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Chapter 3 - Vol 2: Um Caipira do Interior Corta a Escuridão da Noite

 Capítulo 3: Um Caipira do Interior Corta a Escuridão da Noite

— Hiyaaaaaah!

Era bem cedo de manhã, e no salão de treinamento da Ordem de Liberion, várias pessoas já estavam se dedicando aos treinos. Eu sabia bem que sempre chegava cedo, mas mesmo nesse horário, os cavaleiros já estavam cheios de energia. Esse zelo pelo caminho da espada merecia ser elogiado.

— Isso aí! Assim que se faz!

Desviei de um golpe potente e elogiei minha oponente. No momento, estávamos em um treino prático — um duelo amistoso com um dos cavaleiros. Estávamos usando espadas de madeira, já que acidentes poderiam acontecer se usássemos lâminas de verdade. Embora, sinceramente, eu nem tivesse uma espada real à disposição no momento.

Ainda assim, parte de mim queria muito dar aulas com espadas reais pelo menos uma vez. Talvez isso mostrasse o quão fundo eu tinha mergulhado na loucura da esgrima. A sensação cortante de uma batalha de verdade não podia ser reproduzida com espadas de madeira, e mesmo sem querer me meter numa luta real, acreditava que era algo que precisava ser vivenciado — especialmente pelos cavaleiros. Diferente dos aventureiros, cavaleiros não pareciam ter tantas oportunidades de enfrentar situações reais. Se, em um momento crítico, eles não conseguissem brandir suas espadas, isso poderia ser um problema sério. Então pensei em conversar com a Allusia sobre isso mais tarde. Embora... tinha grandes chances dela recusar essa proposta.

— Nrrrrrgh!

— Opa!

Droga. Que descuido o meu. Não devia estar pensando em outras coisas durante o treino. Uma espada de madeira, várias vezes mais pesada que a minha, passou raspando na ponta do meu nariz. Eu tinha dito pra ela atacar com tudo, mas só de pensar nisso agora me deu um arrepio na espinha. De qualquer forma, aquele golpe amplo e poderoso deixava a guarda totalmente aberta. Ela ainda estava em fase de desenvolvimento, mas como instrutor, ver o progresso dela tão claramente me dava uma ideia do que esperar no futuro.

— Aqui!

— Gyah?!

Assim que ela completou o movimento do golpe, desci levemente minha espada de madeira sobre a cabeça desprotegida dela. O gritinho fofo ecoou por todo o salão.

— Beleza, vamos parar por aqui por enquanto. Parece que você tá melhorando, aos poucos.

— Sério mesmo?! Heh heh heh heh...

Relaxe minha postura, marcando o fim do nosso duelo. Kewlny deu tapinhas na própria cabeça e abriu um sorrisão daqueles. É, um cachorrinho. A Kewlny realmente é um bálsamo pra alma. Mas ainda estava longe da perfeição. Pra ela melhorar de verdade, eu precisava deixar bem claras as forças e fraquezas dela.

— Você tá se acostumando bem com o zweihänder — seus golpes estão bem rápidos. Mas se você continuar atacando sempre do mesmo jeito, o oponente vai entender seu alcance. Quando isso acontecer, você tem que se aproximar e usar o ricasso, ou então recorrer a estocadas. Caso contrário, vai acabar abrindo brechas como essa.

— Erk... Entendido...

Kewlny pareceu meio abatida, mas eu estava longe de ser pessimista. Nem imaginei que ela conseguiria manusear uma arma tão peculiar em tão pouco tempo. Uma grata surpresa. Ela realmente tinha bastante força naquele corpo pequeno. Desde o início, não teve muitas dificuldades com o peso do zweihänder, e mesmo usando uma espada de madeira agora, dava pra ver que tinha bastante impacto nos golpes. Pelo que eu via, ela não teria problemas em liberar essa força com uma espada de verdade.

A Kewlny também aprendia rápido. Era honesta e absorvia meus ensinamentos com obediência. Já tinha treinado bastante com espada curta, mas esse era o primeiro duelo dela com uma espada grande. E diferente dos treinos de movimento, agora ela estava realmente visualizando o oponente. Isso me deixava feliz.

Ela ainda tinha um longo caminho pela frente, claro, mas já tinha evoluído o suficiente pra empurrar um cavaleiro mediano com pura força bruta e o alcance da lâmina. Ela tinha desenvolvido uma boa base treinando o corpo com dedicação — dava pra ver que não abandonou os treinos mesmo depois de sair do nosso dojo, e as habilidades dela provavam isso. Considerando tudo isso, achei que estava na hora dela treinar diretamente comigo.

Ela já era capaz de desferir uma sequência contínua de ataques com grande alcance. Seu corpo pequeno permitia curvas fechadas e rotações rápidas. Quando dominasse o controle de empunhadura e o vai-e-vem do combate, com certeza ia ficar muito, muito mais forte.

— Não precisa ficar tão pra baixo — falei pra ela. — Você tá ficando mais forte, aos poucos.

— S-Sim, senhor!

E eu não estava mentindo. Pelo menos, o zweihänder combinava muito mais com ela do que a espada curta. Ela já tinha conquistado muito em pouco tempo, e eu tinha grandes expectativas pro crescimento dela daqui pra frente.

— Ah, mestre! Já não tá na hora? — perguntou Kewlny, toda animada.

— Hm? Hora do quê?

Eu realmente não fazia ideia do que ela tava falando. Eu tinha algum plano? Até onde eu sabia, só tinha o treinamento no cronograma.

— Sua espada! — ela exclamou.

— Aaah...

Tinha esquecido completamente disso. Mas agora que ela mencionou, já fazia um bom tempo — depois de treinar todos os dias, acabei deixando esse assunto de lado. E não, eu não queria culpar minha idade por esse lapso de memória.

— Acho que já faz uma semana, né — comentei. — Melhor eu ir buscar.

— Isso mesmo! Não é emocionante?

O Baldur tinha dito que ia precisar de uma semana pra forjar minha espada. Esse prazo já tinha passado, então estava mesmo na hora de buscá-la. Estranhamente, eu tinha me acostumado a andar sem uma espada de verdade. Talvez fosse porque estava sempre carregando a de madeira no lugar. Hm. Talvez isso... não seja o melhor pensamento pra um espadachim ter.

Sobre o caso da Mui, já fazia uma semana sem nenhuma informação nova. A Allusia e a Lucy aparentemente tinham interrogado os ladrões do Crepúsculo, mas ninguém me contou detalhes. Eu perguntei algumas vezes, mas elas só faziam umas caras fechadas — não era um assunto que eu achava certo ficar cutucando, mas pelos olhares delas, dava pra imaginar que as coisas não eram nada simples. Dito isso, não tinha muito o que eu pudesse fazer. A Allusia e a Lucy sabiam disso, então não compartilhavam nada comigo.

Bem, não é da minha conta me meter nisso — é melhor deixar esse tipo de coisa pros figurões. Mais importante, eu tenho que buscar minha arma.

— Certo, acho que vou passar lá depois do treino de hoje.

Bater o ferro enquanto está quente — não se aplicava muito aqui, mas, honestamente, se a espada já estivesse pronta, eu queria testá-la o quanto antes.

— Ah, então eu vou com você! — sugeriu Kewlny.

— Mm, claro. — Na real, ela não precisava ir junto, mas também não tinha motivo pra recusar.

— Hee hee, tô ansiosa! — disse Kewlny com um sorriso radiante. — Que tipo de espada será que você vai pegar?

Eu não entendia direito por que ela tava tão empolgada com isso — pra mim, não parecia lá um grande evento. Mas esse entusiasmo era bem melhor do que vê-la deprimida. A Kewlny era o tipo de garota que brilhava de verdade quando sorria. Além do mais, eu até entendia um pouco da curiosidade dela. Que tipo de espada teria sido forjada com aqueles materiais luxuosos tirados do monstro nomeado Zeno Grable? Francamente, eu não fazia ideia do que esperar, e isso era tanto empolgante quanto assustador.

Quero algo normal. Simples e direto. Algo como eu.

— Enfim, a gente vai, mas só depois do treino — falei.

— Sim, senhor!

A pausa já tinha durado o bastante. Hora de voltar. Eu tava naturalmente animado pra conhecer minha nova lâmina, meu novo parceiro, mas como espadachim e instrutor, tinha um dever com os cavaleiros. Acima de tudo, queria continuar firme no caminho da espada.

— Certo, venha com tudo — eu disse.

— Lá vou euooou!

Kewlny se preparou com sua grande espada de madeira. Pelo brilho nos olhos dela, parecia ainda mais empolgada que antes. Bom, ela tá sempre animada, mas mesmo assim. Mesmo que fosse só treino, eu queria evitar levar uma porrada daquele tronco de madeira. Então, me concentrei de novo e foquei nos ataques dela.

— Beleza, vamos encerrar por hoje.

— Sim, senhor!

Troquei golpes com a Kewlny por um tempo e, quando o sol já estava alto no céu e começava a ir em direção ao oeste, encerramos o treino do dia. Era mais ou menos o horário em que eu costumava terminar minhas aulas lá em Beaden. Talvez fosse um hábito. Acordar cedo, se exercitar, relaxar à tarde — esse ritmo tava bem enraizado em mim. Claro que esse cronograma não se aplicava quando rolavam imprevistos, mas eu raramente era arrastado pra esse tipo de coisa. O caso com a Mui tinha sido uma exceção mesmo.

— Vou me trocar! — anunciou Kewlny.

— Vai lá, sem pressa.

Kewlny manteve o alto astral durante todo o treino e ainda tava a mil. Eu não entendia qual era a graça de acompanhar um velhote numa ida às compras, mas como ela parecia gostar, deixei quieto. Companhia animada era melhor do que ir sozinho de qualquer jeito. Dei uma olhada na Kewlny enquanto ela desaparecia no vestiário, então fui me ajeitar. Tudo que eu precisava fazer era secar o suor. Nessas horas, ser homem era uma maravilha.

— Muito bem...

Normalmente, esse era o momento em que a Allusia aparecia do nada... mas hoje ela não deu as caras. Não participou do treino de manhã, então provavelmente estava ocupada em reuniões com a Lucy ou algo assim. Eu até fiquei curioso, mas não tinha nada pra acrescentar no assunto. Ia descobrir mais quando a investigação chegasse ao ponto de um anúncio oficial.

Então, deixei esse tema de lado e foquei totalmente na espada que estava pronta. Cara, tô começando a ficar empolgado. Fiquei parado em frente ao ateliê por um tempinho, e logo a Kewlny saiu vestida com sua roupa casual de sempre.

— Foi mal fazer você esperar!

— Tá tranquilo — nem demorou tanto.

Desde que vim pra Baltrain, passei a sair bem mais vezes com mulheres. Embora, quase todas fossem minhas ex-alunas... Pensando bem, já faz um tempo que não ouço as cobranças do meu pai. Acho que é uma das vantagens da distância.

Ainda assim, era bom refletir sobre essas coisas... mesmo que eu não achasse que alguma mulher fosse se apaixonar por um velho passado do ponto. Enfim. Eu tinha algo mais importante pra focar. Minha vida amorosa era um detalhe que dava pra varrer pra debaixo do tapete por enquanto.

Se eu lembrava direito, a oficina do Baldur ficava no distrito central. Eu tinha ido lá pouco mais de uma semana atrás, mas não tinha certeza se saberia voltar sozinho. Nesse ponto, era bom ter a Kewlny comigo — assim, eu não me perdia.

— Que tipo de espada será que ele forjou? — pensou alto Kewlny.

— Vai saber? É uma espada longa, então acho que não vai ter nada muito excêntrico.

A gente ia conversando enquanto andava. Quem tinha feito o pedido ao Baldur foi a Selna, mas ela só pediu uma espada longa. Eu estava setenta por cento empolgado e trinta por cento preocupado com o tipo de arma que ele tinha feito. Imaginava que a lâmina não seria nada fora do comum, mas os materiais usados eram outro nível. Em toda minha vida, eu só tinha usado espadas de metal comum.

— Aposto que vai ser super irada! — exclamou Kewlny.

— Ha ha ha. Espero que combine comigo. — Uma espada longa irada, hein? Eu não queria nada cheio de enfeites estranhos. Tinha quase certeza que o Baldur entendia isso sobre mim.

— Ah, e já que vamos pegar minha espada, você devia aproveitar pra dar um relatório também — falei.

— Hã? Eu?

— Vai, sobre sua zweihander.

Kewlny tinha trocado a espada curta por uma zweihander na oficina do Baldur. Isso fazia mais ou menos uma semana, então ela ainda estava se adaptando. De qualquer forma, parecia estar se saindo bem — era importante mostrar progresso.

— É mesmo! Acho que tô começando a pegar o jeito.

— Fico feliz em ouvir isso.

Eu tinha recomendado a zweihander pra ela, então ficaria bem desanimado se ela dissesse que não combinava com ela. Eu não tinha dado uma espada de despedida pra Kewlny quando ela era criança, então queria treiná-la até que eu pudesse fazer isso. Esse sentimento... é tipo um afeto paternal, né? Não que eu tenha filhos.

—Chegamos!

Enquanto andávamos e conversávamos, um prédio familiar apareceu à vista. Ficava espremido entre outros, mas o lugar tinha um certo charme.

—Com licença.

—Com licença, estamos entrando!

Nós dois entramos juntos na loja.

—Opa, Mestre Beryl e Kewlny.

Atrás de um balcão praticamente coberto de armas, estava Baldur. Ele encarava fixamente uma certa espada, como se estivesse disputando um duelo de olhares com ela. Ao nos ver, abriu um sorrisão, mostrando os dentes.

—Achei que a espada que eu pedi já estaria pronta — eu disse.

Na verdade, quem tinha feito o pedido tinha sido a Selna. Eu já começava a me sentir meio hesitante, embora fosse um pouco tarde pra isso — a espada estava pronta, e recusar agora seria meio sem sentido.

—Ah, sim! Aquela já está prontinha — e ficou ótima! Só um segundo, Mestre!

—C-Claro.

Antes que eu pudesse reagir, Baldur sumiu atrás do balcão. De repente, ele ficou super empolgado e parecia estar com pressa. Acho que ele tá mesmo confiante com essa espada.

—Talvez a gente devesse ter falado da sua zweihander primeiro... — comentei.

—Ha ha ha, eu não me importo — respondeu Kewlny.

Dava pra ouvir um monte de barulhos de marteladas e metais batendo atrás do balcão. Baldur tinha dito que estava bem motivado, mas eu não esperava que ele estivesse tão apaixonado por esse projeto. Afinal, era só a minha espada. Olhei para Kewlny, sentindo um pouco de culpa por ela ter vindo até aqui comigo só pra isso.

De repente, o ferreiro musculoso explodiu de volta pra frente do balcão.

—Aqui está, Mestre! Pegue! — gritou Baldur, empurrando uma espada embainhada na minha direção.

Então é essa? Minha nova espada? Tô ficando nervoso. Faz anos que não compro uma — isso tá virando um baita acontecimento.

—Aceito com prazer.

Peguei a espada das mãos do Baldur e a saquei da bainha. Saiu com facilidade. À luz que entrava pela porta, a lâmina brilhou com um leve tom avermelhado. O comprimento era, como eu previa, algo em torno de cem centímetros, e no geral, não era muito diferente da minha antiga espada longa que usei por tantos anos. Mas o perfil era mais fino do que o normal, o que tornava a lâmina tão eficaz pra estocar quanto pra cortar. Pra ser direto, essa arma era bem engenhosa.

—Ela é de dois gumes, com o osso do Zeno Grable como núcleo — explicou Baldur. — Revesti o exterior com aço élfico. Também esculpi um sulco raso. O metal é bem maleável.

—Hmm, aço élfico, hein?

Eu só tinha ouvido falar desse minério — nunca tinha visto um. Tudo que eu sabia era que era um metal raro. Um sulco era uma espécie de canal que corria pelo comprimento da espada. Dizem que isso aumenta a flexibilidade e o poder de corte, mas como espadachim, nunca percebi isso de forma muito prática.

—Foi literalmente de quebrar os ossos lapidar os materiais daquele monstro nomeado! Mas me diverti pra caramba!

—E-Eu entendo. Que bom pra você.

É divertido lixar osso? Eu não entendo. Mas acho que isso é coisa de ferreiro. É bom que o Baldur goste do que faz.

Acho que o brilho avermelhado vinha do aço élfico. Quando se fala em "aço", a gente pensa numa cor cinza opaca, então esse tom era uma experiência nova. Não era um vermelho chamativo, só um brilho bem sutil, mas isso já me agradava muito. Junto com a lâmina esguia, minha nova espada tinha um visual bem estiloso. Francamente, até achei que não combinava muito com um velho como eu.

—Usei o couro do Zeno Grable pra empunhadura e a bainha — continuou Baldur. — É um couro bem duro, por sinal. A guarda também é de aço élfico, e eu embuti presas no centro dela.

—Hmm...

Por causa do couro do Zeno Grable, o toque da empunhadura era meio peculiar. Era diferente, mas não ruim. Quando agarrei, a fricção parecia na medida certa, então sabia que ia conseguir bons golpes.

Assim como a lâmina, a empunhadura e a bainha também eram vermelhas, refletindo as características principais do Zeno Grable. A guarda era de aço élfico também, então era bem resistente. Uma arma barata deixaria esses detalhes de lado, mas duvidava que Baldur fizesse algo tão porco.

—Uhum. Parece uma boa espada — disse eu, balançando-a levemente.

A lâmina cortou o ar, assobiando enquanto passava. Quase não senti resistência do vento, mas ainda assim, havia um peso claro na minha mão. Pra resumir, a lâmina era bem afiada. Eu não sou nenhum especialista, mas até eu conseguia perceber que essa espada era de primeira. Como era de se esperar, bons materiais e um ferreiro habilidoso resultam em uma boa arma. Isso já devia ser óbvio... mas, segurando essa espada na mão agora, senti uma mistura estranha de tensão e empolgação.


—É sua espada, Mestre —disse Baldur. —Não se preocupe com isso — é sua. Pegue.

—Hm. Suponho que vou fazer isso mesmo.

As palavras do Baldur não me pressionaram, mas dissiparam minha hesitação.

Então essa é minha nova espada? Conto com você, parceira.

—Que lâmina bonita! —exclamou Kewlny.

—Hahaha. Talvez não combine com um velho como eu. —A lâmina avermelhada era realmente algo diferente. Um pouco chamativa demais pra um cara simples como eu. Virei-me de volta pro Baldur. —Só confirmando... a conta — já foi resolvida, né?

—Pode apostar —respondeu Baldur, animado. —A Selna pagou.

Quanto será que custou pra fazer essa espada? Eu realmente não queria saber, e provavelmente era melhor deixar assim mesmo. Decidi aceitar honestamente o produto final sem me preocupar com o resto. E tentar não comentar que sou mais velho que a Selna.

Os olhos brilhantes da Kewlny estavam fixos na minha espada. —Tô curiosa pra saber o quão afiada ela é!

Oh? Curiosa, é? Você realmente quer saber? É... eu também. Quero balançar essa belezinha agora mesmo. Claro que sair duelando no meio da rua não é exatamente a melhor ideia.

—Infelizmente, não tenho um lugar pra você testar ela —disse Baldur. —Tenho quase certeza de que já comentei isso antes.

Assenti. —É, eu sei.

Além de estarmos em Baltrain, estávamos no distrito central. O custo do terreno ali era absurdo, e um espaço pra treino teria que ser bem grande. Ou seja, sairia caro montar um lugar desses. Locais onde se podia balançar uma espada livremente eram bem limitados dentro da cidade. Vai ser melhor voltar pro salão de treinamento da ordem e sentir como ela se comporta por lá.

Já que basicamente tínhamos terminado de falar sobre minha espada, decidi mudar de assunto. —Ah, é, sobre a zweihander — parece que caiu bem na Kewlny.

—Bom saber —disse Baldur.

Kewlny ainda não estava completamente acostumada com ela, mas tinha o perfil certo — uma lâmina grande combinava mais com ela do que uma espada curta. Ela parecia entender isso instintivamente, então tudo estava indo bem.

—Bom, sabe como é... usa bem essa espada —acrescentou Baldur.

—Pode deixar! —respondeu Kewlny, animada.

Baldur voltou-se para mim. —Você também, Mestre. Cuide bem dessa espada.

—Aaah, pode deixar. Com certeza.

Essa era uma espada que eu tinha conseguido por um estranho acaso do destino — não ia tratá-la com descuido. Desde que eu não enfrentasse um oponente fora do comum como o Zeno Grable, essa espada não ia quebrar com facilidade — afinal, materiais fortes daquele monstro gigantesco foram usados pra forjá-la. E mesmo minha antiga espada, que era só de aço comum, durou um bom tempo. De fato, a luta contra o Zeno Grable tinha sido uma exceção... Agora que eu estava pensando com calma, o desenrolar daquilo tudo realmente não fazia muito sentido.

—Bom, então...

Meu assunto ali estava resolvido, e comecei a pôr as ideias em ordem. Apesar de o treinamento do dia já ter acabado, qualquer espadachim saudável ia querer testar uma lâmina nova assim que a consegue. Eu estava um pouco cansado, mas não seria um problema continuar mais um pouquinho. Não tinha nada pra fazer naquela noite mesmo.

Tô pronto pra suar um pouco no salão de treinamento e conhecer melhor minha nova parceira.

—Certo, vou voltar pro quartel —falei. —E você, Kewlny?

—Ah! Eu vou com você!

Pelo visto, Kewlny ia me acompanhar. Fiquei grato — embora eu pudesse treinar sozinho, ter companhia seria agradável.

—Me avisa quando precisar amolar —disse Baldur.

—Uhum. Valeu.

Pelo que eu conseguia ver, o fio da lâmina estava excelente, então não achei que fosse precisar de amolação tão cedo — mas o Baldur provavelmente sabia o que era melhor, então com certeza aceitaria esse favor.

—Certo, vamos voltar? —perguntei à Kewlny. —Desculpa te arrastar comigo.

—Que nada, tô curiosa também!

Meu plano era fazer uns exercícios de aquecimento e me acostumar com a nova espada. Isso não ajudaria em nada no crescimento da Kewlny, então me senti um pouco culpado por ela estar vindo junto. Mas, se ela queria vir, eu não tinha motivo pra recusar.

Com a bainha vermelha presa à cintura — talvez chamativa até demais —, fui andando pelas ruas da cidade. O distrito central de Baltrain vivia cheio de pedestres, exceto no meio da madrugada. Achei que a bainha poderia chamar atenção dessas pessoas, mas muitos aventureiros andavam por aí com roupas espalhafatosas, então minha espada não se destacava tanto assim. Ainda bem que não tô chamando atenção desnecessária.

—Hmmm... Não tem lugar pra testar o fio no salão de treino também, né? —murmurou Kewlny, lançando olhares furtivos pra minha cintura de tempos em tempos.

—Não, não tem.

Ela tinha razão — os treinos da ordem eram feitos basicamente com espadas de madeira. Não tinha nada ali que eu pudesse cortar com uma lâmina de verdade, a não ser talvez os móveis da ordem... Mas quão maluco eu teria que ser pra sair cortando essas coisas sem permissão? Não queria deixar ninguém bravo comigo. Considerei sair da cidade pra caçar monstros ou algo do tipo, mas a segurança ao redor de uma cidade grande era rigorosa, então a chance de encontrar um monstro perambulando por perto era bem baixa.

