resto.

Como dizem por aí... o amanhã cuida de si mesmo.


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