Tecnicamente, eu não precisava confirmar o quão afiada era a lâmina — afinal, eu não era obcecado por batalhas nem nada. Mas uma parte de mim só queria saber o quão afiada minha nova belezinha era. Talvez eu só estivesse um pouco empolgado, num humor que não combinava com esse velho aqui. Francamente, não queria que essa atitude virasse meu normal — esse tipo de empolgação podia acabar com minha imagem. Espero que meus ânimos se acalmem durante a caminhada até a sede da ordem.

—Hee hee, você tá, tipo, super inquieto, Mestre! —disse Kewlny com um sorrisão.

—Bom, sabe como é, só um pouco.

Pelo visto, meu entusiasmo estava tão óbvio que a Kewlny percebeu na hora. Eu tinha passado mais de uma semana sem nenhuma arma na cintura — ter uma espada de volta deveria me deixar tranquilo, mas teve o efeito oposto.

Haah. Calma. Calma, eu. Pronto. Tô calmo. Provavelmente.

Logo decidi como começaria meu treino com a espada. Primeiro, faria os katas e repetiria os movimentos até o comprimento e o peso da espada entrarem no meu corpo. Não era muito diferente em tamanho da minha espada antiga, mas toda arma tinha suas manhas. Meu corpo precisava aprender isso e se acostumar com a nova espada; caso contrário, eu podia calcular errado o alcance num momento crítico e acabar errando o golpe. Sou só um velhote comum, então pelo menos quero parecer estiloso quando empunho minha espada.

— Chegamos... Hm?

O escritório da ordem não ficava muito longe da forja do Baldur. Conversar com a Kewlny e pensar na minha nova espada fez o tempo passar rapidinho, e antes que eu percebesse, já estávamos lá. Assim que o prédio apareceu à vista, vi uma silhueta pequena parada ao lado dos guardas de sempre.

— Ooh, Beryl. Estava te esperando.

— Lucy? O que você tá fazendo aqui a essa hora? — perguntei.

— Senhorita Lucy! Olá! — exclamou Kewlny.

Era a comandante do corpo mágico, Lucy Diamond. Ainda tinha um pouco de luz no céu, mas já era meio tarde pra alguém estar visitando o escritório. E, pelo que ela disse, estava claramente me esperando. Fiquei me perguntando o que ela queria... mas só por um segundo — ultimamente, só tinha um motivo pra Lucy vir atrás de mim.

— Beryl, preciso falar com você — ela disse. — Pode me dar um pouco do seu tempo?

Ela não estava com aquele jeito insistente de quando nos conhecemos. Mas o tom de voz e a expressão mostravam que não era um pedido qualquer.

— Desculpa, Kewlny — falei. — Parece que vou ter que ir.

— N-Nem esquenta! — gaguejou ela, agitando as mãos. — Não precisa se preocupar comigo!

No fim, só acabei arrastando a Kewlny comigo, né? Vou ter que compensar isso depois.

— Vamos? — falei, olhando pra Lucy.

Lucy virou pra Kewlny e acenou de leve. — Desculpa por isso.

Nem foi tão incômodo assim... mas por que eu não recebi um pedido de desculpas por terem enfiado isso em mim do nada? Meus planos de relaxar e fazer uns golpes de prática pelo resto do dia foram pro saco. Rezei pra que não fosse nada esquisito, mas como eu já conhecia bem a Lucy, não dava pra ser muito otimista. Nós dois caminhamos pelas ruas de Baltrain, sob a luz do pôr do sol. Como sempre, éramos uma dupla bem desequilibrada. Ela, a Allusia, a Selna... nunca me acostumei a andar do lado de celebridade.

Justo quando o silêncio entre nós estava ficando entediante, Lucy falou:

— Aquela cavaleira é bem animada. É uma das jovens da ordem?

— Aaah, você diz a Kewlny?

Kewlny era, de fato, o símbolo de alegria da Ordem de Liberion. Ela já era assim desde os tempos do dojo. Era ótimo ver que o brilho dela não tinha perdido a força com o tempo.

— Kewlny é uma boa garota — falei. — Ainda é jovem, mas tem bons instintos.

— Fico feliz em ouvir isso — respondeu Lucy com uma risadinha.

Eu não entendia muito bem como era a relação entre a ordem e o corpo mágico — tudo o que vi foi a Ficelle vendendo poções em atacado pro escritório da ordem — mas não parecia que havia rivalidade entre eles. Eu tinha conhecidos dos dois lados, então era bom ver que todo mundo se dava bem. Oficialmente, eu era ligado à ordem, mas definitivamente não queria me meter no meio de uma treta. Deus me livre... Esse velhote só quer viver em paz.

— A propósito, pra onde a gente tá indo? — perguntei.

Tinha acabado acompanhando a Lucy, mas não fazia ideia de qual era o destino. Ela só tinha dito que precisava conversar — não mencionou o assunto nem o lugar.

— Hm? Pra minha casa — respondeu. — Fica perto do distrito norte, então é uma caminhadinha.

— Ah. Tudo bem, não me importo.

A casa da Lucy, hein? Provavelmente deve ser uma mansão enorme. Tá, isso era só a minha imaginação correndo solta. Ser convidado pra casa de uma moça já era uma situação curiosa pra um solteirão... mas, bem, a mulher em questão era a Lucy, e eu sabia que meu coração não ia disparar por ela. E agora que pensei nisso, a Mui estava sendo cuidada na casa dela. Tava curioso pra saber como ela tava, então era uma boa chance pra ver isso também.

— É algo que não dá pra conversar em público? — perguntei. Se fosse só pra bater papo, dava pra fazer isso em pé mesmo ou num estabelecimento qualquer. Mas, já que a gente ia até a casa dela pra conversar, imaginei que devia ser um assunto meio importante e secreto.

— Bom, algo assim — respondeu Lucy com um sorriso meio sem jeito.

Considerando a personalidade dela, essa reação era meio estranha. Ela sempre parecia não ligar pra nada — uma resposta vaga devia significar que a situação era bem complicada. Isso só me deixou mais desconfiado. Tomara que não seja dor de cabeça...

— Ah, aliás, essa sua espada é bem interessante — murmurou Lucy, olhando pra arma na minha cintura.

Realmente chamava atenção à primeira vista. A bainha de couro vermelho não era nada comum. Eu sabia que a Lucy era especialista em magia, mas será que também entendia de armas?

— Consegui por meio de uma conexão minha — respondi. — Você entende de espadas também?

— Não, nem um pouco.

Nem um pouco, é?

— Sinto um leve traço de mana vindo dela — acrescentou Lucy. — É parecido com o mana que envolve equipamentos mágicos.

— Hmm...

Então ela conseguia ver essas coisas? Eu não manjava nada de mana, mas parecia que um mago do nível dela era capaz de sentir esse tipo de coisa.

— Isso quer dizer que dá pra soltar magia com essa espada? — perguntei.

— Não sei dizer. Mas o traço é tão fraco que acho difícil.

— Entendo... — Não que eu estivesse botando muita fé nisso... mas ainda assim foi meio decepcionante. — Então um mago consegue sentir se algo tem mana?

— Depende da pessoa. Quem consegue, sente sim.

Era assim que funcionava? Esse campo era completamente estranho pra mim, então nada fazia sentido. Talvez a Ficelle pudesse me dar respostas da próxima vez que eu falasse com ela. Allusia, Selna e Kewlny nunca mencionaram nada sobre magia, e eu nunca perguntei. Talvez o conhecimento fosse realmente limitado àqueles com aptidão pra isso.

— Magos são impressionantes... — murmurei.

— O que está dizendo? Vocês espadachins conseguem sentir sede de sangue, não conseguem? — retrucou Lucy. — É a mesma coisa. Na verdade, se quer saber, acho isso bem mais impressionante.

— Aah, entendi... — Essa foi uma boa comparação — não dava pra esperar que uma pessoa comum conseguisse sentir sede de sangue. Nem eu saberia explicar direito como faço isso. Detectar mana era como a versão mágica disso. E, já que estamos falando de magia... — Lucy, tem uma coisa que tô curioso.

— Hm? O quê?

— Vocês todos usam magia, certo? Por que são chamados de magos e não de feiticeiros?

A palavra “magia” era comum no mundo inteiro. Aqueles que usavam magia eram raros, mas reconhecidos em todo lugar. Por isso, dava pra imaginar que seriam chamados de “feiticeiros”, mas por algum motivo, o mundo todo se referia a eles como “magos”. Não era uma diferença enorme, mas eu tava curioso mesmo assim.

Lucy suspirou.

— Você realmente não sabe nada sobre magia, não é?

— Foi mal. Eu sou bem ignorante mesmo. — Mas o que eu podia fazer? O mundo da magia realmente não tinha nada a ver comigo.

— Muito bem — permita-me ensinar enquanto caminhamos — disse Lucy. — Seja grato! Minhas aulas geralmente são pagas.

— Hahaha, então vou escutar com respeito, levando isso em consideração.

A casa da Lucy ficava perto do distrito norte, então ainda tínhamos um bom caminho pela frente. Era longe demais pra ir em silêncio, e eu tava feliz de aproveitar a caminhada pra aprender alguma coisa.

— Pra começar, a palavra “magia” cobre uma gama enorme de fenômenos — começou a grande professora Lucy. — Por definição, se refere a qualquer fenômeno gerado tendo a mana como intermediária. Nesse sentido, todos nós somos feiticeiros.

— Hmm.

Escutei atentamente. Qualquer fenômeno gerado com a mana como intermediária — era um escopo absurdamente amplo. Eu não fazia ideia do que exatamente a mana podia fazer, mas equipamentos mágicos existiam, então o alcance devia ser gigantesco.

— O conceito de magia existe há muito tempo, mas dizem que a humanidade só passou a manipulá-la relativamente há pouco. Foi nessa época que as pessoas começaram a chamar de “feitiçaria” os fenômenos que podiam ser replicados pelas mãos humanas. Essa definição traça uma linha clara entre o que fazemos e todo o resto da magia no mundo.

— Entendi...

— Em resumo, a feitiçaria é uma categoria dentro do imenso campo da magia. Mas, por natureza, são a mesma coisa.

Lucy usava palavras como “dizem” e “aparentemente”, então provavelmente tudo isso aconteceu muito antes do nosso tempo. Espadas também eram armas usadas pela humanidade desde os tempos antigos — as técnicas que eu usava tinham sido passadas de geração em geração, e definitivamente não eram algo que dava pra inventar do nada. Mas a magia parecia ter uma história equivalente ou até superior à da esgrima.

— É por isso que hoje em dia não existe nenhum mago que se chame de feiticeiro. Ao fazer isso, ele estaria dizendo que é capaz de controlar toda a magia.

Nem mesmo uma maga do nível da Lucy tinha chegado perto de encarar o abismo da magia... muito menos olhar dentro dele. Era um campo de estudo realmente impressionante.

— Deve ser difícil ser maga — comentei.

— Hehehe, claro que é. Todo dia é pesquisa e estudo.

Esgrima também era fruto de estudo constante, mas provavelmente nem chegava perto da quantidade e precisão exigida pela magia. Não que aprender a manejar uma espada seja fácil ou algo assim. Mas não consigo evitar a comparação.

— De toda a magia do mundo, dizem que a humanidade não consegue replicar nem dez por cento com as próprias mãos — explicou Lucy. — Céus, ainda temos um longo caminho pela frente.

Essas últimas palavras vieram acompanhadas de um suspiro resignado, e com isso, a generosa lição da grande professora chegou ao fim.

— Eu tenho plena consciência de que esse é um campo no qual nem adianta tentar acompanhar — falei. — Mas obrigado por explicar.

— Hahaha, isso aí não é nada.

Pra uma maga, tudo aquilo provavelmente era conteúdo do primeiro dia de aula — o básico do básico. Fiquei um pouco desapontado comigo mesmo por não saber nem esses conceitos rudimentares na minha idade... mas as informações que chegavam até o canto esquecido de Beaden eram bem limitadas. Conhecimento sobre magia não era exatamente necessário pra vida na vila, afinal. Além disso, não era ruim ainda estar aprendendo nessa idade. O melhor era manter uma visão otimista das coisas.

— Ah, chegamos — disse Lucy.

Já fazia um tempo que estávamos andando e conversando, e logo chegamos à casa dela. Já era fim de tarde, pouco antes da noite cobrir o mundo. Dependendo de quanto tempo essa conversa durasse, talvez já estivesse completamente escuro quando eu voltasse pra estalagem.

— É bem grande...

Olhei pra cima, observando o portão e a mansão imponentes diante de mim. Ela realmente morava num lugar bacana. Deu até um pouco de inveja. Morar numa casa tão enorme seria mais do que eu saberia como usar.

— Entra aí — disse Lucy. — Tenho um convidado hoje também.

Fiquei parado por alguns segundos enquanto Lucy abria o portão, revelando o jardim que se estendia diante da mansão.

— Um convidado...?

Pelo visto, eu não era o único que ela tinha convidado. Sério, quem será que tá me esperando? Tava curioso, mas não muito esperançoso.

Enquanto eu continuava impressionado com o tamanho do lugar, Lucy passou pelo portão e me chamou:

— Vamos lá, vai ficar aí parado até quando?

A palavra “convidado” me incomodava, mas essa resposta viria sozinha com o tempo. Não adiantava perguntar pra Lucy agora. E eu realmente não tava mentindo ao me surpreender com a aparência da mansão, então decidi usar minha reação de choque como desculpa pro meu nervosismo.

—Ah, desculpa. Só estava pensando em como esse lugar é grande.

—Hehe, não é? —respondeu Lucy animada. Em seguida, deu um sorriso meio sem graça. —Bom, eu digo isso, mas só uso uma fração dos cômodos.

Com uma casa desse tamanho, nem mesmo Lucy, Mui e os empregados conseguiam ocupar tudo.

—Estou procurando uma casa agora —disse. —É bem difícil achar algo com boa localização e um preço razoável.

—Bom, o distrito central é absurdamente caro —ela respondeu.

A resposta padrão pra minha reclamação. Mas Lucy, você não devia falar nada... Você é dona de um terreno gigantesco no distrito central. Mas, considerando que ela era a comandante do corpo mágico, o salário dela devia ser bem alto. Com certeza em outro nível comparado a um reles mortal como eu.

Agora que estava morando em Baltrain, queria um lugar decente pra viver, mas isso estava um pouco além do meu orçamento atual. Dito isso, também não queria ganhar mais do que já recebia. Minha vida tinha mudado completamente desde que eu era instrutor no dojo, então comparar os salários não fazia muito sentido — e eu tinha certeza de que estava ganhando relativamente bem.

No entanto, pensando no trajeto até o escritório da ordem, queria um lugar no distrito central, se possível. A área residencial do distrito leste provavelmente não era ruim, mas era meio longe da ordem. Não dava pra ignorar a praticidade de morar no distrito central.

Acima de tudo, tinha um motivo pelo qual ainda não arrumei um lugar só meu: a estalagem era absurdamente confortável. Era relativamente barata, perto do escritório e cercada por tavernas e afins.

Estava tão cômoda que me fazia hesitar em sair do ninho. Viver pra sempre numa estalagem talvez não fosse lá muito respeitável, mas também não fazia sentido esse velho aqui se preocupar tanto com aparências. De qualquer forma, não era algo que eu precisasse resolver agora. Era melhor focar no assunto que Lucy queria discutir.

—Certo então, com licença —disse.

Lucy sorriu. —Uhum. Fique à vontade.

Entrei pela porta e fui recebido por um saguão enorme e bem mobiliado. O interior era tão grande quanto parecia por fora. Francamente, fiquei com um pouco de inveja. As casas em Beaden não eram exatamente apertadas, mas a capital realmente era de outro nível.

Enquanto eu ainda olhava ao redor, uma mulher surgiu por uma porta mais ao fundo.

—Senhorita Lucy, seja bem-vinda de volta.

—Ah, olá, Haley. Estou de volta.

Simplificando, Haley era uma empregada com um ar gentil. Apesar das rugas marcantes, exalava uma elegância que certamente foi cultivada ao longo de muitos anos. Seu cabelo escuro e brilhante estava preso num coque e ela usava óculos de armação preta. Por trás das lentes, seus olhos negros e límpidos transmitiam uma serenidade condizente com sua idade.

—Beryl, essa é Haley Shaddy —disse Lucy. —Minha empregada.

—Ahm... Com licença pela intromissão. Sou Beryl.

Haley respondeu com toda a elegância do mundo:

—Prazer em conhecê-lo. Meu nome é Haley. Ouvi muito sobre o senhor, Mestre Beryl.

Ela parecia ter mais ou menos minha idade, talvez um pouco mais velha. Se não fosse pela roupa de empregada, não seria exagero dizer que parecia uma nobre refinada. Tudo que ela sabia de mim obviamente vinha da Lucy. Fiquei um pouco curioso sobre os detalhes, mas não era hora de tocar nesse assunto.

Não vi a Mui por ali, mas tinha quase certeza de que ela estava em algum canto da casa.

—O Mestre Ibroy está esperando —disse Haley.

—Entendido —Lucy assentiu. —Estamos indo agora.

Mestre Ibroy... Quem será? Nunca tinha ouvido esse nome antes. Bom, logo eu descobriria.

—Por aqui, Beryl —disse Lucy, começando a andar. —Haley, não precisa preparar chá.

—Como desejar.

Lucy caminhava pela casa com passos firmes. Será que eu só deveria segui-la? Não sabia bem o que seria considerado educado nesse tipo de situação. Mas ela disse “por aqui”, então devia ser isso mesmo. Haley sumiu por outra porta depois de receber as instruções de Lucy.

Segui Lucy pelo saguão de entrada. Havia portas simples de madeira alinhadas ao nosso redor, até que ela parou em frente a um cômodo específico. Não parecia ser cozinha nem banheiro — provavelmente era uma sala de estar.

Lucy bateu na porta e anunciou:

—Estamos entrando.

Em seguida, abriu a porta e entrou no cômodo. Como eu suspeitava, era uma sala de estar. No centro do espaço amplo havia uma mesa e quatro cadeiras. Três delas estavam vazias, mas uma já era ocupada por um homem à esquerda.

—Está atrasada, Lucy —disse o homem na cadeira. Sua voz soava envelhecida, mas com uma certa vivacidade. —Já estava cansado de esperar.

—Desculpa por isso, Ibroy —ela respondeu.

O homem chamado Ibroy estava sentado de forma bem casual. Vestia um manto que ia até abaixo dos joelhos. Seus cabelos pretos estavam começando a ficar grisalhos, e apesar de serem um pouco longos, estavam muito bem cuidados, dando a ele uma aparência arrumada. Provavelmente era mais velho do que eu — as rugas na testa e nas bochechas eram bem profundas. Mas não o faziam parecer ameaçador; dava pra perceber que era um homem de temperamento gentil.


À primeira vista, tive uma boa impressão dele. Mas, por ter julgado rápido demais, acabei ficando um pouco desconfiado. Seria falta de educação chamá-lo de suspeito, mas havia algo por trás daquele sorriso gentil. E, pra piorar, ele estava agindo de forma absurdamente casual com a Lucy. Claramente, ele não era só um velhote qualquer.

— É ele? — perguntou Ibroy.

— Aham. Esse é o Beryl — respondeu Lucy. — Eu garanto a habilidade dele.

— Hã, prazer em conhecê-lo. Me chamo Beryl Gardinant.

Minha habilidade? Já tô com um mau pressentimento sobre isso. De qualquer forma, cumpri o protocolo e me apresentei, então me sentei na cadeira ao lado da Lucy. A nossa formação ficou assim: Lucy à minha direita, e Ibroy de frente pra ela, do outro lado da mesa. A cadeira ao lado dele estava vazia.

Assim que nos acomodamos, Ibroy falou:

— Muito bem, imagino que deva estar confuso com esse encontro repentino. Primeiro, permita-me me apresentar.

Hmm, ele está assumindo o controle? Não que eu me importe com quem comanda a conversa. Nem tenho direito de opinar, já que nem sei o que tá acontecendo. Só peço que, por favor, por favor mesmo, não joguem uma encrenca no meu colo.

Estava prestes a descobrir quem era aquele homem, mas sentia no fundo que nada de bom sairia disso. Afinal, essa história toda envolvia a Lucy.

— Ha ha ha, preferia que você não ficasse tão cauteloso — disse Ibroy, sorrindo.

Talvez ele tivesse notado meus pensamentos estampados na cara. Mas também, dá pra culpá-lo? Eu fui arrastado pra cá sem nenhuma explicação pra encontrar um cara misterioso. Era mais do que natural ficar um pouco irritado e desconfiado. Não sou uma pessoa tão boa assim a ponto de confiar nos outros logo de cara. De qualquer jeito, agora que eu já estava aqui, não adiantava reclamar. Decidi pelo menos ouvir o que ele tinha a dizer.

Ibroy pigarreou e então endireitou um pouco a postura.

— Sou Ibroy Hallman, sacerdote da Igreja de Sphene.

Ugh, um religioso? Isso com certeza vai dar dor de cabeça. Já posso ir embora?

Ibroy deu uma risadinha.

— Ha ha. Você odeia Deus?

— Aaah, não, não é bem isso...

Droga, minhas emoções realmente aparecem no rosto. Eu não sabia ao certo como Ibroy interpretou minha expressão, mas duvidava que tivesse sido uma reação positiva. Eu não seguia nenhuma religião — era secular. Dito isso, não desmerecia quem era devoto. A religião era uma parte importante da cultura, oferecia muito apoio emocional pro povo. Mas, pra mim, a ideia de deuses era vaga demais. Minha fé estava na espada.

— Beryl, você conhece a Igreja de Sphene? — perguntou Lucy.

— Só de nome.

Eu conhecia as principais religiões, já que isso fazia parte da educação básica. E como a Igreja de Sphene era uma autoridade no meio religioso, já tinha ouvido falar bastante sobre ela. Não sabia todos os detalhes da fé, mas era uma religião monoteísta que venerava Sphene. Essa prática não tinha se originado em Liberis, e sim num país vizinho chamado Sphenedyardvania.

Liberis ocupava boa parte do norte do continente de Galea e fazia fronteira com dois outros países. Um deles era Sphenedyardvania, um pequeno país ao sudeste. Era um estado religioso que espalhava os ensinamentos da Igreja de Sphene, embora não tivesse muito território nem tanta influência quanto Liberis. Pelo que sabia, a maioria da população de lá era bem devota. Inclusive, tinha um conhecido que era praticante, embora não o visse fazia tempo.

O outro vizinho de Liberis ficava ao sudoeste — o Império Salura Zaruk. O território deles era tão vasto quanto o de Liberis, mas metade era deserto. Como o nome indicava, era um país imperial, com um histórico de guerras contra Liberis. No entanto, atualmente as coisas pareciam relativamente pacíficas entre os dois... embora eu não soubesse muitos detalhes.

Claro, existiam outros países mais ao sul, mas eu não sabia quase nada sobre eles. Provavelmente não sairia de Liberis pelo resto da vida, então não fazia diferença. A Selna, como aventureira, com certeza devia saber mais sobre o continente — talvez eu pergunte pra ela depois.

Enquanto eu pensava nisso tudo, Ibroy disse:

— Por favor, não precisa ficar tão na defensiva. Não estou aqui pra te converter.

— Assim espero...

Bom, pelo menos ele deixou isso claro — eu não queria ter nada a ver com a fé dele. Beleza, vou acreditar. Não sabia se ele era uma boa ou má pessoa, mas como era próximo da Lucy, provavelmente não era horrível. Confiar, por outro lado, era outra história. Ele fez questão de marcar esse encontro, então com certeza não era só pra bater papo. E eu não podia ficar ali de braços cruzados sem saber por que fui chamado. Também não dava pra simplesmente levantar e ir embora. No fim das contas, só me restava escutar. Aposto que Ibroy não estava ali com más intenções.

— Lembra daquele sujeito, o Twilight, que pegamos outro dia? — perguntou Lucy. — Demorou um pouco pra ele abrir o bico, mas conseguimos descobrir umas informações preocupantes.

Twilight era o canalha que enganou a Mui — a Lucy fez justiça com as próprias mãos. Sabia que ele estava preso no porão da ordem e vinha sendo interrogado por lá. O que será que fizeram pra arrancar a verdade dele? Melhor nem saber, e nem quero perguntar. Prefiro continuar ignorante quanto a esse lado das coisas.

— Informações preocupantes? — repeti. — E isso tem a ver com o senhor Ibroy, presumo?

— Isso mesmo — confirmou Lucy.

Entendi. Ainda assim, não via ligação entre um ladrãozinho de quinta e a Igreja de Sphene. Mesmo que Twilight fosse um crente fervoroso, não iam mandar um sacerdote só por causa da prisão dele. Não entendi onde isso ia dar, mas o cheiro de problema já estava no ar. Só espero que não respingue pra cima de mim...

Ibroy foi o próximo a falar, aparentemente achando que era uma boa oportunidade para se explicar. — Vamos começar contando sobre nós.

Bom, não faz muito sentido me contar sobre a igreja, mas apontar isso não vai me levar a lugar nenhum. Decidi ouvi-lo em silêncio.

— Não sei o quanto você sabe, Beryl, mas nós da Igreja de Sphene acreditamos em um único deus, Sphene. Nossa fé se baseia na crença de que Sphene realiza milagres.

— Milagres? — perguntei, curioso.

— Feitiçaria para tratar ferimentos e restaurar membros perdidos — ele explicou.

— Ibroy, tem certeza de que pode falar assim? — Lucy interrompeu. — Quero dizer, chamar de “feitiçaria”.

Ibroy riu. — Ha ha! Bem, chamar assim facilita o entendimento, não é? Não vou ao ponto de citar as escrituras para um descrente.

Pelo que parecia, a divindade deles era baseada em alguém que usava magia para curar pessoas, embora eu não soubesse se Sphene era uma pessoa mortal ou um deus de verdade. Enfim, milagres, né? Existiam muitas palavras diferentes para magia neste mundo, e “milagre” era só mais uma delas. Nesse ponto, a esgrima era igual — tudo era luta com espada, mas existiam muitos estilos e técnicas diferentes.

— Então você está dizendo que a Igreja de Sphene diferencia feitiçaria de milagres? — perguntei.

— Exatamente — confirmou Ibroy. — Acredito que, no fim das contas, são a mesma coisa. Mas, por favor, não me peça pra dizer isso na frente de outros fiéis — completou com uma risadinha.

Eu tinha quase certeza de que isso não era algo pra se rir. As escrituras deviam ser de extrema importância pra quem servia a Deus. Esse cara era um padre bem ardiloso.

— Há um exemplo de magia que gostaria de discutir — algo que nossa fé considera o maior milagre de Sphene. — Ibroy fez uma pausa, e quando voltou a falar, seu tom mudou um pouco. — A habilidade de ressuscitar os mortos.

Isso está ficando suspeito... Mui e Twilight também tinham mencionado magia de ressurreição — talvez isso os conectasse ao padre.

Um milagre de ressurreição havia sido passado adiante como uma lenda na Igreja de Sphene. Isso, por si só, não era estranho. Lendas eram assim mesmo, e espadachins também tinham muitas histórias absurdas. No entanto, tentar realizar algo tão irrealista nos dias de hoje era problemático. Lendas eram lendas porque não podiam ser replicadas.

— Só pra confirmar, esse milagre já foi... — comecei a perguntar.

Ibroy me interrompeu. — De jeito nenhum. Ressurreição por magia é apenas parte de uma lenda. Essa é a minha visão sobre o assunto.

— Já imaginava.

A vida seria fácil se fosse possível trazer os mortos de volta. Mas, já que Ibroy estava falando disso, com certeza isso estava descrito nas escrituras da Igreja de Sphene. Em outras palavras, muitas pessoas dentro da fé acreditavam em magia de ressurreição.

— Hmph, é obviamente uma dramatização — resmungou Lucy.

— Lucy, não estou dizendo pra você ter fé, mas escolha quando e onde dizer essas coisas — disse Ibroy.

Esses dois pareciam bem próximos. Muito provavelmente se conheciam há bastante tempo. Mas enfim, ainda não tínhamos chegado ao ponto principal.

— Entendo que a Igreja de Sphene fale dessas coisas nas escrituras — falei. — Mas não vejo por que você me chamou.

Não havia chance de Ibroy ter vindo aqui só pra bater papo sobre escrituras. Como padre da Igreja de Sphene, ele não devia ter tanto tempo livre assim. Ele tinha feito questão de vir até aqui e marcar uma reunião comigo, justo comigo. Não fazia sentido que tivesse feito tudo isso só pra pregar a fé.

— Identificamos quem tem fornecido equipamentos mágicos para o Twilight — explicou Lucy, com um tom bem mais sério do que antes. — Reveos Sarleon, um bispo da Igreja de Sphene.

Outro homem da igreja, e ainda por cima bispo. Mesmo que eu aceitasse essa informação como verdadeira, ainda não via qual era o meu papel nisso.

— Vou direto ao ponto — disse Ibroy. — Gostaria de contratá-lo para capturá-lo.

— E-Espere um minuto — balbuciei. — Por que eu?

Nada disso fazia sentido. O culpado por fornecer equipamentos mágicos ao Twilight era um bispo da Igreja de Sphene — até aí, tudo bem. Mas por que eu fui contratado pra capturá-lo? Parecia que havia vários buracos nessa conversa. Isso não se resolveria num instante se a Lucy fosse atrás dele? Por que trazer isso pra um velhote como eu?

— Você é a única escolha que temos — explicou Ibroy. — Afinal, precisamos manter as aparências.

Até que faz sentido. A Ordem de Liberion também precisa manter uma boa imagem. Organizações assim precisam se preocupar com a opinião pública, já que só existem por causa do apoio do povo. Ainda assim, por que justamente eu fui escolhido pra essa missão?

— Motivo número um — disse Lucy, com um suspiro. — Eu não posso me mexer. O corpo mágico não pode arranjar encrenca com a Igreja de Sphene.

— Isso eu entendo.

O corpo mágico era uma das cartas na manga do Reino de Liberis, rivalizando apenas com a Ordem de Liberion. Se a comandante se metesse em confusão com a Igreja de Sphene, a coisa com certeza ia virar um problemão. A Igreja de Sphene era a religião oficial de Sphenedyardvania, então qualquer atrito poderia virar um conflito internacional num piscar de olhos.

— Allusia também não pode se mexer — continuou Lucy. — A ordem está no meio dos preparativos para convocar Reveos como testemunha-chave.

— Hmm... Isso não resolveria as coisas? — perguntei.

Dava pra entender se as provas obtidas torturando Twilight não fossem suficientes. Por isso estavam tentando obter um depoimento dele em vez de simplesmente prendê-lo. Ainda assim, de certa forma, convocar esse tal de Reveos resolveria a situação.

— O bispo Reveos é cidadão de Sphenedyardvania — disse Ibroy. — Se for culpado de algo, será fácil pra ele fugir do país.

Ah, então Reveos não era de Liberis. Provavelmente estava aqui em missão religiosa como bispo da Igreja de Sphene.

— Sr. Ibroy — falei —, sua palavra não ajudaria com esse problema?

No fundo, o que eu estava perguntando era: “Você mesmo não pode resolver isso?” Mesmo com os Ladrões do Crepúsculo envolvidos, essa treta era, essencialmente, um problema interno da Igreja de Sphene. Não dava pra resolverem sozinhos? Por que eu tinha que me meter nisso?

— Sou apenas um sacerdote — respondeu Ibroy, amargamente. — Vai ser extremamente difícil conter um bispo sem nenhuma evidência material. Além disso, a Ordem Sagrada de Sphenedyardvania não pode ser mobilizada com facilidade. Mobilizar tropas além das fronteiras exige uma desculpa muito convincente e, acima de tudo, leva tempo demais.

— A Ordem Sagrada...

Eu já tinha ouvido falar da Ordem Sagrada. Era tipo a Ordem de Liberion, só que como Sphenedyardvania era um estado religioso, suas forças armadas naturalmente estavam sob comando da igreja. A organização mais importante era a tal Ordem Sagrada, embora eu não soubesse muito além disso.

Não sabia do nível de habilidade deles, mas duvidava que fossem fracos. Um estado religioso ainda era um governo, no fim das contas. Sphenedyardvania controlava menos território que Liberis e tinha pouca influência política, mas isso não queria dizer que devíamos subestimá-los. Governar um país exigia lidar com uma multidão de gente e expectativas absurdas. Então, como força militar operacional, a Ordem Sagrada não podia ser só decorativa. E sinceramente, eu não tinha nenhuma intenção de arrumar confusão com eles.

— Twilight e Reveos estavam trabalhando sob um certo contrato — continuou Lucy. — Em troca de desviar artefatos mágicos da igreja, a Twilight fornecia duas coisas: pessoas com afinidade para magia, e pessoas que pareciam úteis mesmo depois de mortas.

Fiquei sem palavras. O acordo entre Twilight e Reveos era claramente ilegal. Não dava pra tornar isso público. Se viesse à tona, a Igreja de Sphene — ou talvez até o próprio país de Sphenedyardvania — seria duramente criticado.

— Acho que sei qual é o objetivo deles — acrescentou Lucy. — Muito provavelmente... querem reproduzir o milagre de Sphene.

O maior milagre registrado na lenda de Sphene era a ressurreição dos mortos. Esse bispo devia ser um crente fanático — mas... será que era mesmo justificável causar todo esse caos só por causa de fé?

— N-Nesse caso, por que não fazem um pedido pra guilda dos aventureiros ou algo assim? — protestei. — Eles não são ligados a nenhum país.

— Beryl, você quer expor os podres de Sphenedyard pra uma organização gigantesca que atua no mundo inteiro? — retrucou Ibroy. — Isso se tornaria bem problemático.

Então os aventureiros estavam fora de questão. E ele tinha razão. Fazer um pedido à guilda dos aventureiros significava, obviamente, passar os detalhes. E os membros da guilda não são burros — com as informações, logo sacariam a verdade, e isso podia acabar escancarando a vergonha de Sphenedyardvania pro mundo todo.

— Eu não quero ignorar o mal que está acontecendo dentro da igreja — disse Ibroy. — Não temos provas definitivas, mas duvido que esse tal de Twilight tenha mencionado o nome do bispo Reveos à toa.

Fato. Era estranho um ladrãozinho mencionar um bispo. Normalmente, ninguém esperaria que esses dois tipos de pessoas sequer se conhecessem. Twilight não teria dito o nome de Reveos se não houvesse algum tipo de ligação.

— Reveos não é suspeito no momento — disse Lucy. — Mas é um potencial suspeito. Não temos nenhuma prova concreta, então a ordem não pode tomar uma atitude mais firme. No máximo, podem convocá-lo. No entanto, se ele fugir enquanto tudo ainda está nebuloso, a verdade vai continuar enterrada.

Havia uma ponta de irritação incomum na voz dela. Estava claramente furiosa. Lucy levava a magia mais a sério do que qualquer outra pessoa que eu conhecia. Mesmo com uma lenda sobre ressurreição, ela não perdoava quem distorcia a magia a ponto de torná-la algo desumano. Pessoalmente, eu concordava com a ideologia dela — mesmo que não de forma absoluta.

Apesar de parte da minha hesitação ter sido dissipada, ainda havia um problema com o pedido de Ibroy que não dava pra ignorar.

— Eu sou... na verdade, um instrutor especial da Ordem de Liberion — contei a ele.

Sim — meu título era o problema. Suponha que eu ainda fosse só um instrutor de esgrima num dojôzinho do interior. Nesse caso, não haveria conflito de interesses com o pedido dele. Mas isso não era mais verdade — mesmo que eu não estivesse há muito tempo no cargo, agora eu trabalhava pra Ordem de Liberion. Consegui o título graças ao favor da Allusia, mas ele veio com uma carta de nomeação do próprio rei, então eu não podia simplesmente alegar que era um cidadão comum. E se a ordem já estava se movendo pra convocar esse bispo como testemunha, isso significava que estavam atuando por meios oficiais. Desrespeitar esses meios, ainda mais sem pedir permissão, definitivamente pegaria mal.

— Você não foi nomeado cavaleiro, certo? — disse Lucy. — Instrutor ainda é só alguém contratado. E além disso, quase ninguém fora dos cavaleiros sabe que você é o instrutor especial da ordem.

—V-Você tá forçando a barra...

Parecia um monte de jogo de palavras extremamente conveniente. Era verdade, mesmo que quase distorcesse os fatos. Eu não tinha sido nomeado cavaleiro pelo rei, então não era membro da ordem nem tinha feito juramento de lealdade. Ela chegou àquela conclusão dobrando a realidade até caber no que queria.

No fim das contas, eu simplesmente não conseguia aceitar que esse caso tinha a ver comigo.

— A Allusia sabe disso? — perguntei.

— Claro que sabe — respondeu Lucy. — Esse plano foi feito considerando isso.

Minha última esperança... foi pro ralo. Twilight estava preso no quartel da ordem, então seria estranho a Allusia não estar ciente da situação. Já tinham conseguido a aprovação dela pra esse pedido.

— Não estamos pedindo que você invada o lugar e o capture — disse Ibroy. — Na verdade, o mais correto seria dizer que queremos que você o capture caso ele tente fugir. Nada seria melhor do que o Bispo Reveos vir de boa vontade para prestar depoimento.

Uh... Parece que já estão contando como certo que eu vou aceitar? Mas eu não disse uma palavra sequer sobre aceitar esse trabalho. Sério mesmo, desde que cheguei em Baltrain, as pessoas ficam me jogando no meio das coisas sem nem perguntar se eu quero me envolver.

De qualquer forma, o pedido soava bem mais aceitável agora que não envolvia atacar uma igreja. Eles só queriam que eu ficasse de olho no local.

— Pode dar uma força? — perguntou Lucy. — Pense que é pelo bem da Mui.

— Isso é bem injusto, usar o nome dela agora — reclamei.

Tínhamos salvado uma garotinha, e agora era hora dos adultos resolverem as pendências. E, pra falar a verdade, trazer a Mui à tona era um argumento bem convincente — eu ficava meio sem jeito de recusar quando minha ausência poderia acabar prejudicando ela de algum jeito. Era importante cortar qualquer ansiedade que ela ainda tivesse com o futuro, inclusive no que envolvia a irmã, pra que ela pudesse seguir em frente no caminho certo.

— Ah, a propósito, a Mui sabe disso? — perguntei.

— Não — respondeu Lucy. — Não faz sentido contar agora.

— É... acho que não mesmo...

Não ganhávamos nada indo até ela e dizendo “Sua irmã foi vendida pra um bispo do mal.”

— Você será recompensado devidamente pelo seu esforço — disse Ibroy. — Então, Beryl, podemos deixar isso nas suas mãos?

Hmm, o que fazer? Não estou realmente interessado em recompensa. Se for pra me preocupar com alguma coisa, é com o futuro da Mui. Mesmo que a gente já tenha prendido o Twilight e alguns comparsas, ela ainda fazia parte daquela organização. Se a gente não fosse até a raiz do problema, essa ansiedade ia continuar pairando sobre ela pra sempre.

— Haaah...

Por mais que eu pensasse no assunto, esse plano estava além do que eu achava que podia dar conta. Mas também não dava pra simplesmente virar as costas e fingir que não era comigo. E eu não conseguia pensar em mais ninguém que eles pudessem procurar pra isso, ainda mais porque espalhar essa informação por aí podia ser um tiro no pé.

É... tô encurralado de todo lado.

Também tinha uma pontinha de preocupação em recusar um pedido de dois figurões desses. Eu sabia que eles não iam me fazer mal. Mas, se eu era mesmo a única pessoa em quem podiam confiar, então o problema não ia ser resolvido sem mim. Não havia um jeito “limpo” de lidar com isso. Alguma coisa ia dar errado, ou então a verdade ia sumir na escuridão antes que qualquer coisa pudesse ser feita.

E, apesar de tudo isso, o que mais me incomodava era...

— Acho que não dá pra ignorar o impacto de eu agir por conta própria.

Alguém que não soubesse do pedido podia muito bem dizer que um velho egocêntrico, cheio de vitórias, resolveu capturar o bispo por iniciativa própria. Isso com certeza geraria vítimas desnecessárias, e eu queria evitar esse tipo de coisa. Além disso, pra agir fora da alçada da ordem, eu precisava de um bom motivo. Não era questão de me proteger, mas sim de que eu sentia que não tinha motivação suficiente pra agir.

— Ah, sim. A Ordem de Liberion vai convocar o Bispo Reveos pra prestar depoimento, enquanto você terá recebido um pedido oficial da Igreja de Sphene — explicou Ibroy. — Acredito que isso resolve tudo.

— Eu quero provas concretas — acrescentou Lucy. — Por isso, não podemos de jeito nenhum deixar o Reveos escapar. Não quero dar tempo pra ele enrolar.

Pra mim, isso não resolvia nada. Minha total falta de imaginação achava essa situação toda completamente absurda, e eu não achava que era a melhor pessoa pra esse tipo de coisa. Era uma aposta arriscadíssima — eles estavam apostando todas as fichas no cavalo errado. Sério, eu só queria voltar pra casa e fingir que não tinha ouvido nada disso. Mas tudo começou porque eu decidi ajudar a Mui sem pensar direito. Então era minha responsabilidade, como adulto, ver isso até o fim.

— Haaah... Tá bom. Vou fazer o que eu puder — cedi.

— Vai mesmo?! — exclamou Ibroy. — Você tá salvando nossa pele. Obrigado.

Como ele disse, se o Reveos simplesmente viesse de boa pra depor, tudo se resolveria e o pedido terminaria sem maiores eventos. Eu precisava apostar todas as minhas fichas nesse cenário. Mas também não podia esquecer que me procuraram justamente porque não tinham muita esperança de que ele fosse colaborar.

— Pode tratar isso como um pedido formal da Igreja de Sphene — acrescentou Ibroy. — Caso algo aconteça, Lucy e eu nos responsabilizaremos.

— Com certeza — Lucy assentiu. — Eu não posso ajudar diretamente, mas pode contar com isso.

— Ah, entendi...

Pelo menos estavam se responsabilizando, então eu não me meteria em encrenca. Mas será que isso me deixava mais tranquilo?

— E então? O que exatamente eu tenho que fazer? — perguntei. Agora que eu tinha aceitado, não havia motivo pra enrolar. Queria que me explicassem logo o que eu teria que fazer, pra eu poder voltar pra estalagem e dormir.

— A ordem pretende convocá-lo depois de amanhã — explicou Lucy. — Considerando o timing... você age hoje à noite.

— H-Hoje à noite?!

Eles estavam mesmo planejando um ataque relâmpago desses?

— Tá nas suas mãos, Beryl — disse Ibroy.

— C-Certo...

Droga. Seja o que Deus quiser...

— Bem, com licença — disse Ibroy, se levantando da cadeira.

Então ele não ia me passar os detalhes? Ou estava deixando isso tudo com a Lucy? Eu ainda não tinha recebido nenhuma informação.

— Suponho que não preciso te acompanhar até a porta — respondeu Lucy. — Até mais, Ibroy.

— Ha ha ha, você continua a mesma de sempre — respondeu Ibroy, rindo. Depois, se virou pra mim. — Até mais, Beryl. Tá nas suas mãos.

— É... pode deixar...

Nas minhas mãos, hein? Agora que aceitei, vou fazer o que puder... mas ainda não me disseram contra o que exatamente eu vou lidar. Só falta quererem que eu invada a igreja sozinho.

— Oh, Mestre Ibroy. Já está indo?

— Aah, Haley. Me perdoe.

Ibroy tinha esbarrado em Haley na saída. Talvez Lucy tivesse decidido não acompanhá-lo até a porta porque sabia que sua empregada estava logo do lado de fora. Ainda assim, achei que ela devia mostrar um pouco mais de educação e levá-lo até a entrada, mas a gente ainda não tinha terminado a conversa aqui.

— Então? O que você quer que eu faça? — perguntei de novo, voltando minha atenção para dentro do cômodo.

— Mmm. Vou explicar agora. — Lucy se levantou da cadeira e pegou um livro fino da estante encostada na parede. Pelo que deu pra ver enquanto ela folheava as páginas, era um mapa de Baltrain. — O Reveos normalmente está na igreja do distrito norte — explicou ela, apontando no mapa. — É lá que queremos que você fique de olho.

— Hmm... Você diz isso, mas eu nem conheço direito a área.

O distrito norte era onde ficava o palácio real de Liberis. Desde que me mudei pra Baltrain, nunca tinha ido lá — só conhecia os distritos central e oeste. Pra ser sincero, nunca tive motivo pra ir até lá. Então, com o pouco que eu sabia da cidade, só apontar um lugar no mapa não ajudava muito.

— Se você pegar uma carruagem até o distrito norte, a igreja vai estar bem ali — disse Lucy. — Fica a uma distância caminhável da minha casa. Considerando o horário, tanto faz o jeito de ir, mas...

— Tenho medo de me perder, então vou de carruagem.

As carruagens que circulavam por Baltrain funcionavam até relativamente tarde. Muitos moradores trabalhavam nos distritos central, oeste e sul, mas viviam no leste. Por isso as carruagens ainda estavam em movimento mesmo depois do pôr do sol.

No meu caso, eu estava hospedado numa pousada no distrito central, e meu trajeto principal era até o escritório da ordem, que também ficava no centro. Mesmo morando numa cidade grande, meu raio de atividade era minúsculo. Eu estava me acostumando com Baltrain, mas minha última visita ao distrito norte tinha sido muito, muito antes de me mudar pra cá.

— A Igreja de Sphene fica perto do ponto de parada da carruagem — explicou Lucy. — Você deve conseguir vê-la assim que descer.

— Tomara.

Seria ridículo aceitar esse pedido só pra me perder no caminho. Lucy tinha dito que era fácil de encontrar, então o jeito era torcer pra que fosse mesmo verdade.

— Não me importaria se tivesse alguém pra me guiar — comentei.

— Eu adoraria, mas...

Claro. Nem o corpo mágico nem a ordem podiam se mexer. Eu tinha que agir sozinho.

Lucy suspirou, depois continuou:

— Julgando pelo contrato entre o Reveos e a Twilight, muita gente vai se incomodar se isso vier à tona. Se todos estiverem se preparando pra cair fora do país, é bem provável que ele não aja sozinho.

— Hmm...

Reveos era suspeito de tráfico e experimentos humanos. Mas, pelo que Lucy tinha acabado de dizer, ele não estava pesquisando o milagre por conta própria. Provavelmente não podia — não sem alguém perceber. Então, devia ter colaboradores, ou ao menos algumas pessoas influentes que compartilhassem da mesma ideologia. Eu devia ter perguntado isso enquanto o Ibroy ainda estava aqui. Se isso fosse acabar numa briga, eu queria saber qual era o tamanho da encrenca.

— Acho que... não dá pra descartar a possibilidade de dar porrada — falei.

— Se ele tentar fugir durante a noite, ou usar a força pra conseguir o que quer, é totalmente possível — confirmou Lucy. — Bom, com a sua força, isso não vai ser problema.

— Sei não, viu...

Essa história toda cheirava a encrenca. Eu não tinha tido problema nenhum com um monte de trombadinhas, mas se fosse enfrentar gente com força de cavaleiro, aí a coisa mudava. E se a influência e os recursos deles fossem um mistério, a situação podia ficar bem feia.

— E se eu deixar ele escapar? O que acontece?

— Prefiro nem pensar nisso... — murmurou Lucy. — Provavelmente vai virar uma treta diplomática entre Liberis e Sphenedyardvania.

O Reino de Liberis não podia ignorar a possibilidade da Igreja de Sphene estar envolvida nas maldades do bispo. Por outro lado, Sphenedyardvania não podia aceitar ser criticada só por causa das palavras de um ladrãozinho — não sem provas concretas. Provavelmente ia acabar desse jeito. Eu não manjava muito de política internacional, mas se alguém começasse a acusar outro país do nada, era difícil que eles aceitassem numa boa. Por isso seria melhor capturar o bispo. Mas o nosso lado tinha pouquíssimas cartas na manga pra agir.

— Não se preocupe, é só uma vigilância — garantiu Lucy. — Se ele vier quietinho pra ser interrogado, nada vai acontecer.

— Só nos resta torcer...

Ela estava tentando parecer otimista, mas ela e o Ibroy já tinham considerado que isso era improvável. Foi por isso que trouxeram o pedido até mim. Eu torcia pra estar sendo paranoico à toa, mas o mundo estava cheio de gente podre.

— Isso é só conjectura minha, mas magia de ressurreição não existe — disse Lucy.

— Hm? Você comentou isso antes.

— Mesmo assim, o Reveos está pesquisando isso sem parar. Lidar com cadáveres exige tempo e trabalho, e eles não simplesmente somem depois de usados. Então, onde exatamente estão os corpos que ele sacrificou pra essa causa?

Por favor, pare. Eu realmente não queria saber disso. Se ele estava tentando ressuscitar gente, obviamente precisava de cadáveres. Por isso a Twilight mandava certos tipos de pessoas pra ele — aquelas que ninguém notaria se desaparecessem. Será que essas pessoas ainda estavam vivas? Difícil dizer. A verdade provavelmente viria à tona se as atrocidades dele fossem reveladas, mas por enquanto, tudo permanecia nas sombras.

— Tenho um mau pressentimento — disse Lucy. — Por isso espero que você consiga garantir que ele seja capturado.

— Entendido. Vou fazer o que puder.

Más premonições geralmente estavam certas. Não que eu tivesse alguma prova pra sustentar isso. Mas seria melhor se tudo se acalmasse antes de eu esbarrar no Reveos — nós dois inevitavelmente entraríamos em conflito. Instintivamente levei a mão até a bainha na minha cintura, embora torcesse para não precisar empunhar minha espada contra um humano. No fim das contas, eu não queria matar ninguém.

— Certo então, tá na hora de ir — eu disse.

— Mm. Tome cuidado.

Olhei pela janela. Já estava escurecendo lá fora. Se o Reveos fosse agir, seria essa noite. E se eu chegasse tarde e perdesse ele fugindo na calada da noite, todo esse esforço teria sido em vão. Eu não estava empolgado com esse trabalho, mas era um pedido formal do Ibroy, então não dava pra fazer corpo mole.

— Desculpa por isso — murmurou Lucy enquanto eu saía da sala.

— Eu entendo por que o corpo mágico não pode se mexer. Mas, bem, também dá pra ver que fui eu quem tirou a parte ruim dessa história.

Mesmo que eu nunca tivesse conhecido a Lucy, isso provavelmente teria caído no colo de outra pessoa e sido resolvido sem eu saber. Ou não. Se eu e a Mui nunca tivéssemos nos encontrado, as coisas não teriam chegado tão longe. Indo ainda mais atrás, tudo isso foi culpa da Allusia por me recomendar como instrutor especial. Sem a intervenção dela, eu ainda estaria em Beaden ensinando esgrima pra crianças, sem me preocupar com nada. Quanto mais eu pensava nisso, mais estranho esse rumo do destino parecia.

Essa responsabilidade era pesada demais pra um velho na casa dos quarenta. Mas eu não era o tipo de pessoa que ignora uma promessa depois de tê-la feito.

— O Ibroy já comentou isso, mas você será recompensado apropriadamente — disse Lucy. — Estou contando com você.

— Haha. Não vou criar muita expectativa quanto a isso.

Com essas palavras de despedida, deixei a casa da Lucy. Primeiro, eu precisava chegar ao meu destino. Ela tinha dito que era a uma distância caminhável, mas eu não sabia exatamente o caminho e a visibilidade estava péssima. Resolvi, humildemente, pegar uma charrete.

— Ah, droga.

Onde é o ponto de charrete mais próximo, afinal? Não acredito que esqueci de perguntar algo tão importante pra Lucy.

Em pânico, voltei correndo pra falar com ela.

Lucy atendeu a porta com uma expressão de confusão.

— Hm? O que foi, Beryl?

— Ahm. Eu... não sei onde fica o ponto da charrete... — expliquei, meio sem graça.

— Ah, isso? Fica...

Pelo visto, era só seguir direto pela rua. Como eu não conhecia bem a área, fiquei preocupado com a possibilidade de precisar entrar em alguma rua tortuosa. Honestamente, eu não tinha tempo a perder me perdendo por aí.

Assenti com a cabeça.

— Valeu, isso ajuda. Beleza, agora é sério — tô indo.

— Uhum. Tô confiando em você.

Assim que me despedi da Lucy de novo e comecei a sair...

— Ah.

Esbarrei com a hóspede da casa, a Mui. Uma jovem criada estava ao lado dela, usando as mesmas roupas da Haley.

— Mui — chamei. — Não te vi por aqui. Saiu?

— É... — respondeu de forma curta. Ainda assim, aquele jeitão espinhoso dela parecia ter sumido. Não senti nenhuma repulsa ou desconforto na voz dela. Isso era ótimo.

— Ah, Mui, bem-vinda de volta — chamou Lucy da porta. — Comprou tudo?

— Aham...

Mui estendeu a sacola na mão esquerda. Parecia que tinha saído pra fazer compras. Aquela cena me deu a sensação de realmente ter uma filha... embora eu não achasse que a Lucy servia muito pro papel de mãe. A criada que acompanhava a Mui fez uma reverência e sumiu pelo hall de entrada. Descobri ali que a Lucy tinha mais empregados além da Haley. Ela vivia mesmo com luxo.

Já estava escuro lá fora. A expressão da Mui era indecifrável. Com o jeito calado dela agora, não dava pra entender direito como ela tava se sentindo. Então, resolvi puxar assunto elogiando.

— Comprinhas, hein? Mandou bem.

— Cala a boca... — resmungou. — Qualquer um consegue fazer isso.

Hmm, será que falei besteira? Tenho quase certeza que a ideia é elogiar as crianças quando elas se esforçam com alguma tarefa.

— Que que cê tá fazendo aqui, véio?

— Aaah, ahm... Tinha uma coisinha pra conversar. — Decidi bancar o desentendido. A Lucy ainda não tinha contado nada pra ela, então era melhor eu evitar o assunto também.

— Entendi.

Mui não insistiu no assunto. Ficamos em silêncio por alguns segundos ali na entrada.

— De qualquer forma, fico feliz de ver você levando uma boa vida — falei depois de um tempo. — Tava achando que a Lucy ia te usar como faz-tudo ou algo assim.

— Ei, que tipo de imagem você tem de mim? — protestou Lucy atrás de mim.

Pra falar a verdade, a Mui tava com uma aparência muito melhor do que antes. As roupas dela não estavam esfarrapadas e, embora fossem simples, estavam claramente limpas. Estava escuro demais pra ter certeza, mas a pele e o cabelo dela pareciam mais saudáveis também. Isso mostrava que ela estava comendo bem, dormindo direito — e que a Lucy estava cuidando dela de verdade. Mesmo não sendo o pai da Mui, saber disso me dava um certo alívio. Meus comentários descontraídos vinham de uma preocupação sincera, mas tentei não deixar isso tão evidente.

— Por quê? — perguntou a Mui, observando a conversa entre eu e a Lucy.

Virei na direção dela.

— Hm?

— Por que vocês... estão sendo tão gentis comigo?

Ela falou de um jeito meio sem jeito. Não parecia estar incomodada, só... confusa.

— Hmm...

Eu realmente não sabia como responder aquilo. Cocei a cabeça e olhei pra Lucy. Ela também parecia meio sem saber o que dizer.

— É natural que um adulto cuide de uma criança — respondeu ela, por fim.

— Concordo — completei. — Um adulto de verdade sempre estende a mão... nem que seja só pra quem estiver ao alcance dela.

Lucy e eu chegamos à mesma conclusão, e essa era minha opinião honesta sobre o assunto. É verdade que a Mui tinha se envolvido com crimes. Esses atos não podiam ser justificados, mesmo que ela os tivesse cometido pra sobreviver. Se a gente começasse a passar pano com esse tipo de justificativa, praticamente todo criminoso do mundo seria inocente por “circunstâncias atenuantes”. No entanto, para o bem ou para o mal, Mui tinha escapado daquele mundo, e seus crimes nem eram tão graves assim. Considerando a idade dela, se demonstrasse arrependimento, bastava uma bronca séria e tava resolvido.

—Eu... Eu nunca tive nenhum adulto assim na minha vida! —gritou Mui, quase sufocando a própria voz. —Eu só...! Só ficava roubando dos outros, pensando em como viver mais um dia! Eu só conheci vocês porque você parecia um alvo fácil! E aí você me deu dinheiro! E fez tudo isso por mim! Por quê? Por que...?

A confusão dela virou um grito desesperado que ecoou ao nosso redor. Eu tinha certeza de que ela era bem esperta, apesar da falta de estudo. Ela pensava bastante sobre as coisas que tinha feito. Também dava pra imaginar bem o tipo de adulto podre que tinha cercado ela naquela época. Os canalhas do covil dos ladrões eram um reflexo exato disso.

Ela tava confusa. Eu não sabia exatamente como estavam tratando ela agora, mas pelo que dava pra ver, a Lucy não estava sendo cruel. E isso era algo pra se comemorar, mas Mui não parecia conseguir aceitar.

Antes de mais nada, ela precisava encarar de frente o problema dentro do próprio coração. Mas quem parecia mais indicada pra assumir essa missão era a Lucy. Joguei um olhar rápido pra ela... e ela só ficou ali, olhando de longe.

Hein?! Depois de tudo o que me fez passar, isso não é injusto, não? Tô me sentindo usado como forrinho de conveniência. Embora, pensando bem, eu até entendo ela não contar pra Mui as suspeitas sobre o Twilight e o Reveos. Enfim. No fim das contas, fui eu que comecei tudo isso —fui eu que criei a chance pra tirar a Mui daquele atoleiro.

—Mui, você é só uma criança —falei o mais gentilmente possível. Eu queria evitar mexer demais com os sentimentos dela.

Me vieram à cabeça as vezes que precisei dar bronca em alunos bagunceiros. O dojô era um lugar pra aprender a manejar a espada, então sempre tinha algum moleque endiabrado por lá. Mas a situação da Mui era diferente—não dava pra colocar ela na mesma categoria.

—Criança não precisa se preocupar com essas coisas complicadas —continuei. —É importante não parar de pensar por completo... mas você pode começar relaxando, se permitindo respirar nesse novo ambiente que tão oferecendo pra você.

—Essas são só palavras bonitas pra enganar criança!

—Não. É a verdade —afirmei direto. Crianças são o futuro, e cabe aos adultos protegerem elas. Nenhuma criança vale mais ou menos que outra. —Não tem nenhum adulto aqui tentando te enganar ou manipular. Não falei isso antes? É responsabilidade dos adultos resolverem essas coisas. Isso é agir como um adulto de verdade.

—Você tá dizendo pra eu só aproveitar a situação?

—Hm? Tô, sim. Qual o problema?

Apesar da idade, a Mui vivia pensando no próprio futuro... ou talvez já tivesse desistido dele. Era essa a impressão que ela passava. Considerando o ambiente onde cresceu, não dava pra culpar ela por isso. A gente precisava consertar isso.

Criança tem que depender de adulto—é nosso dever cuidar delas. E se fizermos isso direito, elas crescem, aprendem a julgar com a própria cabeça, e vão entendendo o mundo aos poucos, pela experiência. É dever de um pai, instrutor, veterano, ou qualquer outro adulto, observar esse crescimento. A Mui, no entanto, nunca teve ninguém pra orientar ela. Provavelmente, só a irmã mais velha fazia esse papel.

Levando em conta a idade dela e o trauma de ter sido acolhida por ladrões, era possível que ela tivesse essa visão de si mesma justamente por causa dos ensinamentos da irmã. Com certeza, era uma irmãzona incrível—tanto que não se encaixava naquele mundo sujo em que acabaram. E foi justamente por isso que aquele mundo a engoliu... sem deixá-la proteger a irmãzinha até o fim.

—Isso... Isso é mesmo certo? —perguntou Mui.

—Tá tudo bem, Mui —confirmei. —Você tem um futuro pela frente. Um futuro muito mais longo e brilhante que o de um velho que nem eu.

Enquanto eu já tava no fim do caminho, Mui ainda tinha um monte de possibilidades pela frente. Ainda dava tempo de mudar tudo. E justamente por isso, era minha responsabilidade acolhê-la agora.

Não ia ser fácil apagar todas as dúvidas dela de uma hora pra outra. Então o melhor era dar tempo ao tempo, até que ela se acostumasse com aquele novo ambiente.

—Bom —falei —, se ainda não consegue aceitar nossa ajuda sem dar nada em troca, então faz assim: quando virar uma adulta de verdade, paga um jantar bem gostoso pra este velhote aqui. Aí a gente fica quites.

Dei um tapinha na cabeça dela. Não percebi logo de cara a reação, mas como ela não afastou minha mão, acho que aceitou o gesto.

—Tá tirando com a minha cara, né —resmungou, baixinho.

—Tô nada. Que injustiça.

—Opa! Quando chegar essa hora, me paga um jantar também! —gritou Lucy, se enfiando no meio. —Eu também tô dando meu sangue aqui!

—Você só ficou tocando o terror —retruquei, lembrando como ela largou todos os ladrões pra mim.

—O quê?!

Apesar disso, ela foi quem acolheu a Mui no final.

—Hmph.

Mui bufou, olhando pra gente. Parecia que ela tinha desistido de discutir. E como a Lucy também não rebateu, acho que tava mais ou menos de acordo comigo. Era papel dos adultos lidar com o próprio ego e seguir em frente.

—Vai, entra logo —disse, tirando a mão da cabeça dela.

—Tá bom... —Mui fez uma carinha emburrada e começou a andar.

—Beleza então, Beryl. Agora é contigo —disse Lucy, me encorajando.

—É. Vou fazer o que puder.

Essa conversa me fez lembrar por que eu tinha vindo aqui em primeiro lugar. Mui ainda não tinha tido tempo suficiente pra realmente se reerguer. Absolutamente tudo na vida dela tinha mudado rápido demais. Eu só podia rezar pra que ela encontrasse paz nessa segunda chance, e, pra isso, eu precisava cortar todas as fontes da ansiedade dela.

Me virei pra dar uma última olhada e vi a Lucy abraçando a Mui por trás, bem na frente da porta. Hmm. Se fosse a Haley abraçando a Mui, seria uma cena digna de pintura. Mas com a Lucy, parecia só duas crianças fazendo bagunça. Digo, a Lucy até parece mais nova que a Mui.

— Me sinto como um pai sendo mandado pro trabalho pelas filhas... — murmurei.

Essa família de mentirinha é mesmo ridícula. Mas... não é ruim ter alguém se despedindo de você antes de sair pra trabalhar. Acho que vou dar o meu melhor. Seria ótimo se no fim das contas eu não precisasse fazer nada, porém.

Depois de me despedir da Lucy, fui até o ponto de carruagens que ela tinha mencionado, esperei uma aparecer e peguei uma com um cocheiro que parecia meio confuso.

Tinha pouquíssima gente indo pro distrito norte a essa hora — normalmente, à noite, as pessoas iam na direção oposta. O norte era mais voltado pro turismo, com o palácio real sendo a principal atração. Só havia uma pequena área residencial, então morava muito menos gente lá do que nos outros distritos. Pensando por esse lado, não era de se espantar que eu fosse o único na carruagem.

— Haah... — suspirei, vendo a paisagem urbana passar devagar pela janela.

Se o Reveos fosse fazer algum movimento, seria no meio da noite, quando a cidade toda estivesse dormindo. Seria ótimo se ele não aparecesse. Mas, se aparecesse... bem, eu não teria escolha a não ser contê-lo. Foi pra isso que vim. E considerando que vou enfrentar pessoas, não monstros, talvez eu devesse ter trazido uma espada de madeira. Infelizmente, tudo que eu tinha era uma lâmina de verdade, afiada pra caramba, feita dos restos do Zeno Grable. Não dá exatamente pra testar esse fio numa pessoa... De qualquer forma, só me restava torcer pra que tudo terminasse em paz. Mas o fato desse pedido ter caído no meu colo já indicava que ninguém esperava um final pacífico.

— Senhor, chegamos.

— Aaah, certo. Obrigado.

Enquanto eu afundava nesses pensamentos meio morosos, a carruagem já tinha parado no distrito norte. Paguei a passagem e desci — o vento noturno soprou suave contra meu rosto. Ao meu redor, o silêncio era total, e só dava pra ver um ou outro pedestre lá longe. Faz sentido, claro. O palácio real ficava aqui, então, diferente do distrito oeste, ninguém fazia algazarra a essa hora. O lugar era tão quieto que, se alguém fizesse barulho, a guarda chegaria num piscar de olhos.

Estava difícil enxergar com tão pouca luz, mas dava pra ver a silhueta do palácio se esticando pro céu não muito longe dali. Eu preferia ter visto o castelo com a luz do dia. Aposto que fica incrível sob o céu azul. Minha última lembrança do palácio era de muito tempo atrás, então não devia ter mudado tanto assim. Não me importaria de passar um dia vivendo num lugar tão luxuoso. Mas, né... sonho bem irreal pra um velho do interior.

— Tá certo, então...

Desviei os olhos da sombra do palácio e foquei nos prédios ao nível da rua. Segundo a Lucy, a igreja dava pra ver do ponto de carruagem.

— Aquilo ali é...?

Olhei em volta, procurando entre os prédios com luz nas janelas. Logo vi o contorno de um prédio um pouco mais alto que os outros na direção oposta ao palácio. Talvez estivesse no alto de uma colina. Estimei que dava pra chegar lá em menos de uma hora a pé. Embora não tivesse a altura do palácio, a torre dele se erguia bem alto. À primeira vista, não vi outro prédio parecido, então era seguro supor que aquela era a tal igreja. E se não fosse, pelo menos eu ia rir muito depois.

— Tá realmente silencioso...

Meu resmungo se perdeu no céu noturno. No caminho um pouco longo até a igreja, cruzei com tão poucas pessoas que dava pra contar nos dedos. Era tarde demais — quase ninguém andava por ali. Provavelmente tinha soldados patrulhando perto do palácio, mas por aqui não vi nada disso. Se eu causasse confusão ali, o som se espalharia na hora, e mesmo sem guarda à vista, seria questão de minutos até eles chegarem correndo do palácio. Eu queria evitar isso, se possível. E se a coisa degringolasse, que fosse rápido.

— Hmmm...

A igreja estava mesmo no alto de uma colina. O caminho até o templo principal subia numa leve inclinação, e dali já dava pra ver as portas da frente fechadas. Não vi ninguém por perto, mas uma luz fraca escapava pelas janelas. Havia uns montes dos dois lados do prédio que pareciam túmulos. Talvez as pessoas que o Twilight entregou à igreja tivessem sido enterradas ali. Que pensamento nojento.

— As lâmpadas estão acesas... Então ainda tem gente lá?

Duvidava que algum fiel estivesse ali pra rezar a essa hora. Provavelmente o pessoal do lado do Reveos estava lá dentro. Não dava pra ouvir nada do lado de fora, então não fazia ideia do que estavam aprontando. E também não dava pra simplesmente invadir o lugar, então me escondi fora de vista e fiquei esperando. Se alguém visse um velho espiando a igreja no meio da noite, ia com certeza achar estranho. Ainda bem que não tinha ninguém por perto — era bem capaz de alguém chamar a guarda se me visse agindo de forma suspeita.

De qualquer forma, quanto tempo eu ia ter que ficar vigiando esse lugar? Meu estômago já tava começando a reclamar, e duvidava que alguma loja do distrito norte ainda estivesse aberta. Seria irreal esperar aqui pra sempre, mas também não dava pra prever quando o pessoal lá dentro ia sair, então não podia simplesmente me afastar. Parece que não tenho outra escolha além de aguentar essa fomezinha.

— Oh?

Fiquei observando por um tempo, travando uma batalha mental contra o estômago, até que finalmente vi algum movimento perto da igreja. O som sutil de uma fechadura girando ecoou no ar silencioso, e várias figuras saíram pela porta da frente do templo principal. Foi aí que percebi que eu nem tinha perguntado como o Reveos se parecia, então não dava pra saber quem era quem.

O grupo era relativamente grande, e alguns deles usavam armaduras completas. Pareciam cavaleiros pesados — definitivamente não eram fiéis devotos indo rezar à igreja no meio da madrugada. Fazia mais sentido que fossem escoltas para a tentativa de fuga do bispo.

Me escondi ao lado da estrada que levava até a igreja e, de lá, consegui observar melhor. Eles estavam carregando bastante bagagem — vi várias caixas de madeira grandes, cada uma sendo carregada por grupos de homens, incluindo os cavaleiros. Isso tornava ainda mais provável que estavam tentando fugir. Caso contrário, por que estariam levando tanta coisa no meio da noite?

Se nossas suspeitas estivessem certas, eu não podia simplesmente ignorar aquilo — eu estava aqui e tinha um trabalho a fazer. Me levantei, sentindo a lombar reclamar um pouco, e me aproximei do grupo.

— Tem um minuto? — perguntei de forma casual, como se só tivesse passado por ali por coincidência.

Vi eles reagirem à minha voz — uma onda de agitação surgiu entre o grupo. No começo, pareciam surpresos, mas logo ficaram em alerta. Vários pares de olhos se voltaram pra mim. Estavam claramente nervosos.

— E quem é você? — perguntou um homem no centro do grupo. — Duvido que esteja aqui pra fazer uma oração.

Ele parecia ter mais ou menos a idade do Ibroy — um pouco mais velho que eu. O cabelo era praticamente branco como a neve, o que me lembrou do mestre da guilda, o Nidus. Mas, ao contrário daquele velhinho simpático, esse aqui tinha uma voz cheia de espinhos.

— É como você disse — respondi. — Não vim rezar.

— Então o que quer aqui? — ele insistiu. — Não temos tempo pra lidar com cordeiros perdidos.

E agora, o que fazer? Eles estavam claramente em guarda comigo. Os cavaleiros pesados pareciam prontos pra sacar as espadas a qualquer momento. Paradoxalmente, o fato de estarem tão cautelosos com um velhote solitário reforçava a teoria da Lucy e do Ibroy: esses caras estavam tramando algo. Mas não tinha motivo pra contar isso a eles.

— Posso presumir que você é o Bispo Reveos Sarleon?

— De fato, sou eu.

Então o velhote com quem eu tava falando era o meu alvo. Enquanto falava, a barriga farta dele balançou. Não parecia em nada com a imagem ideal de um bispo. Mas, claro, não dá pra julgar alguém só pela aparência.

De qualquer forma, eu não sabia como levar a conversa adiante. Por enquanto, ele não estava fugindo nem me atacando, e os outros do grupo também deviam estar confusos sobre o que fazer com um intruso repentino. Mesmo que tivessem culpa no cartório, Reveos ainda era uma figura influente como bispo da Igreja de Sphene. Então era melhor pra ele evitar conflitos desnecessários. Bem, tanto faz. Nada de enrolar. Vamos direto ao ponto.

— Acredito que você foi convocado como testemunha pela Ordem de Liberion — falei.

— Isso não tem nada a ver com você — respondeu Reveos.

O clima mudou um pouco. Especificamente, os cavaleiros pesados deram um passo à frente, posicionando-se ao lado do Reveos. Levaram a mão às espadas. Senti uma leve, mas nítida sede de sangue escapando por entre as fendas das armaduras.

Haah... Agora não dá mais pra evitar uma briga. Eu realmente não queria sacar a espada aqui, mas fazer o quê. Também não tô nem um pouco afim de enfrentar cavaleiros em armadura completa. Forçar uma lâmina contra metal não é nada fácil.

— Posso pedir que venha comigo, Bispo Reveos? — perguntei, me posicionando de um jeito que desse pra sacar a espada num instante.

— Spur.

O bispo abaixou os olhos e chamou baixinho o cavaleiro ao lado dele. O tal Spur assentiu em silêncio e puxou a espada. Ao ver isso, os outros cavaleiros também desembainharam as armas.

Beleza... então é isso mesmo. Eu não queria lutar, mas não tinha mais como evitar. Puxei minha espada da bainha vermelha. A hora de resolver as coisas com conversa já tinha passado. E, porra, esse tempo foi curto demais!

— Isto também é decreto divino — declarou o bispo. — Não há problema algum em mais um homem se oferecer ao nosso milagre. Façam-no.

As palavras do Reveos foram o sinal. Os cavaleiros avançaram contra mim. Eram três... não, quatro. O resto largou a bagagem e formou um círculo de proteção ao redor do bispo. Enfrentar um inimigo com armadura já era difícil, então lidar com vários ao mesmo tempo era mais do que eu esperava. Será que saio vivo dessa? Não que adiantasse reclamar com uma espada vindo direto pra cima de mim. Eu só precisava cumprir meu dever.

— Shhh!

Desviei o golpe da espada e recuei com um salto, criando distância entre mim e os inimigos. Ser cercado em combate corpo a corpo tornaria tudo impossível. Parece que esses cavaleiros não estavam usando espadas longas — as armas pareciam estocs. Um tipo de espada bem raro de se ver. Seria esse o equipamento padrão da Ordem Sagrada da Igreja de Sphene? Se sim, a influência da facção do Reveos era bem mais profunda do que imaginávamos. Espero que o Ibroy esteja bem... Duvido que a gente consiga acabar com essa conspiração capturando só um bispo.

Quando saltei pra trás, os cavaleiros pararam de repente. Mais precisamente, o que me atacou diminuiu o ritmo, e os outros foram influenciados por isso — todos pararam ao redor dele.

— Tch...

O cavaleiro estalou a língua e atirou o estoque pro lado. Em seguida, puxou a adaga da cintura e se preparou pra luta de novo. Hã? Que foi isso? Por que ele jogou a arma fora? O som agudo do metal batendo contra a pedra ecoou pela área silenciosa do distrito norte. Puxado pelo barulho, olhei pro estoque no chão. O ponto onde minha espada tinha acertado estava visivelmente amassado, e a lâmina estava toda lascada.

— Haha, essa foi uma surpresa.

Meus olhos caíram naturalmente pras minhas mãos. Tá de brincadeira, né? Essa espada tá afiada demais. Destruiu a arma do cara com um único golpe. Que tipo de monstro é essa lâmina? Caramba, Baldur, que tipo de coisa maluca você forjou pra mim? Não sei se consigo domar um bicho selvagem desses.

— Essa espada é perigosa. Fiquem atentos... — avisou Spur. — Ataquem!

Os cavaleiros ficaram chocados, mas, infelizmente, não foi o suficiente pra fazerem meia-volta. Spur, que provavelmente era o líder, botou fogo no rabo dos outros, e lá vieram os cavaleiros de novo.

— Então não vai se entregar numa boa, hein?!

— Gah!

Um a menos. Desviei do estoque que veio pelo lado e retribuí com um corte ascendente. Senti a lâmina cortando a armadura de placas e rasgando a carne por dentro. Já tinha percebido no confronto anterior, mas essa nova espada é realmente afiada o bastante pra cortar armadura como se fosse papel. Já era, tanto faz se os caras estão trajados ou não. Na verdade, agora eu tinha que tomar mais cuidado pra não cortar fundo demais e acabar matando alguém. Não sei se fico grato por isso ou não.

— Hmph!

— Guh!

Dois. Tratei de um golpe diagonal desviando o estoque que vinha de cima. Depois mudei a pegada da empunhadura e cortei na horizontal, abrindo um traço reto no tórax da armadura e fazendo o sangue jorrar. Senti a lâmina rasgando bastante carne, mas acho que não foi fatal. Droga, faz tempo que não entro numa luta séria dessas. Será que tô enferrujado?

— Seu...!

— Shhh!

Três. O cavaleiro cujo estoque eu tinha quebrado veio pra cima com a adaga em posição invertida. Dei meio passo pra trás pra desviar do corte descendente. Antes que ele pudesse trazer a lâmina de volta, atingi a adaga dele com um corte lateral.

— Ugh! Cuidado! Ele é forte! — gritou um dos cavaleiros.

Ah, nem sou tão forte assim. Eles tão achando isso por causa da arma que tô usando. Tomara que esse pensamento atrase um pouco os movimentos deles.

— Permissão pra usar milagres. Não vacilem — disse Spur, com a voz calma ecoando pelo lugar.

Milagres, é? Pelo que eu sei, esse é o nome que eles dão pra magia de cura. Então... que tipo de milagre vocês vão usar? Só espero que não comecem a tacar bolas de fogo igual a Lucy. E se fizerem isso, nem deviam chamar de milagre, convenhamos.

— Ó grande Deus dos céus, conceda-nos sua bênção divina. Nos presenteie com força.

Os cavaleiros entoaram uma espécie de prece ritual. Assim que terminaram, uma luz pálida saiu de seus corpos, depois voltou pra dentro deles. Uh... O que isso fez? Não consigo dizer. Pelo menos não parece magia ofensiva.

— Opa!

Assim que a luz se dissipou, um dos cavaleiros avançou de novo. Afastei o estoque com um golpe lateral e pulei pra trás, ganhando um pouco de espaço.

— Agora entendi!

Eles estavam mais rápidos do que antes, e os golpes, mais pesados. Provavelmente, essa magia fortaleceu os corpos deles. No fim das contas, uma espada ainda é uma arma física, então, se o usuário fica mais forte e rápido, a ameaça dela também aumenta.

— Ataquem todos juntos! Não deixem espaço pra contra-ataque!

Ao comando de Spur, vários cavaleiros avançaram ao mesmo tempo. Um, dois... Gah! Contar é um saco! E nem tenho tempo pra isso agora!

— Hah!

— Droga!

Bloqueei um golpe descendente de estoque. Teria sido ótimo conseguir quebrar ele igual o anterior, mas pra isso eu precisava acumular força. E agora que estavam tentando me cercar, botar tudo num ataque só me deixaria exposto pros flancos ou pelas costas — e isso acabaria com tudo.

— Toma essa!

— Guh! Seu...!

Desviei o estoque pro lado usando o próprio impulso dele, e cortei o usuário logo em seguida. Acertei a armadura, mas o golpe foi superficial demais pra atingir carne. Mesmo nessa troca rápida, dois outros já tinham me cercado. Droga, assim não vai dar. Tô sendo cercado.

Diferente dos bandidos, esses cavaleiros sabiam o que estavam fazendo. Eram bem coordenados também. E com todo mundo usando armadura, ataques meia-boca não serviam. Eu tinha que botar meu corpo inteiro nos golpes. Mas se focasse demais em um, levava pelas costas. Não tenho olhos atrás da cabeça, então lutar contra vários ao mesmo tempo era péssimo. É, isso aqui tá horrível. E agora?

— Hah!

— Hrrk?!

Enquanto eu ainda tava em pânico, de alguma forma consegui desviar dos estocs vindo de todos os lados. Então, algo quase invisível a olho nu passou voando entre as armas em choque.

— Quem tá aí?!

Logo depois dessa interferência, eu e os cavaleiros nos afastamos e olhamos na direção de onde veio o projétil. Tinha uma garota parada ali com a espada em punho, a capa preta esvoaçando atrás dela.

— Ficelle?!

Era a prodígio do corpo mágico, Ficelle Habeler. Não tinha reconhecido minha ex-aluna quando a gente se reencontrou, mas agora... impossível confundir com outra pessoa.

— P-Por que...?

Contra meu bom senso, ignorei o confronto com os cavaleiros e fui direto questioná-la. Por mais que eu quebrasse a cabeça, não conseguia encontrar um motivo para a Ficelle estar aqui. O corpo mágico não deveria se envolver com os assuntos da Igreja de Sphene — a própria Lucy tinha dito que não podia se meter nisso. Era estranho... Por que uma das melhores do corpo estaria se metendo?

Isso fazia o pedido do Ibroy, de eu agir de forma independente, parecer totalmente sem sentido.

— Só coincidência — respondeu Ficelle. — Eu só estava passando, vi uma confusão e resolvi parar. Só isso.

Ficelle manteve a espada em punho enquanto explicava de forma bem direta. Ela lançou um olhar mortal pros cavaleiros. Coincidência, é? Duvido muito. Isso com certeza foi coisa da Lucy. Se a comandante participasse pessoalmente, não teria desculpa que colasse. Então ela mandou a Ficelle aqui, fingindo que foi uma “coincidência”. É, provavelmente é isso.

— Gwah?!

— Eu também tô aqui! Pura coincidência!

Ouvi alguém gritando do outro lado e virei rapidamente pra ver. Uma mulher baixinha balançava uma espada de duas mãos, enfrentando um dos cavaleiros.

— Kewlny!

Gritei o nome dela no impulso — a chegada dela foi totalmente inesperada. Provavelmente coisa da Allusia... Mas mesmo assim, era uma jogada perigosíssima. Se eu estivesse sozinho e desse ruim, só eu me ferrava e ninguém saía com a reputação arranhada. Mas se alguma coisa acontecesse com essas duas, ia respingar direto na ordem dos cavaleiros e no corpo mágico.

P*rra, que irresponsabilidade. Sério, se vocês já estavam planejando tudo desde o começo, podiam pelo menos ter confiado mais em mim. Não precisava jogar duas das minhas ex-alunas no meio da confusão. Não faço ideia do motivo de terem me mandado sozinho pra esse negócio.

De tanto deixar os pensamentos viajarem, acabei relaxando um pouco. Eu tava realmente tenso. Mas agora, esse peso nos ombros foi embora... no bom sentido.

— Tch! Ele recebeu reforços!

Não era só eu que tava confuso com a ajuda inesperada — os cavaleiros que protegiam o Reveos ficaram ainda mais abalados. Começaram a se reagrupar no puro desespero. Antes, estavam só tentando me cercar, mas agora a situação era outra. Eu tinha uma maga com magia de longo alcance e uma cavaleira rodando uma espada gigante. Decidir quantos homens mandar pra cada ameaça causou uma leve hesitação.

— Cuidado vocês duas! — gritei pra Kewlny e Ficelle. — Os cavaleiros fortaleceram os corpos com magia!

Agora eles podiam atacar com muito mais força do que aparentavam fisicamente, mas ainda era melhor isso do que tacarem projéteis na gente. Mesmo assim, um ataque corpo a corpo potente era um perigo pra qualquer espadachim. A Kewlny, principalmente, ainda tava em formação. Ela não ia aguentar um confronto direto com um cavaleiro experiente da linha de frente. Droga, Allusia, será que você não errou na escolha do pessoal? Mas enfim, agora já era tarde pra reclamar.

— Mantenham a calma e lidem com isso — disse Spur. Ele era o único cavaleiro que ainda mantinha a compostura no meio da bagunça. — A vantagem ainda é nossa.

Ficelle só tinha soltado um corte à distância, e a Kewlny ainda tava presa num confronto contra um cavaleiro só. Isso não equilibrava o jogo. Mesmo que a Ficelle ainda fosse um ponto de interrogação, qualquer um com um pouco de noção conseguia ver que a Kewlny ainda era inexperiente.

Ainda assim, pelo pouco que vi do combate, ela era boa o suficiente pra vencer num confronto um a um. Se a Kewlny e a Ficelle conseguissem dividir bem a atenção, era totalmente possível virar o jogo aqui. Isso, claro, assumindo que nenhuma das duas fosse perder.

Mas isso eu podia pensar depois. Ficar pirando na estratégia agora não ia ajudar em nada.

— Uma brecha!

— Guh?!

Aproveitei a chance e ataquei o cavaleiro mais próximo, que ainda tava confuso com o caos. Não podia matar, então regulei bem a força e a profundidade do golpe. Graças ao fio absurdo da minha espada, agora era muito mais fácil cortar armadura, mas eu não tava acostumado a me segurar assim. Meu estilo era, no máximo, pra autodefesa — nunca foi feito pra combate até a morte.

O cavaleiro que acertei caiu no chão. Vendo a oportunidade, Ficelle lançou uma magia pra segurar outro cavaleiro e já avançou pra cima dele. Essa era a mentalidade certa — uma ótima chance como essa não podia ser desperdiçada. Ainda tinham muitos cavaleiros ali, então o ideal era diminuir o número deles antes que se reorganizassem.

— Toma essa!

Um dos cavaleiros que tentou me cercar antes veio pra cima gritando.

— Shhh!

Bloqueei o golpe horizontal com a estoc dele. O som agudo de metal contra metal ecoou pela noite escura. Junto com ele, senti meus braços formigarem um pouco. Hmm, acho que não posso deixar isso se estender muito. Agora que os golpes deles estavam turbinados com magia, se eu continuasse defendendo normalmente, meu corpo não ia aguentar. A espada até aguentava... mas eu sou um velho, pô. Minha estamina tem limite.

Girei o pulso pra redirecionar o golpe e contra-ataquei com um corte diagonal. Tracei uma linha reta da ombreira até a cintura da armadura do cavaleiro, e uma boa quantidade de sangue espirrou pelo céu noturno. O cavaleiro gemeu e caiu, mole, no chão. Droga, acho que fui fundo demais.

Não era ruim o fato de minha espada cortar armadura como se fosse papel — muito pelo contrário —, mas era difícil medir o quanto segurar. Só me restava torcer pra ele ainda estar vivo. Eu até me sentia meio culpado, mas foram eles que me atacaram primeiro. Pensando nisso, minha única escolha era revidar. Se eu me segurasse mais do que devia, quem ia acabar morto era eu.

—Então, como aquelas duas estão se saindo?!

Eu já tinha lidado com os cavaleiros bem na minha frente, e ainda estava com bastante energia. Como era de se esperar, eu estava preocupado com Kewlny e Ficelle. Se elas estivessem em desvantagem, eu teria que ir ajudá-las imediatamente. Eu não queria ver minhas ex-alunas sendo abatidas bem na minha frente.

—Hmph!

—Urgh... Sua...!

Virei-me e vi Ficelle lutando contra um único cavaleiro. Parecia que ela já tinha derrubado alguns. Isso que é ser a melhor da tropa mágica. Apesar da pouca idade, a habilidade dela era legítima. Pelo que deu pra ver, ela recuava nas horas certas pra lançar magia, e quando via uma brecha, avançava e descia a espada sem hesitar. Era um estilo de luta único, uma variação do clássico bate-e-corre. Mesmo nos tempos do dojô, a Ficelle sempre foi boa em analisar o campo de batalha mentalmente — ela sempre tinha uma noção ampla do que acontecia ao redor. O estilo de combate dela se baseava nessa força, e dava pra ver que ela estava no controle total. Provavelmente não precisava da minha ajuda.

Quanto à Kewlny...

—Hiyáaaaaah!

—M-Maldição!

Ela estava lutando com tudo. Ainda era um pouco cedo pra relaxar, no entanto — Kewlny ainda estava em um duelo desesperado contra o primeiro cavaleiro que havia atacado. Ela ainda era bem crua. O alcance extra da sua zweihander e seus golpes poderosos deveriam ser o bastante pra dominar o inimigo. Porém, ela ainda estava nos estágios iniciais do domínio da espada de duas mãos, e seu conhecimento era raso. Ela não tinha técnica suficiente pra enfrentar um cavaleiro ativo. Ou pelo menos, era o que eu pensava.

—Hmm?

Olhando mais de perto, percebi que os movimentos da Kewlny estavam um pouco diferentes do que eu conhecia. Que estranho. Ela ainda se movia de forma desajeitada quando fizemos nossa batalha de treino. Foi exatamente por isso que considerei hoje apropriado pra nossa primeira sessão. Eu não esperava que a Kewlny fosse fazer mais do que sair girando a zweihander e depender só da força bruta, então fiquei um pouco surpreso. Não sei como foi o treino dela com a espada curta, mas essa era, teoricamente, a primeira luta séria com uma zweihander. Ainda assim, ela parecia bem calma. Tinha noção do alcance da arma do oponente, previa os movimentos dele, e mesmo com a técnica meio desajeitada, estava lidando bem com a situação.

—Acho que sou um fracasso como instrutor.

As habilidades da Kewlny melhoraram muito em tão pouco tempo. Provavelmente ela vinha treinando bastante por conta própria. Meu cronograma de treinos com ela não era leve, nem um pouco. Quanto será que ela se forçou além disso? O cavaleiro com quem ela lutava estava longe de ser fraco, e uma estoc levava vantagem contra uma zweihander. Mesmo assim, Kewlny estava conseguindo manter uma certa vantagem.

Soltei um suspiro curto.

Entre Kewlny e Ficelle, eu tinha a impressão de que a primeira ia precisar claramente de ajuda, mas parecia que me preocupei à toa. Sério, ver o crescimento dos meus pupilos sempre me deixava feliz. Lembrei das palavras do Henbrits — ver quem está sob sua tutela crescer causa uma sensação de alegria impossível de explicar.

Eu não podia me dar ao luxo de perder pra meus alunos. Reunindo força nas pernas, voltei à ação.

—Ó grande Deus dos céus, conceda-nos Tua bênção divina. Por Teu poder sereno, devolva o pulsar da vida a estas almas.

De repente, ouvi alguém recitando um cântico. Não era o Spur, nem nenhum dos cavaleiros. Esse cântico, diferente do anterior, ecoou suavemente no céu noturno sobre o tumulto da batalha.

Reveos.

Ele estava ajoelhado diante de uma das caixas de madeira que os cavaleiros haviam deixado por ali. Parecia estar orando para ela. Uma luz pálida envolveu a caixa por alguns segundos, e então, com um baque, ela se sacudiu e revelou seu conteúdo.

—O quê...? Uma pessoa?

Uma figura humana se levantou da escuridão. Eu não entendia por que uma pessoa estaria selada dentro de uma caixa, mas o fato de que o cântico do Reveos a trouxe de volta era ainda mais estranho. Duvidava muito que ele tivesse enfiado feridos ou doentes lá dentro.

—Mas quê...?!

Com mais uma sequência de estrondos, outras caixas ao redor do Reveos se abriram. Pessoas se ergueram de cada uma delas. Droga, a magia dele afeta mais de um alvo?! Não que eu entenda muito de magia, mas, pô, pelo jeito que ele tava rezando parecia que era focado só numa caixa.

Eram seis ao todo. Agora tínhamos mais inimigos pra lidar. A situação estava estranha demais — não dava pra assumir que eram pessoas normais. O mais sensato era presumir que todos tinham algum tipo de habilidade especial.

—Até que esse milagre se complete, não posso permitir que ninguém atrapalhe.

—Bispo. Por aqui.

Era difícil dizer se o Reveos estava falando comigo ou com as seis figuras misteriosas. Depois de dizer o que queria, ele se virou. Spur me encarou por trás do elmo, e logo foi atrás dele.

—E-Espera aí!

Aquele desgraçado vai fugir! Nunca é fácil, né?! Eu tinha planejado apoiar a Kewlny, mas agora a situação era outra. Tudo ia ser em vão se o Reveos escapasse. Eu não precisava ir tão longe a ponto de feri-lo, muito menos matá-lo, mas tinha que, no mínimo, capturá-lo.

—Ah?!

Quando tentei correr atrás do bispo, as seis figuras misteriosas ficaram no meu caminho. Os movimentos deles eram lentos — não pareciam pessoas com qualquer tipo de treinamento. Seria fácil romper a formação. Com isso em mente, achei que conseguiria passar direto por eles, mas meus pés pararam no lugar.

Uma das pessoas que cambaleavam na minha direção tinha cabelo azul-escuro, e seus traços se pareciam demais com... Mui.

—Não pode ser...

Eu já suspeitava disso. Reveos estava recolhendo corpos e pessoas que não fariam falta se morressem. Junta isso com o tal milagre de ressurreição das escrituras da Igreja de Sphene, e dá pra imaginar que ele tava usando magia sem critério algum pra profanar os mortos.

Isso passou de todos os limites.

—Seu verme miserável!

Xinguei ele sem pensar duas vezes. Eu não sentia o menor traço de vida nas seis pessoas que vinham na minha direção. Elas simplesmente não pareciam estar vivas. Não passavam de cadáveres sendo manipulados à distância — isso era óbvio pelo estado dos corpos.

—Mestre, terminei aqui e— Hã?

—Mestre! Eu ganhei! Hein...? O que tá acontecendo?

Depois de terminarem suas batalhas contra os cavaleiros, Ficelle e Kewlny correram até mim. Era ótimo ver que as duas tinham vencido com segurança. Kewlny estava encharcada de suor — tinha sido por pouco. Ela ainda estava desenvolvendo suas habilidades, então vencer uma luta séria, um contra um, era motivo pra comemorar. Porém, mesmo depois da vitória, as duas ficaram sem palavras diante da blasfêmia que estava diante de nós.

A melhor escolha agora era ignorar os seis e ir atrás do bispo. A parte lógica do meu cérebro sabia disso muito bem. Repetindo: as seis pessoas que saíram daquelas caixas se moviam devagar, e qualquer um com um mínimo de preparo físico conseguiria se livrar delas com facilidade. E a cada segundo que passava, os passos do Reveos iam ficando mais distantes. Eu precisava decidir rápido — não ia dar tempo se eu não agisse imediatamente.

E mesmo assim...

—Vocês duas, fiquem pra trás. Eu cuido disso.

Ficelle, Kewlny e eu... Considerando essas três opções, eu era quem devia cravar a espada no coração daquelas seis pessoas. Os homens e mulheres que cambaleavam na minha direção não diziam uma palavra. Provavelmente nem estavam conscientes. Apenas obedeciam a ordem do Reveos de nos atrapalhar.

—Vou deixar vocês descansarem de novo... Não vou pedir perdão.

Empunhei minha espada. Sem dúvida, a culpa disso tudo era do Reveos. Ficelle, Kewlny e eu só fomos arrastados pra essa situação. Se eu não tivesse escutado a Lucy e o Ibroy, teria passado por tudo isso sem nem saber dessa profanação — e minhas ex-alunas também não teriam se envolvido. Mas as coisas já tinham tomado um rumo sombrio.

Isso provavelmente era uma magia de ressurreição incompleta. Reveos lançou um milagre barato só pra conseguir fugir. Não, mesmo que essa fosse uma ressurreição completa, ainda assim seria imperdoável. Eu não tinha fé religiosa nenhuma, mas como alguém que vive pela espada, a vida e a morte dos outros faziam parte de quem eu era. E o pior, essas pessoas eram completos desconhecidos, recolhidos das ruas.

As mortes desses corpos marionetes não viriam de um duelo de verdade. Por isso, o peso de cortá-los não podia recair nos ombros das duas garotas jovens que estavam comigo. Isso era diferente de matar monstros.

—Shhh!

Soltei o ar com força e avancei no meio do grupo.

Um.

Derrubei um homem de cabelos castanhos que ainda tinha um ar jovem.

Dois.

Derrubei um homem forte, já beirando a velhice.

Três.

Derrubei uma jovem de traços inocentes.

Quatro.

Derrubei uma mulher desabrochando, com longos cabelos esvoaçantes.

Cinco.

Derrubei um rapaz que claramente ainda era um garoto.

E seis...

Derrubei uma jovem de cabelo azul-escuro, prestes a entrar na fase adulta.


Não houve gritos de morte. Provavelmente nem perceberam que tinham sido mortos. Os resquícios das almas deles foram simplesmente empurrados de volta para o abismo distante. Ainda assim, isso não mudava o fato de que eu havia abatido seis civis inocentes — mesmo que já estivessem mortos.

—Vamos atrás dele — falei. — Ele não deve ter ido muito longe.

—S-Sim, senhor! — gritou Kewlny, assustada.

Que tipo de expressão eu estava fazendo? Com que tom eu tinha falado? Esse meu lado não era algo que eu devesse mostrar às minhas alunas. Ainda bem que era noite. Ficelle e Kewlny ainda eram jovens, e não eram o tipo de pessoas com quem esse velho rabugento devia descontar sua frustração.

Como eu já disse, Reveos não podia ter ido longe. Mesmo com aquele físico saudável, nem no seu máximo ele conseguiria correr mais do que eu ou minhas pupilas.

Tudo teria sido em vão se o deixássemos escapar. Senti pena dos cavaleiros que derrubei, mas tinha quase certeza de que não os matei, então agora era com eles se virarem sozinhos.

Espera... Kewlny e Ficelle também estão aqui.

—Kewlny, avise a ordem pra vir imediatamente. Quero que eles garantam a segurança da área.

—Hã? C-Certo!

—Ficelle, vem comigo atrás do Bispo Reveos. Eu não conheço esse distrito, então você vai na frente.

—Entendido.

Não havia necessidade de nós três irmos atrás do Reveos. Na verdade, era importante cuidar dos rastros deixados no campo de batalha em frente à igreja silenciosa. Isso eu podia deixar com a Ordem de Liberion. Quanto à perseguição do bispo, eu e Ficelle éramos o suficiente.

Depois de confirmar com Ficelle e Kewlny, comecei a correr imediatamente. Eu não sabia o que se passava na cabeça delas, mas, julgando pelas reações anteriores, deviam estar bastante abaladas. Eu precisava dar a elas um objetivo claro, algo em que focar, para que não tivessem tempo de se perder na confusão. Cada uma tinha uma tarefa a cumprir, afinal.

Enquanto corria, senti como se a garota de cabelo azul-escuro — aquela que eu havia abatido com minha espada — estivesse me observando com olhos vazios.

—Ele correu pra lá — disse Ficelle. — Provavelmente por esse caminho.

—Certo, me guia.

Corri ao lado de Ficelle, com os olhos fixos na direção onde Reveos e Spur haviam desaparecido. Dito isso, eu não conhecia o distrito norte. Tinha uma noção geral de onde ir, mas não fazia ideia do caminho exato. Não me restava outra opção senão confiar na orientação da Ficelle.

—Ficelle, tô supondo que foi a Lucy que te mandou? — perguntei.

—Não... Foi só coincidência — respondeu, seca.

—Entendi.

Então ela pretendia manter essa história de coincidência até o fim. Faz sentido, se ela estiver considerando o pior cenário possível. Mesmo falando só comigo, talvez tenha achado melhor limitar o que podia revelar.

Seguimos correndo pelo distrito norte silencioso por um tempo.

—Achei ele — disse Ficelle.

A noite estava escura, a visibilidade era péssima. Mas com tão pouca gente andando por ali, alguém correndo em pânico se destacava com facilidade. Vimos uma figura arredondada ao lado de um homem com armadura completa, que tilintava a cada passo. Parecia que nossa caçada estava prestes a acabar — Reveos e Spur eram simplesmente lentos demais. Era até injusto esperar que alguém com aquele porte e outro vestido de armadura pesada conseguissem correr depressa.

—Haah...! Haah...!

—Pare aí mesmo, Bispo Reveos.

—Urgh...!

Quando chegamos perto o bastante pra ouvir a respiração ofegante do Reveos, chamei ele pra parar. Eu estava de muito mau humor. Minha voz saiu carregada de irritação — até eu percebi. Isso não é bom. Preciso me acalmar. Essa situação podia acabar virando outra luta, e meu estado mental podia atrapalhar meus golpes. Respirei fundo e deixei a mente repousar por um momento. Achei que Reveos fosse tentar fugir de novo, mas, inesperadamente, ele obedeceu e parou. Talvez estivesse só exausto mesmo.

—Sou da Ordem de Liberion — falei. — Vamos fazer várias perguntas num local mais apropriado, inclusive sobre a magia que você acabou de usar.

Não mencionei nada sobre o Ibroy. Fiquei aliviado por ele não perguntar por que a Ordem de Liberion estava se movendo ou por que tinha sido convocado pra depor — eu não saberia o que responder. Mas, de qualquer forma, ele já tinha me dado uma prova clara de seus crimes com aquele milagre de ressurreição malfeito. Já dava pra botar as coisas em movimento.

Ficelle empunhou a espada em silêncio. Ela estava deixando claro pros inimigos que não haveria segunda chance de fuga. A magia de espada dela era realmente útil em momentos assim. Mesmo que tentassem achar uma brecha pra escapar, ela poderia lidar com eles na hora com seus ataques de longo alcance.

—Pensar que vocês não conseguem entender o valor da minha pesquisa... — murmurou Reveos, irritado.

—Não tenho nada a perguntar sobre a sua pesquisa — retruquei.

Eu não dava a mínima... não importava o que ele dissesse ter criado. Eu rejeitava por completo aquele “milagre” de ressurreição — eram sentimentos meus. Os princípios da vida não deviam ser mexidos pelas mãos dos homens. Isso, inevitavelmente, levaria algumas pessoas ao desespero... como aconteceu com a Mui.

—Você vem comigo, Bispo Reveos.

Reveos claramente não era do tipo que sabia lutar. A única carta que ainda tinha era Spur, que trouxe com ele nessa tentativa de fuga. Eu não sabia o quão habilidoso Spur era, mas, pensando de forma simples, éramos dois contra um. A vitória estava praticamente garantida.

Agora que pensei bem, acabei deixando tudo pra Kewlny lá atrás. Será que foi certo? Bom... ela é da Ordem, então deve saber o que fazer.

—Spur...

—Senhor.

Como era de se esperar, Reveos recorreu a Spur. O cavaleiro assentiu em silêncio e então sacou o estoc que carregava na cintura. Sua postura era de um verdadeiro especialista. Estava claramente em outro nível comparado aos outros cavaleiros.

—O quê?!

No instante seguinte, o estoc de Spur já estava bem diante dos meus olhos. Rebati o golpe no susto. Não estava devidamente preparado, então não consegui danificar sua espada como fiz com aquele primeiro cavaleiro. Esse cara é rápido! Como ele consegue se mover assim com uma armadura completa?! Um suor frio escorreu pelas minhas costas.

—Hrm!

—Hgh...!

Sim, eu tinha aparado o estoc dele, mas Spur manteve o equilíbrio e continuou desferindo cortes. Ah, qual é! Estocs são feitos pra serem usados com delicadeza, cacete! A ponta da espada dele caía sobre mim com uma força e velocidade absurdas—duas, três vezes.

Tentei desequilibrá-lo, mas diferente do Henbrits e da Selna, era difícil jogar os ataques dele pro lado, porque ele não colocava todo o peso no golpe. Ele estava controlando a força direito, usando os quadris, ombros e braços—fazendo o mínimo de esforço pra se mover o mais rápido possível.

A luta começou de forma tão repentina que Ficelle nem teve chance de reagir. Eu e Spur estávamos próximos demais, então mesmo que ela tentasse me apoiar com magia de espada, podia acabar me atingindo. E eu também não achei que ele ia chegar tão perto tão rápido!

Spur estava claramente dois ou três níveis acima dos outros. A velocidade da espada dele era de outro mundo. Além disso, parecia que o estoc dele era de melhor qualidade que o dos cavaleiros comuns. Apesar de eu ter aparado várias vezes, não consegui quebrar a lâmina.

Segunda troca de golpes, depois a terceira. O embate silencioso continuava. E no meio disso, senti o foco dele mudar levemente. Não dava pra ver os olhos dele por causa do elmo, mas Spur com certeza estava concentrado em outra coisa.

—Gh! Ficelle!

Ao perceber que a luta ia se arrastar, Spur mudou de alvo repentinamente—de mim para Ficelle. Ela não estava distraída. Mas, do ponto de vista dela, a espada de Spur estava totalmente focada em mim. Foi um ataque surpresa. E pra se defender, ela teve que se jogar no chão.

—Hmph!

—Nem pense nisso!

O som do estoc de Spur batendo contra a minha espada longa ecoou no ar. Nossas lâminas estavam travadas. Droga, fazia tempo que eu não passava por isso.

—Ficelle! Você tá bem?!

—T-Tô sim!

Foi por pouco. Se meu julgamento tivesse atrasado um milésimo de segundo, o estoc do Spur teria atingido Ficelle em cheio. Ela era habilidosa tanto como espadachim quanto como maga, então não dava pra reclamar dele ter mirado nela. Afinal, não era uma luta amigável—era uma batalha de vida ou morte. Mas, mesmo entendendo isso racionalmente, eu não era o tipo de pessoa que conseguia ficar calmo vendo uma ex-aluna se arriscando daquele jeito.

Você não vai sair impune disso, Spur. Toda aquela calma que eu tinha alcançado antes estava sumindo, dando lugar à raiva mais uma vez.

—Você é forte —disse Spur. —Por isso, isso é lamentável.

—Guh!

Ao contrário do que eu esperava, Spur colocou força nos braços e começou a pressionar com as lâminas travadas. Merda, ele me supera em força bruta! Eu nunca fui do tipo que vence na força, então um embate direto nunca foi meu forte.

—Ó grande Deus dos céus, conceda-me sua bênção divina. Conceda-me força.

—Hgh?!

Spur começou a entoar uma prece mesmo enquanto nossas lâminas ainda se chocavam. Droga! Não! Isso é péssimo! Magia agora é a pior coisa possível! Eu empurrava com toda a força, mas estava sendo forçado pra trás aos poucos. Droga, ele já me levava vantagem só com os músculos, e agora ainda vem com magia?! Merda, vou perder!

E bem quando meus braços estavam prestes a ceder...

—Eu não vou deixar.

—Guh!

Ficelle interrompeu o confronto. A espada longa dela subiu como se fosse cortar o braço do Spur. O som da lâmina batendo contra a manopla dele ecoou no ar. Ela não conseguiu arrancar o braço, mas o impacto o fez recuar um pouco. Aproveitando a brecha, forcei com minha espada longa e recuei num salto.

—Ficelle...! Valeu! Você me salvou mesmo!

Por ora, mantive distância. Que vergonha... precisar ser salvo logo depois de ter salvado ela. Felizmente, ela não era o tipo que estava ali só pra ser protegida. Era uma espadachim de verdade.

—Ah...

Ao desviar os olhos do meu oponente por um instante, vi Reveos tentando fugir de novo. Droga, ele vai escapar desse jeito.

—Ficelle! Vai atrás do Bispo Reveos!

Tudo o que a gente fez até agora não serviria de nada se ele fugisse. Dito isso, seria burrice demais deixar o Spur pra trás e ir atrás do bispo. Também não adiantava nada ser esfaqueado pelas costas. Então, a única opção era eu manter Spur ocupado enquanto Ficelle perseguia Reveos.

Ficelle hesitou em silêncio por um momento e então disse:

—Entendido. Se cuida, Mestre. —E saiu correndo na mesma hora.

—Tch...

—Você não vai!

Spur desviou o foco de mim por um instante, e dessa vez, fui eu quem partiu pra cima. Mantive os braços juntos e ataquei com um golpe curto, mas ele rapidamente ergueu o estoc pra bloquear.

—Ainda não terminei!

Me aproximei e desferi um golpe com minha espada longa. Ele desviou por um triz. Com esses reflexos, é o mínimo que eu podia esperar... Mas caramba! Você tá usando armadura pesada! Não dá pra ser só um pouquinho mais lento, não?!

Ele era do tipo que dominava o oponente com uma enxurrada de ataques e uma força que não combinava com a aparência. Eu não podia deixar ele tomar a iniciativa. Com a magia, ele claramente tinha mais força física do que eu. Era perigoso demais ficar travado com ele numa luta corpo a corpo.

—Shhh!

—Hrm...!

Depois de um corte horizontal, troquei a pegada da espada e ataquei de novo com um corte reverso. Ele aparou e bloqueou o golpe com sucesso. Gah! Eu não sou bom em manter a ofensiva! Mas considerando a especialidade dele, é melhor do que ficar só me defendendo!

Eu precisava continuar atacando e esperar por uma abertura. Normalmente, usar uma armadura completa deixava o oponente um pouco negligente — ele passava a confiar demais na proteção do equipamento. Era nisso que eu estava apostando.

— Insolente!

Talvez irritado com meus ataques constantes, ele girou o estoc num golpe amplo. Foi um movimento mais bruto que os ataques precisos que ele vinha usando até então. Em condições normais, eu teria dado meio passo para trás e me esquivado... mas decidi confiar na força de Baldur e no potencial da minha espada longa. Além disso, agora o cenário era diferente. Eu não estava mais cercado por cavaleiros. Era um combate justo, um contra um. Spur era meu único inimigo.

— Hmph!

Soltei o ar e desferi um golpe, colocando toda minha força para interceptar o estoc. Não era um ataque para esquivar — minha intenção era quebrar a arma do oponente, mesmo que isso pudesse acabar destruindo a minha também.

Usar uma arma de impacto como um mangual ou martelo era uma coisa, mas uma espada foi feita para cortar, não para colidir com outras armas. Espadas são forjadas para serem finas e longas, aumentando o poder de corte, então não são adequadas pra isso. Mas eu acreditava que minha espada aguentaria. Era meio que uma aposta, mas se eu não mudasse essa situação de equilíbrio, vencer Spur seria difícil. Foi com esse sentimento que eu depositei tudo naquele golpe.

— O quê?!

Ganhei a aposta. Com um som metálico agourento, o estoc de Spur se partiu ao meio. Não dava pra ver a expressão dele por causa do capacete, mas dava pra sentir o choque.

— Te peguei!

Com a minha espada livre e Spur congelado pela hesitação, girei a lâmina e cortei do ombro até o torso. Senti claramente o impacto através do cabo. Ao mesmo tempo, sangue vermelho jorrou na escuridão.

— Guh! Como eu pude... perder...?!

Pelo visto, nem a magia que fortalecia o corpo dele aumentava a resistência a ataques físicos. Mesmo com a armadura completa, meu golpe rasgou direto pelos músculos. Droga, acabei passando do ponto por causa da adrenalina. Mas, bom, Spur não era alguém que dava pra vencer segurando a força.

Olhei pra baixo, vendo Spur desabar com o rosto no chão. Uma poça de sangue começava a se formar debaixo dele.

— Preciso ir atrás da Ficelle...

Eu estava preocupado com o estado do Spur, mas infelizmente, Ficelle e Reveos eram prioridade agora.

— Ainda tenho muito a aprender...

A raiva e a frustração tinham deixado minha lâmina cega, e isso acabou tornando a luta mais difícil do que precisava ser. Além disso, precisei da ajuda da minha ex-aluna. Era prova de que minha concentração tinha falhado. Mas não adianta ficar lamentando agora. Pra aprender com isso, eu tinha que guardar bem essa vergonha de hoje na memória.

— Certo...

Depois de recuperar o fôlego, levantei a cabeça. Aparentemente, não estava muito longe da igreja. Fiz uma prece rápida para que a Ordem de Liberion encontrasse Spur e saí correndo.

Só tinha um problema.

— Droga... Eu não sei o caminho.

Mesmo tendo vencido Spur de algum jeito, perdi meu alvo principal de vista. Eu não conhecia bem o distrito norte, e a visibilidade era péssima por causa da escuridão. No pior dos casos, eu podia acabar me perdendo. Isso seria ridículo, mas também não dava pra ficar parado. Hmm... acho que o melhor é correr na direção que Reveos foi.

— Ele não deve ter ido muito longe...

Já tinha passado por ele uma vez antes, então sabia que o bispo não era exatamente rápido. Além disso, com aquele físico, duvidava que tivesse fôlego pra correr por muito tempo. Por outro lado, a Ficelle era jovem, ativa, espadachim e maga — em termos de agilidade, não dava nem pra comparar. E ela podia usar magia com espada, então mesmo que ele tentasse manter distância, ela podia ajustar a força e acertar de longe. Magia era conveniente demais.

— A-Ali?

Depois de correr por um tempo, avistei duas figuras que pareciam a Ficelle e o Reveos. Parece que minhas preocupações foram em vão. Conforme me aproximei, Ficelle levantou os olhos, meio ansiosa.

— Mestre, o senhor está bem?

— Tô sim. Bom trabalho, Ficelle.

Aquele Spur era mesmo um oponente difícil. Se fosse com uma espada longa comum, teria sido bem mais complicado. Na verdade, nem sei se teria vencido. Preciso agradecer ao Baldur — essa espada é boa demais pra mim.

— Então Spur... foi derrotado. Maldição, que homem inútil.

Reveos amaldiçoou, percebendo que minha chegada significava a derrota de Spur. Que cara desprezível... dava vontade de socar. Por que Spur ajudou esse homem com tanta lealdade? Fiquei me perguntando se um dia teria chance de perguntar isso a ele... Isso se Spur ainda estivesse vivo.

Por sinal, as duas mãos do Bispo Reveos estavam amarradas com uma corda. Ele parecia um criminoso completo agora. Provavelmente a Ficelle já tinha preparado a corda pra isso — ela não teria uma corda com ela se não soubesse do plano desde o começo. Droga, Lucy... então você realmente mandou a Ficelle aqui com isso em mente. Mas não adiantava reclamar agora.

— Mestre, pra onde levamos ele? — Ficelle perguntou.

— Hm? Ah, certo...

Ibroy tinha me pedido pra capturar Reveos, mas não me disse onde levar o bispo depois. Não dava pra simplesmente arrastar o cara até a estalagem. Talvez o melhor fosse levar até o posto da Ordem de Liberion. Já era tarde da noite, mas alguém ainda devia estar por lá.

— Vamos levá-lo até a sede da ordem — decidi. — Me guia até lá.

Ficelle assentiu.

— Entendido. Vai ser uma caminhada, tudo bem?

— Tenho uma noção da distância. Vai dar sim.

E assim, nosso destino foi definido. Francamente, eu preferia viajar essa distância de carruagem, mas duvidava que alguém fosse embarcar numa nessas circunstâncias. Então, decidi ir a pé. Tudo o que restava era levar Reveos até a ordem e entregá-lo. Depois disso, meu trabalho estaria encerrado. Eu esperava entregá-lo a alguém que soubesse da situação, como a Allusia, mas duvidava que ela ainda estivesse no escritório a essa hora. Provavelmente só tinha uma meia dúzia de pessoas de plantão à noite.

— Seus tolos não entendem — protestou Reveos. — Vocês não compreendem a nobreza de perseguir a profundidade dos milagres.

— Não tô nem aí — cuspi. — Nobreza nenhuma cura as vítimas que você criou com essa sua ideologia.

Eu não dava a mínima pro que ele tinha a dizer. Ninguém teria se importado se ele estivesse apenas pesquisando os milagres das escrituras — provavelmente teria continuado com sua pesquisa por anos. Mas nem mesmo a Lucy se afundava tanto em pesquisa a ponto de prejudicar os outros. Bom, talvez ela tenha me causado um certo incômodo. Esse cara, por outro lado, não podia ser perdoado por usar pessoas inocentes como cobaias. Não importava o quão nobres fossem os milagres da Igreja de Sphene, nada justificava sacrificar vidas por isso.

Reveos estava completamente errado. E ponto final.

— Vocês vão se arrepender de terem atrapalhado nossa pesquisa — continuou ele, latindo.

— É mesmo?

Esse homem falava demais. Era como se estivesse bêbado da própria retidão. Mesmo que aceitasse testemunhar como uma testemunha, provavelmente passaria o tempo todo falando sobre o quão “justa” era sua causa. Talvez por isso, em vez de contornar o convite com desculpas e artimanhas, ele tenha decidido fugir.

Ainda havia algo me incomodando — tinha a ver com a identidade daqueles cavaleiros. Pelo equipamento deles, estava claro que não pertenciam à Ordem de Liberion. Mas também eram bons demais, bem equipados demais, pra serem bandidos comuns. Provavelmente eram da Ordem Sagrada da Igreja de Sphene. Nunca tinha encontrado um cavaleiro deles antes, então não podia ter certeza.

Bom, descobriríamos isso quando a Ordem de Liberion investigasse a cena. Meu trabalho era capturar o Reveos e entregá-lo. Depois disso, ficava por conta da Allusia e do Henbrits.

— Qual o problema em consagrar os inúteis a Deus? — Reveos seguia argumentando. — Você é um imbecil se não sabe estabelecer prioridades com base em—?!

— Cala a boca — interrompi, agarrando ele pela gola. As palavras dele me deixaram mais tenso do que eu esperava. — Isso é, se você não quiser se machucar.

— Mestre, acalme-se — murmurou Ficelle, parecendo um pouco surpresa com meu comportamento.

— É, desculpa.

Esse cara era um lixo. Sem dúvida nenhuma. Mas não era meu papel julgá-lo. Isso seria vigilantismo. Como alguém que guia outros pelo caminho da espada, não podia me permitir fazer esse tipo de coisa — era pra isso que existiam as leis e o sistema de justiça de um país. Eu entendia essa lógica, mas ainda assim... havia escórias como esse sujeito que conseguiam mexer com meus nervos. Soltei a gola dele devagar.

— Tire as mãos de mim. Gente do seu nível não deveria tocar em um homem da minha estatura.

Não adianta conversar com ele... Haaah, o que eu faço com essa raiva? Não tenho onde despejar. Provavelmente não ia pegar bem se eu espancasse ele agora. Ele ainda é um bispo, por mais podre que seja.

— Fica quieto — disparou Ficelle, com a irritação e raiva claras na voz. — Você não tá em posição de falar. E, além disso, seu hálito é horrível.

— Hmph. Garotinha estúpida.

E você é o quê, então, por ter sido pego por essa garotinha estúpida? Por pouco não deixei essas palavras escaparem. Não queria desgastar minha mente e espírito discutindo com ele. Então decidi simplesmente ignorá-lo, arrastá-lo em silêncio e entregá-lo.

Seguimos caminhando pela cidade durante a noite. E, embora o bispo discutisse conosco, de alguma forma consegui manter o autocontrole. O tempo se arrastava enquanto nós três seguíamos em silêncio. Teria sido uma boa oportunidade pra aproveitar e curtir um pouco as paisagens de Baltrain, especialmente o distrito norte, mas infelizmente a situação era séria demais pra isso. Vou guardar essa ideia pra mais tarde — seria legal fazer um pouco de turismo no futuro.

Enquanto seguia andando, fiquei matutando uma pergunta que ainda não tinha resposta: capturar o Reveos realmente resolvia tudo? Não tinha muito que eu pudesse fazer pessoalmente pra consertar toda a situação.

Ah, deixa pra lá. Chega de complicar. Vou jogar essa bomba no colo da Allusia, da Lucy, do Ibroy, sei lá. Primeiro, vamos logo entregar esse cara.

Não sei quanto tempo a gente ficou andando. Parecia que já tínhamos ido bem longe, durante um bom tempo. Eu e a Ficelle já estávamos acostumados com esse esforço físico, mas o Reveos tava ofegante. Bom, ele não parecia ser do tipo que se exercita muito.

Ao chegar no posto da Ordem de Liberion, não fomos recebidos pelos funcionários de plantão. Não. Era a própria comandante que estava lá.

— Estávamos aguardando sua chegada, Mestre.

— Allusia? Você ainda tá aqui? — perguntei, minha voz um pouco mais aguda do que o normal diante daquela surpresa.

Normalmente, ela já teria ido embora há muito tempo. E ainda assim, o jeito que falou indicava que estava me esperando. Bom, eles tinham mandado o Kewlny e a Ficelle pra ajudar, então com certeza tudo tinha sido levado em consideração. A Allusia já sabia dos planos da Lucy e do Ibroy também. No fim, tudo correu bem, olhando pra trás... mas o que eles fariam se eu tivesse falhado? Isso não teria acabado com a ordem e o corpo mágico se metendo numa briga antes do Reveos ter a chance de testemunhar? Isso me fez questionar por que eles tinham feito questão de colocar o Ibroy no meio dessa história.

— Ai ai... Esse tipo de coisa me deixa com os nervos à flor da pele — reclamei.

— Hee hee. Eu sabia que tudo daria certo nas suas mãos, Mestre.

Como sempre, a Allusia me dava aquela confiança incondicional. Ah, por favor... Eu sou só um velho.

— Comandante, o que faremos com ele? — perguntou um dos cavaleiros ao lado de Allusia, gesticulando em direção a Reveos.

— Levem-no para o porão — ela ordenou. — Vamos lidar com ele apropriadamente amanhã.

— Sim, senhora!

Os cavaleiros levaram Reveos. Depois de andar tanto, ele parecia não ter mais forças nem para uma tentativa inútil de resistência. Meu trabalho estava concluído.

Ainda assim, aquele tal de Spur era um adversário e tanto. Eu teria me complicado se não fosse pela minha arma.

— Bom trabalho hoje, Mestre — disse Allusia. — E você também, Ficelle.

— É. Valeu, Allusia.

— Não foi nada... É só trabalho — respondeu Ficelle, se encolhendo um pouco. Foi até meio fofa. — Vou indo então. Até depois, Mestre.

— Mm, se cuida.

Depois de entregar Reveos com segurança para a ordem, Ficelle se retirou. Ela se saiu muito bem na luta. Provavelmente aprendeu magia há pouco tempo, mas mesmo assim, conseguiu combiná-la com sua esgrima de forma eficaz.

A magia de espada dela parecia bem problemática de enfrentar. A própria habilidade com a espada já era impressionante, e somando isso com toda aquela magia saindo da lâmina, ela se tornava ainda mais difícil de lidar. Nesse ponto, o estilo dela tinha uma força diferente da Lucy — enquanto Ficelle podia lutar na linha de frente, a comandante da corporação era mais adequada para a retaguarda. Em termos de poder mágico bruto, Lucy provavelmente era mais forte, mas levando em conta tudo que pode acontecer numa batalha real, era possível que Ficelle vencesse. Isso porque ela era absurdamente versátil e sabia se adaptar a qualquer situação.

— Vai encerrar por hoje também, Mestre? — perguntou Allusia.

— Ainda não. Se puder me conceder um momento, tenho algo que gostaria de relatar.

— Claro. Não me importo.

A voz de Allusia me trouxe de volta à realidade. Não era hora de ficar pensando em quem venceria numa luta entre Ficelle e Lucy. Já estava bem tarde, e eu até poderia deixar isso para o dia seguinte, mas preferi resolver logo — era melhor perguntar de uma vez o que estava me incomodando. Provavelmente eu precisaria de tempo para processar a resposta mesmo.

— O local está sendo isolado? — perguntei.

— Após receber o relatório da Kewlny, enviei uma unidade para lá — respondeu Allusia. — Não deve haver problemas.

— Que bom.

Parece que Kewlny chegou à ordem antes de nós. Ela não estava mais por aqui, então talvez tenha sido enviada com os outros cavaleiros.

— Você parece cansado — comentou Allusia.

— É... Acho que tô mesmo. A luta foi pesada.

Pelo visto, meu cansaço estava estampado no rosto. E de fato, eu estava bem exausto. Meu oponente era forte — era raro ver alguém com aquele nível de habilidade. Ainda bem que a espada longa de Baldur era tão resistente. Só venci porque fui na força bruta — confiei totalmente na durabilidade da arma.

— Hm... — Allusia pareceu surpresa. — Um mestre espadachim forte o bastante pra te dar trabalho...?

— Para com isso. Você tá fazendo parecer que foi algo enorme.

No mundo lá fora, devia ter um monte de gente que conseguiria me dar trabalho. Não faz sentido me usar como referência. Francamente, era até meio constrangedor.

— Bem, ele era forte... Os homens que estavam com o Bispo Reveos pareciam cavaleiros. Usavam armaduras completas e estocs.

— Estocs... — murmurou Allusia. Como eu imaginava, era uma arma incomum no reino. Ela ficou pensativa por um tempo, então continuou: — Pelo que sei, entre as organizações ativas nessa região, só a Ordem Sagrada da Igreja de Sphene usa estocs com frequência.

— Imaginei...

Agora isso tava praticamente confirmado. Ibroy tinha mencionado que, se tivesse tempo, teria envolvido a Ordem Sagrada. Mas pelo visto, a facção do Reveos tinha influência sobre aqueles cavaleiros. Nesse caso, isso não ia acabar só com a captura do Reveos... embora ajudasse se o fracasso dessa missão fizesse a facção dele se desmanchar por conta própria.

Hmmm, tanto faz. Mesmo que sejam vizinhos, eu não tenho nenhuma obrigação de me meter nos assuntos de outro país. Isso não é problema meu. O Ibroy que se vire.

— Há cavaleiros inconscientes de volta na igreja — eu disse. — Vocês devem conseguir extrair informações deles sobre o que tá rolando nos bastidores.

— Certo. Vamos começar interrogando todos a fundo sobre as circunstâncias dessa situação.

Se cavaleiros de outro país estavam aprontando em Liberis, isso já era um problema internacional. Por isso a investigação precisava ser conduzida com ainda mais cuidado. A ordem não podia simplesmente começar uma guerra com base em acusações falsas. Precisavam descobrir rápido e com precisão o que estava acontecendo por trás das cortinas, confirmar a verdade dos fatos e, só então, Liberis poderia fazer uma declaração oficial. Era assim que eu imaginava que funcionava.

— Além disso... acabei cortando algo que eu preferia não ter cortado — murmurei.

— Hm?

— Não é nada.

Allusia pareceu um pouco preocupada com isso. Fiquei me perguntando como explicaria isso pra Mui... e talvez fosse melhor nem tentar. Provavelmente seria melhor pra sanidade dela se eu levasse esse segredo pro túmulo. Achei essa conclusão meio patética, mas como eu não podia fazer nada a respeito, talvez fosse melhor mesmo deixar enterrado.

Dizer a verdade nem sempre leva a um resultado melhor. Considerando as circunstâncias, o momento e os limites, parecia mais prudente ficar quieto. Mui já estava numa situação instável, e eu não podia colocar mais um peso desnecessário sobre ela. Duvidava que o silêncio fosse causar algum impacto — positivo ou negativo. E com o tempo, tudo se resolve. O tempo cura todas as feridas. Talvez isso não se aplicasse a pessoas de todas as idades, mas pra alguém tão jovem quanto a Mui, era a melhor opção.

— Bom, então — eu disse. — Acho que vou deixar o resto nas mãos da ordem e voltar pra estalagem.

— Muito bem. Bom trabalho hoje, Mestre — respondeu Allusia. — Pode deixar o resto conosco.

Lucy e Ibroy provavelmente não se importariam de esperar um dia pelo relatório. Na real, eu nem fazia ideia de onde o Ibroy estava hospedado, então dava pra contar tudo pra Lucy e deixar que o resto se resolvesse sozinho. E agora que a Allusia tinha me tranquilizado, eu me sentia seguro em deixar tudo nas mãos dos cavaleiros. No fim das contas, meu título de instrutor especial não servia pra nada numa investigação.

Então, independentemente dos detalhes, esse caso tava encerrado pra mim. Era só isso que dava pra dizer. Agora só me restava voltar sozinho pra estalagem, sob o céu noturno de Baltrain.

— Fwaaah...

No instante em que saí do escritório da ordem, soltei um bocejo sem nem perceber. O dia tinha sido puxado. Eu só queria deitar na cama e apagar. Ficar acordado até tarde na minha idade acabava com o corpo, então decidi ir direto pra estalagem e dormir.

— Yo, tava te esperando.

— Hm? Ora, se não é a Lucy.

Na manhã seguinte, me levantei e fui direto ao escritório da ordem pra treinar os cavaleiros. Apesar dos eventos pesados do dia anterior, não dava pra negligenciar minhas tarefas diárias. Na entrada, avistei uma figura de braços cruzados me esperando.

Era a comandante da tropa mágica, Lucy Diamond.

— Foi mesmo me esperar aqui? — perguntei. — Foi mal por isso.

— Não tem problema — respondeu ela. — Fui eu que te pedi uma coisa meio absurda.

Pelo visto, ela tinha vindo só pra me encontrar. Que mulher dedicada, vindo logo cedo assim. Eu até queria entregar o relatório pra Lucy, mas não queria aparecer do nada na casa dela, então foi perfeito ela estar me esperando aqui. A gente tinha muito o que conversar.

— Podemos ir pra minha casa de novo? — perguntou Lucy.

— Tudo bem, mas tecnicamente eu tenho trabalho a fazer.

Eu não me importava com o convite dela, mas como instrutor especial, precisava dar aulas todos os dias. Da última vez, a gente se encontrou depois do meu expediente, mas agora era cedinho. Eu devia estar no campo de treino. Mesmo indo pra casa da Lucy, precisava avisar alguém que não estaria presente. Não queria que achassem que eu tava enrolando.

— Já avisei a Allusia — disse Lucy. — Tá tudo certo.

— Ah, entendi... Você pensou em tudo.

No fim, minha preocupação foi à toa. Lucy já tinha resolvido tudo. Ela era do tipo que, uma vez decidida, já partia pra ação. A velocidade com que ela passava da ideia à execução era absurda. Dava até pra aprender umas coisas com ela... embora eu não tenha certeza de quais características eu deveria ou não imitar.

— Deixa eu te agradecer formalmente — disse Lucy. — Bom trabalho ontem. Ouvi a maior parte da história pela Allusia.

— Valeu. Foi meio tenso, pra ser sincero.

Nem cheguei a entrar no escritório da ordem, só fui andando com Lucy em direção à casa dela, conversando no caminho. Agora que eu pensava nisso, o escritório da ordem, o quartel da tropa mágica e a casa da Lucy tinham dispositivos de comunicação mágica. Era bem prático como as informações podiam circular tão rápido.

— Você pode me contar o resto quando a gente chegar — disse Lucy. — O Ibroy vai aparecer de novo.

— Ah, imaginei.

Aparentemente, íamos nos reunir outra vez, igual ontem. Fazia todo o sentido — Lucy tinha sido a intermediária, mas o pedido oficial vinha do Ibroy. Tecnicamente, era um pedido da Igreja de Sphene feito por baixo dos panos. Seria estranho ele não estar lá.

Eu já tava ficando entediado durante a caminhada, então mudei de assunto e puxei papo sobre a hóspede da Lucy.

— Ah, e como a Mui tá se saindo?

— Ela tá bem — respondeu Lucy. — Mas acho que tá meio quieta. Provavelmente não sabe o que fazer com o futuro.

— Entendi...

Fico feliz que ela esteja bem, pelo menos. E, pra falar a verdade, eu entendo como ela se sente. O mundo em que ela cresceu virou de cabeça pra baixo — como é que alguém saberia o que fazer com a vida depois de sair daquele ambiente sombrio?

Era como eu pensei ontem. O tempo vai resolver.

É verdade que a vida dela mudou muito, mas diferente de mim ou da Lucy, ela ainda era jovem, com muitos anos pela frente. Tinha bastante tempo pra construir um futuro brilhante, então o melhor era esperar com paciência que ela se adaptasse à nova vida.

É privilégio de adulto esperar pelo crescimento de uma criança... Não que eu tenha filhos, claro.

— Bom, acho que não tem muito o que fazer além de esperar o tempo resolver — comentei.

— Concordo. A Mui ainda é nova.

Lucy parecia concordar. Pelo menos nesse assunto, os valores dela e o jeito de pensar se alinhavam mais com os meus do que com os da Allusia ou da Selna. Talvez fosse uma questão de idade. Lucy parecia mais jovem que a Mui, mas era mais velha do que eu. Prefiro nem pensar muito nisso...

Ainda faltava um bom trecho até chegarmos na casa da Lucy, então resolvi tocar num assunto que tava me incomodando.

— Ah, é...

— Hm?

— Você que provocou a Ficelle pra agir, né?

— Ora essa, Beryl, do que você tá falando?

Ah, vá... fingindo de boba? Lucy esboçou um leve sorrisinho — ela definitivamente tinha mandado a Ficelle de propósito. Mas já que ela não estava admitindo, significava que estava tentando manter as aparências. Ela precisava pelo menos fingir um pouco. Nesse caso, não tinha mais o que dizer. Ficelle e Kewlny apareceram por “coincidência”, então era melhor deixar esses detalhes de lado.

Depois de mais um pouco de conversa fiada, a gente finalmente chegou na casa da Lucy. Um homem nos recebeu na entrada.

— Lucy, Beryl, bom dia.

— Yo, Ibroy — respondeu Lucy. — Foi mal, fizemos você esperar?

— De jeito nenhum. Não foi como ontem. Acabei de chegar.

Dessa vez, Ibroy estava nos esperando em frente ao portão, então provavelmente tinha acabado de chegar. Eu só tinha conhecido o cara no dia anterior e nem éramos exatamente próximos ou coisa assim, mas pelo pouco que vi da personalidade dele, achei que fosse do tipo que entraria sem hesitar.

— Oi — eu disse.

— Beryl, bom te ver de novo — respondeu Ibroy. — Vamos conversar melhor depois que estivermos acomodados.

Pelo visto, ele ainda não tinha sido informado do que rolou. Bem, só fazia um dia, afinal.

— Não faz sentido ficar parado aqui — declarou Lucy. — Entrem.

— Com licença, então. — Ibroy a seguiu com modos refinados.

Quando abrimos a porta do hall de entrada, encontramos Haley nos esperando.

— Senhorita Lucy, senhor Ibroy, senhor Beryl, bom dia.

— Oi, Haley — disse Ibroy. — Perdão pela invasão.

Eu tinha quase certeza de que acordava mais cedo do que a maioria das pessoas, mas comecei a me perguntar há quanto tempo esse pessoal já estava de pé. Haley era governanta, então não era estranho ela já estar acordada. Lucy, por outro lado, parecia do tipo que tinha o ciclo de sono completamente bagunçado. Pelo menos era essa a minha impressão.

Depois que todos nos sentamos no mesmo salão de ontem, Ibroy tomou a palavra.

— Muito bem, Beryl—deixe-me começar agradecendo pelo seu esforço ontem.

Ele não sabia dos detalhes, mas também não achava que eu tinha negligenciado minhas tarefas. Até porque, eu nunca tive intenção de fazer isso.

— Obrigado — eu disse. — Bem, foi meio puxado.

— Ha ha ha. Como eu disse ontem, você será devidamente recompensado. Então... como foi?

Tá, talvez “meio puxado” fosse pouco. Ainda assim, não adiantava reclamar com o Ibroy sobre isso. Eu aceitei o pedido dele, afinal.

— Vou começar pelo final — falei. — Capturei o bispo Reveos. Ele tá preso no porão da Ordem de Liberion.

— Entendo. Fico feliz em ouvir isso.

A expressão do Ibroy relaxou. Provavelmente foi difícil pra ele fechar os olhos pros atos podres do Reveos.

Lucy comentou:

— Viu? Ele fez exatamente como eu disse que faria.

— De fato. Ainda bem que contamos com o Beryl.

— Por favor, não precisa exagerar — eu disse, desviando dos elogios.

Foi realmente trabalhoso, mas também não precisavam me colocar num pedestal. A luta tinha sido bem intensa, sim. De qualquer forma, Reveos com certeza seria punido — e bem longe da minha vista, de preferência.

— Preciso agradecer como se deve — insistiu Ibroy. — Provavelmente até vou subir na hierarquia da igreja.

— H-Ha ha ha...

Bom, se um bispo foi preso, isso quer dizer que ficou uma vaga aberta. E como foi o Ibroy quem armou a captura do Reveos, ele acabou virando um forte candidato. Esse velhote era esperto, e isso batia com a impressão que tive dele desde o começo. Quantas intenções ele devia estar escondendo por trás daquele sorriso? Enfim, ele podia fazer o que quisesse, contanto que não me envolvesse.

— Ah, e quando fui capturar ele, é bem provável que tenha usado um milagre — continuei. — O que ele invocou foi, hã... algo como cadáveres manipulados.

— Entendo... — murmurou Ibroy. — Eu já suspeitava, mas agora parece confirmado.

A pesquisa dele pra ressuscitar os mortos tinha sido, sem dúvida, um fracasso total. Não tenho nada contra a pesquisa mágica em si, mas era difícil engolir atos tão desumanos.

— Hmph. Bom, o país com certeza vai julgá-lo como merece — disse Lucy, com a dureza de sempre. Ela tinha opiniões bem fortes sobre ressuscitar os mortos. — Ah, e aproveitando, pensei numa recompensa pra você.

— Hm?

Será que ela só odiava mesmo o assunto “ressurreição”? Ou será que teve uma ideia do nada? O rosto da Lucy se iluminou de repente quando mudou o assunto pra minha recompensa. Eu não tinha problema em aceitar algo que me oferecessem, mas também não queria ficar andando por aí com dinheiro demais, e como eu tava morando numa hospedaria, era complicado aceitar algo muito físico.

— Beryl, você quer uma casa?

— Hã?

O quê? Acho que ouvi errado.

Fiquei paralisado com aquela palavra inesperada.

— Uma casa? — repeti, só pra confirmar.

Uma casa? Tipo... eu quero uma casa, tô ativamente procurando uma. Inclusive já falei isso pra ela antes.

— Isso mesmo — respondeu Lucy. — Ué? Você não quer?

— Não, espera, calma aí. Você tá pulando etapas demais. Tô confuso.

Sério, olha pro Ibroy. Até ele tá com uma cara de “que raio cê tá falando”. É isso que acontece quando você oferece uma casa do nada.

Eu não tinha nem metade das informações necessárias pra tomar uma decisão. Seria ainda mais estranho aceitar na hora, tipo “ah, claro, aceito sim”, se alguém simplesmente aparecesse te oferecendo uma casa.

— Eu quis dizer exatamente isso... — disse Lucy, um pouco desanimada. Provavelmente não esperava que eu ficasse tão confuso.

Pra falar a verdade, eu tava mais do que grato pela oferta—só não entendi como ela achava que eu ia aceitar de primeira, com tão pouca explicação.

— Ah, certo — Ibroy entrou na conversa como se tivesse acabado de lembrar de algo. — Lucy, você tinha outra casa antes de comprar essa aqui, né?

— Isso mesmo — confirmou Lucy.

Pelo visto, Ibroy sabia da casa que ela tava oferecendo. Isso reforçava minha impressão de que os dois se conheciam há bastante tempo. Eu não sabia exatamente quando ela tinha comprado a casa atual, mas o fato de ele saber da antiga indicava que eram velhos conhecidos. Pelo que Ibroy disse, Lucy tinha outra casa antes de se mudar... e agora tava me oferecendo essa casa de presente.

Hã? Sério mesmo? Casas não são o tipo de coisa que a gente sai distribuindo por aí.

— E-eu agradeço de verdade pela oferta... mas tem certeza de que tá tudo bem eu aceitar algo assim?

— Tá tudo certo, relaxa — respondeu Lucy, como se fosse a coisa mais simples do mundo. — Eu mando limpar ela de vez em quando, mas ninguém mora lá. Isso na verdade me ajuda bastante.

Pelo visto, a casa ainda era da Lucy, mas estava desabitada. Não faria mais sentido vender, então? Bom, talvez tivesse alguma circunstância impedindo isso.

— Você ainda tá morando na estalagem, né? — continuou Lucy. — Achei que isso aqui seria perfeito pra você.

— É, isso é verdade, mas...

Se essa oferta tivesse vindo de um completo estranho, eu com certeza suspeitaria que tinha alguma pegadinha. Mas era a Lucy oferecendo, e mesmo que eu não tivesse deixado de lado toda a desconfiança, ela não tava apitando todos os alarmes. Ainda assim, tudo isso parecia absurdo demais.

— Suponho que isso também seja preferível pra mim — Ibroy acrescentou. — Digo, receber sua recompensa numa estalagem seria problemático.

— Pois é...

Objetivamente falando, um velho da minha idade sem endereço fixo, morando numa estalagem, era meio lamentável. Eu entendia isso. Não era do tipo que ligava muito pra reputação, mas fui nomeado instrutor especial da Ordem de Liberion, então uma parte de mim queria manter ao menos o básico dos padrões. Por isso eu vinha procurando casa nas horas vagas. Ainda assim, isso tudo tava vindo do nada. Eu sabia que a Lucy não tava tentando me enganar nem nada, mas...

Uma casa só por ter dado uma ajudinha? É claro que isso vai deixar qualquer um surpreso. Dá pra pensar um pouco mais antes de agir, não?

— B-Bom, eu vou considerar...

— Sério? — perguntou Lucy. — Achei que você ia aceitar de cara.

Quero ver alguém que aceitaria na hora. Quero conhecer esse cara pessoalmente.

— D-De qualquer forma, o bispo Reveos é o foco aqui — falei, trazendo o assunto de volta pro ponto.

Sendo sincero, eu nunca liguei tanto pra recompensas. Era justo receber pagamento por um trabalho — era assim que funcionava esse tipo de coisa. Mas uma recompensa exagerada era desnecessária. Normalmente isso levava a outros pedidos bem piores que não compensavam o pagamento inicial. Não era sempre assim, mas eu sentia que precisava ficar com o pé atrás... não importa de quem viesse a oferta. Era da minha natureza ser cauteloso com esse tipo de coisa.

— Você tem razão — disse Ibroy. — Pode soar rancoroso vindo de um membro da Igreja de Sphene... mas tenho certeza de que o bispo vai perder o cargo.

— E você vai assumir o lugar dele? — perguntei.

— Ha ha ha, já tá tirando conclusões, Beryl.

Eu não conseguia entender as intenções reais do Ibroy. Seria possível que ele tivesse planejado todo esse curso de eventos? Se tivesse, o plano foi bagunçado demais e ambicioso demais ao mesmo tempo. De qualquer jeito, ele continuaria sendo um velho esperto na minha cabeça até que eu conseguisse decifrar sua verdadeira natureza.

— Além disso, havia vários homens que pareciam cavaleiros protegendo o bispo Reveos — revelei. — Estavam armados com estocs.

Allusia tinha dito que eram cavaleiros da Ordem Sagrada, mas a gente ainda não tinha certeza se era o caso.

— Eles eram... quase sem dúvida, da Ordem Sagrada da Igreja — murmurou Ibroy. — Entendo...

Parece que ele também pensa assim.

Ibroy mergulhou em pensamentos. Depois de um tempo, sua expressão suavizou.

— Bom, só ficar discutindo entre a gente não vai adiantar nada. Por ora, vamos celebrar nosso sucesso.

Ele tinha razão. Mesmo que tivesse alguma conspiração acontecendo, nós três não tínhamos como prever o que era. Pelo que eu conhecia do Reveos, uma investigação provavelmente não ia arrancar muita coisa dele — ele só ficaria se gabando sobre como o milagre dele era importante ou sobre o quão nobre era sua missão. Eu não sabia quais leis ele tinha quebrado ou qual punição receberia exatamente, mas uma absolvição parecia fora de questão. No mínimo, ele com certeza era culpado de conspirar com ladrões para sequestrar pessoas inocentes. Ninguém sabia o que viria depois.

— Você mandou bem demais — disse Lucy, dando um tapinha no meu ombro. — Bom trabalho.

— Ha ha, valeu.

Uma garota com cara de criança elogiando um velho de mais de quarenta anos... Pintava uma cena meio insana.

— Bom, e aí? Quer ir ver essa casa que tô pensando em te dar? — ela perguntou.

— Hã? Agora?

Essa sequência de eventos ainda não fazia sentido pra mim, mas a Lucy parecia decidida a me entregar essa casa.

— Aceita logo — disse Ibroy. — Beryl, você tá incomodado por ter ficado tanto tempo numa estalagem, não tá?

— Bom, isso é verdade, mas...

Eu não era exatamente contra a casa, mas agora eram dois contra um. Hmmm... Essa recompensa é completamente inesperada, mas suponho que seja uma surpresa boa. Não preciso decidir agora, então talvez seja uma boa ideia ver o interior e a localização primeiro. Ainda não consigo entender como isso chegou a esse ponto.

— Você pode decidir depois de ver — disse Lucy. — Não tô te forçando.

— Bom... Nesse caso, vou aceitar a oferta.

— Ótimo, ótimo. Vamos?

Lucy se levantou da cadeira, com a expressão ainda mais animada do que antes. Isso só reforçava minha opinião de que ela era do tipo que agia rápido. Parecia que ela sempre tomava decisões imediatas e agia na hora.

Ibroy também se levantou do assento.

— Suponho que também vou indo. Parece que a igreja vai ficar ocupada por um tempo.

Lucy assentiu.

— Mm. Vá — e se esforce ao máximo.

Um bispo tinha acabado de ser preso, então as coisas iam mesmo ficar agitadas por lá. As habilidades de Ibroy poderiam até virar o jogo e ajudar a criar um terreno comum entre os líderes da igreja.

— Oh, todo mundo indo embora? — perguntou Haley quando nós três saímos do salão.

— Uhum. Surgiu uma coisa — disse Lucy. A gente tinha acabado de decidir sair pra ver a casa, então não tinha como a Haley saber dos planos. — Vamos ver aquilo.

— Ai, ai... — Haley sorriu. — Hee hee, entendido.

De algum jeito, Haley sempre parecia em perfeita sintonia com o jeito da Lucy. Isso mostrava o quanto ela já tinha de experiência acumulada ao longo dos anos. Era uma mulher extremamente competente no que fazia — embora de um jeito bem diferente, por exemplo, da Allusia.

—Tenha uma boa viagem — acrescentou Haley, fazendo uma reverência.

E assim, deixamos a casa da Lucy. Eu ainda não entendia nem metade do que estava acontecendo, mas não adiantava questionar agora que as coisas tinham chegado a esse ponto. Então, decidi apenas aproveitar essa espécie de “visita particular” ao imóvel.

Depois de sairmos da casa da Lucy, olhei para o céu. Um dia claro... Caminhar sob o céu azul era revigorante.

—O tempo tá bom hoje, né? — murmurei casualmente. Sempre preferi dias de sol a chuva ou neve.

Lucy assentiu. —De fato. Se ao menos o clima ficasse assim o tempo todo... Fwaaaah... — Ela se espreguiçou, levantando os braços e soltando um longo bocejo.

—E onde exatamente fica essa casa? — perguntei.

—Não é muito longe daqui.

Se era perto da casa da Lucy, provavelmente ficava no distrito central. Como os terrenos nessa área eram relativamente caros, o imóvel devia ser bem valorizado. Seria ótimo se fosse meio perto da guilda e do escritório da ordem.

—Ah, certo. Sobre o que aconteceu ontem — comecei.

—Hm? Ainda tem mais coisa? — Lucy perguntou, curiosa.

O assunto era meio pesado pra uma caminhada tranquila pela cidade, mas seguimos mesmo assim.

—Um dos cadáveres que eu derrotei era muito parecido com a irmã da Mui... Não dá pra ter certeza, claro.

—Entendo...

Pode ter sido só coincidência. Não existem infinitos formatos de rosto, e dizem que todo mundo tem três sósias espalhados pelo mundo. Mas, pelo que vi com meus próprios olhos, aquele tom exato de cabelo azul era bem raro. Então era natural eu presumir alguma ligação.

—Provavelmente é melhor não contar isso pra Mui — disse Lucy. —Não vai mudar nada.

—Ah, você também acha isso?

Pelo menos a Lucy concordava comigo nesse ponto. Então meus instintos não estavam errados. Não existia uma maneira aceitável de dizer a uma garotinha: “Sua irmã foi usada por um bispo maligno, e eu a derrotei enquanto ele manipulava o corpo morto dela.”

—De qualquer forma, por favor, apoie ela — acrescentou Lucy. —Ela tá se sentindo bem sozinha.

—Hm? Minha intenção é essa.

Não planejava ignorá-la totalmente, mas, pensando bem, não era a Lucy que devia estar dando mais suporte, já que estavam morando juntas? Meu dia a dia praticamente não tinha mais nada a ver com o da Mui.

—Falando na Mui, tô pensando em matricular ela no instituto de magia — disse Lucy. —Não dá pra deixar um talento desses se perder.

—É mesmo? Concordo com você.

A Lucy também estava se importando com a Mui à sua maneira. Em vez de deixá-la sem rumo, era preciso dar algum objetivo pra garota. Pra ser bem direto, ela precisava de uma distração. E, de fato, ela tinha um talento raro. Mesmo que no futuro não fosse se juntar às tropas mágicas, deixar a Mui aperfeiçoar suas habilidades no instituto era uma boa ideia. Problemas que podem ser resolvidos acabam ficando estagnados se a pessoa só ficar se remoendo o tempo todo.

—Ah, chegamos — anunciou Lucy.

—Hmmm... Nada mal.

Estávamos um pouco afastados do centro do distrito central, numa vizinhança mais tranquila. Mal tinha pedestres por ali. Provavelmente, os moradores estavam saindo pra trabalhar. Eu diria que essa propriedade ficava mais ou menos no meio do caminho entre o escritório da ordem e a casa da Lucy, talvez um pouco mais perto da casa dela. Não era exatamente próximo, mas também não era longe o suficiente pra atrapalhar o trajeto diário. Eu me imaginava fazendo esse percurso todo dia, numa boa.

No geral, não era um lugar ruim.

—Não é tão grande assim — disse Lucy. —Mas imagino que você não ligue muito pra isso, né?

—É mais do que o suficiente — respondi.

Fiquei diante de uma casa térrea que parecia meio apertada pros padrões do distrito central. Apesar do tamanho, o espaço era mais do que o necessário pra eu viver sozinho. Desde Beaden, eu praticamente não tinha trazido bagagem — só a espada, um pouco de dinheiro pra viagem e algumas roupas extras.

—Agora, será que ela tá aqui? — perguntou Lucy, batendo na porta.

—Hã?

Peraí, tem alguém aí dentro? Achei que o lugar estivesse vazio. Meu cérebro deu uma travada com esse desenvolvimento repentino.

—Quem é...? Ah, srta. Lucy.

—Mui?

Uma garota de olhar afiado e cabelo azul-escuro apareceu. Era Mui Freya. Eu já tinha reparado que ela não estava na casa da Lucy. Pelo visto, era aqui que ela tinha vindo parar.

—Velho— Sr. Beryl, voc— Você também tá aqui?

—Tá tudo bem, tá tudo bem — falei. —Age normalmente, como sempre.

Qual era dessas correções estranhas? Os olhos dela se moviam nervosos enquanto tentava usar um jeito de falar mais educado e inusitado. De certo modo, era até fofo. Ah... virei um velho que fica admirando o crescimento das crianças.

—Hahaha! — Lucy riu. —A Haley ficou enchendo ela por causa da forma de falar.

—Entendi.

A Haley realmente era uma excelente criada. Servia como um bom contraponto pra personalidade caótica da Lucy — ela era toda certinha. E, por isso mesmo, não permitiria que uma garotinha falasse de forma grosseira, mesmo que fosse só uma hóspede. Eu conseguia visualizar direitinho a expressão desanimada da Mui sendo repreendida.

—E aí, o que você anda fazendo aqui, Mui? — perguntei.

—Ah... Limpando, cozinhando... essas coisas.

Por algum motivo, me senti meio culpado por ganhar uma casa que uma garotinha tinha limpado pra mim — me fazia parecer um inútil folgado. Tá, melhor nem pensar muito nisso. Aparentemente, a Mui estava passando um tempo aqui pra se preparar pra ser mais independente, em vez de ficar sempre sob os cuidados da Lucy. E isso, claro, era para o bem dela. Tem uma diferença entre cuidar de alguém e ser superprotetor.

—Já que estamos aqui, vamos dar uma olhada por dentro? — sugeriu Lucy.

—Claro. Já que vou morar aqui mesmo, faz sentido ver como é por dentro.

—Ainda não arrumei as coisinhas menores, mas o grosso da limpeza já tá feito — informou Mui.

—Bom trabalho, Mui. Muito impressionante.

—Hmph.

Tentei elogiar de verdade, mas não recebi muita reação. Ainda assim, como já tinha notado outro dia, ela estava bem menos arisca do que na primeira vez em que nos encontramos. Viver uma vida mais tranquila parecia estar fazendo bem a ela. E como a Mui ainda era jovem, a mudança era bem visível.

Os três passamos um tempo explorando a casa. Parecia meio antiga, mas estava em boas condições pra morar, especialmente porque a Mui tinha dado uma geral nela recentemente. Nada ali parecia ser um incômodo.

— E aí, o que achou? — perguntou a Lucy.

— Nada mal mesmo — respondi. — É uma boa casa.

— Ha ha, que bom ouvir isso.

O lugar já estava até mobiliado, então tecnicamente eu podia me mudar na mesma hora. A ideia de me mudar me fez pensar na estalagem onde eu tava ficando — e nas poucas tavernas ali por perto. Bom, deixando a estalagem de lado, eu podia visitar aquelas tavernas quando quisesse. Além disso, tava animado pra explorar essa área do distrito central em busca de mais lugares pra comer.

— Então está decidido — declarou Lucy. — E não se preocupe — não tô planejando cobrar nada. Pode considerar isso como um pedido de desculpas por ter arrumado briga quando a gente se conheceu.

— Aah, é mesmo, isso aconteceu.

Pois é, nosso primeiro encontro começou com uma batalha repentina. Ela foi realmente um baita incômodo. Mas se a recompensa disso era uma casa num lugar privilegiado, então tava tudo certo no fim das contas.

Justo quando eu tava começando a me emocionar com meu novo lar, a Mui falou:

— Bom, é... vou ficar sob seus cuidados.

Aquelas palavras me acertaram como um raio, e virei a cabeça, confuso.

— Hm? Como assim?

Lucy se virou pra mim.

— Beryl, que pergunta é essa? Você vai morar com a Mui. — Ela fez uma pausa. — Hm? Espera... não falei isso?

— Hã? O quê?! Você não falou nada sobre isso! — exclamei. — Como assim?

Isso tá estranho... Por que a gente tá falando de eu morar com a Mui? Era isso que ela quis dizer com “ficar sob meus cuidados”? E Mui, não vai junto com essa ideia não! Cadê sua atitude?

— Não posso deixar ela morando na minha casa pra sempre, né? — explicou a Lucy.

— Mm, isso eu entendo.

Essa parte tava de boa pra mim. Lucy não ia cuidar da Mui pra sempre — ela só tinha dado abrigo temporário. Isso eu já sabia, mas o resto não fazia sentido.

— A Mui precisa se tornar independente — continuou Lucy. — Mas também não dá pra simplesmente jogar ela na rua.

— Mm, é verdade.

Normalmente, a Mui já teria dito algo tipo “Eu me viro sozinha” ou coisa assim, mas ficou calada. Bom, ela nunca tinha vivido sem depender de bicos como batedora de carteira, então talvez nem soubesse o que fazer se isso fosse proibido.

— Então, você foi o escolhido pro trabalho — concluiu Lucy.

— É essa parte que eu não entendo...

Tá esquisito. Bem esquisito. Parece que essa conversa toda tá passando direto por cima da minha cabeça.

— Mas a Mui tá de boa com isso — acrescentou Lucy.

Fiquei em silêncio por um instante e então olhei pra garota.

— Você tá mesmo de boa com isso?

— Bom, não parece ruim... — Aí ela desviou o olhar e murmurou: — Mas também não parece bom...

Essa atitude era melhor que uma recusa direta, mas me perguntei se tinha acontecido algo — por que ela se apegou a mim? Eu tava acostumado a lidar com crianças por causa do tempo no dojo, mas isso aqui era diferente de ensinar um aluno. Talvez o que aconteceu ontem tenha feito ela criar simpatia por mim. É verdade que eu falei pra ela relaxar e curtir a vida como ela tava. Mas mesmo assim, esse velho aqui ainda achava tudo meio... repentino.

Suspirei.

— Haah...

Senti uma certa responsabilidade por essa garota. Tinha também a questão da irmã dela. Eu sabia que não podia substituir a irmã dela, mas como adulto que tinha se envolvido na vida da garota, achava que era meu dever ajudar ela a seguir um caminho de independência.

— Além disso — disse Lucy —, eu tenho um bom motivo pra ter escolhido você.

— Hmm. Posso saber qual é?

Justo quando eu tava chegando à conclusão de que não tinha muita escolha — não de um jeito negativo, tá? —, a Lucy resolveu explicar o porquê de ter me escolhido. Decidi ouvir. Não tinha nada a perder...

— A Mui tem talento pra magia — declarou Lucy. — É por isso que eu acho que o melhor pra ela é entrar no instituto de magia. Você concorda com isso, certo?

— Sim.

Ela tava certíssima. O instituto de magia era, sem dúvida, o melhor lugar pros usuários de magia aprenderem a dominar seus poderes. Lá, eles podiam florescer. Qualquer um com talento nato pra magia recebia tratamento especial, e segundo a Lucy, o instituto não se importava com origem ou histórico familiar. Considerando a situação da Mui, tudo isso era praticamente perfeito.

— No entanto, pra entrar no instituto de magia, é necessário a aprovação de um responsável legal — explicou Lucy.

— Sério?

Eu era bem ignorante no assunto magia, então nem sabia que existia essa regra — foi a primeira vez que ouvi isso. Mas agora eu já tava começando a entender o motivo de terem me escolhido.

A Mui não tinha pais. Bom, talvez estivessem vivos, mas ela nunca os conheceu, então as chances de encontrá-los eram mínimas. E o único parente de sangue conhecido já tinha falecido. Agora ela não tinha mais família nenhuma, e seria muito difícil conseguir entrar no instituto de magia. Era natural que alguém tivesse que assumir esse papel de responsável.

— É por isso que eu pensei que você deveria ser o tutor dela — disse Lucy.

— Entendo...

Finalmente tava começando a entender, embora ainda não tivesse certeza se concordava. Ser o tutor da Mui significava se tornar responsável por ela, pelo menos até se formar no instituto de magia e conseguir se virar sozinha. Eu duvidava que a Mui quisesse voltar a roubar — era melhor confiar nela nesse ponto.

— Não vou atrapalhar... provavelmente — disse a Mui, meio sem jeito. Talvez ela estivesse achando que minha conversa com a Lucy não tava indo bem.

— É, isso não me preocupa — falei pra ela. Tudo isso tava vindo de repente, mas eu não tava desconfiando da Mui de forma alguma. Precisava deixar isso claro pra ela.

— O instituto tem dormitórios — acrescentou Lucy. — Ela vai passar a maior parte do tempo lá, então duvido que isso vá ser um problema grande.

— Esse é o problema principal aqui...? — murmurei.

Eu sentia que a Lucy estava desviando da verdadeira questão ali. Sim, morar num dormitório significaria que a Mui e eu passaríamos pouco tempo sob o mesmo teto, então isso resolveria algumas coisas sem que nenhum dos dois precisasse ficar se esforçando demais pra agradar o outro. No entanto...

—Você não poderia ser a guardiã dela, Lucy? —perguntei.

—Minha posição torna isso meio inconveniente —ela respondeu. —Mesmo que eu não me importe, a Mui acabaria sendo alvo de comentários.

—Hmmm...

Ela tinha razão. Se a atual comandante do corpo mágico resolvesse acolher uma órfã e matriculá-la no instituto de magia, todo tipo de boato começaria a circular. Era fácil esquecer disso, mas a Lucy era uma pessoa de status. Em termos de título, talvez eu tivesse algo similar, mas o peso histórico, o prestígio e, acima de tudo, a fama e a influência do título dela estavam em outro nível. Eu não queria que toda aquela atenção recaísse sobre os ombros da Mui—era melhor evitar.

—Allusia... também está fora de questão —murmurei.

—De fato —concordou Lucy. —A idade dela seria um problema.

A outra pessoa que conhecia a situação da Mui me veio à mente, mas logo percebi que a comandante dos cavaleiros não serviria. Ela era bem jovem, e esse tipo de responsabilidade não era algo que a comandante da Ordem de Liberion devia carregar.

—Entendi agora...

Depois de pensar um pouco, percebi que a melhor opção—ou melhor, a única que restava após o processo de eliminação—era eu mesmo. Levei a mão à cabeça, e o som dos meus dedos bagunçando o cabelo preencheu o ambiente. Eu fui o primeiro a dizer que assumiria a responsabilidade pela Mui, dentro do que estivesse ao meu alcance. Não tinha mentido sobre isso, e uma parte de mim realmente queria fazer algo por ela.

—Bom, veja bem, pode parecer estranho vindo de mim, mas é só pra fins de documentação —acrescentou Lucy. —Não tô dizendo que você precisa agir como pai e filha nem nada.

Será que você devia mesmo estar dizendo isso, mesmo que seja verdade? Este velho aqui acha que a comandante do corpo mágico e exemplo de todo o instituto não devia falar desse jeito.

—Haah... Tudo bem —respondi.

Eu não podia substituir a irmã mais velha da Mui. Mas eu tinha uma boa dose de experiência com crianças. Ser pai era diferente de ser instrutor, claro, mas eu não podia demonstrar esse tipo de insegurança na frente da Mui.

—S-Sério...? —perguntou a Mui.

—É, bom... Acho que vou ficar sob seus cuidados também —falei pra ela.

Ser criança era tão injusto. Aquela expressão da Mui... Qualquer um escutaria o que ela dissesse. Além disso, eu me sentia culpado por ter matado a irmã da Mui... mesmo que ela já estivesse morta. Não tinha coragem de contar isso pra Mui—e, se contasse, ela teria todo o direito de me culpar. Mas, como havia jurado desde o começo, já tinha decidido manter esse segredo com a Lucy até o fim da vida.

Talvez ser o guardião da Mui fosse uma forma de redenção. Eu não entendia bem essas coisas, mas estava decidido a cuidar dessa garota. Se isso levar ao crescimento dela e a um futuro brilhante, então só me resta aceitar e seguir em frente.

—Certo! Aqui estão os documentos do instituto —disse Lucy, tirando uns papéis do bolso. —Também tenho uma caneta.

—Você tá bem preparada, hein...

Provavelmente eram os papéis de matrícula e o comprovante de que eu era o guardião da Mui. Sentamos em algumas cadeiras na mesa ali perto—era bem provável que a Lucy tivesse preparado tudo aquilo pra facilitar a leitura e assinatura dos documentos. Estava tudo pronto pra resolver aquilo na hora.

—Ah, é—você sabe escrever, Mui? —perguntei.

—Um pouquinho...

Dava pra perceber que ela não tinha tido uma educação formal. Ia precisar aprender a ler e escrever a partir de agora.

—Bom, quando estiver aqui, eu te ensino —disse.

—Tá bom...

Lucy caiu na risada.

—Ha ha ha ha! Já tá parecendo um pai!

Quietinha, Lucy. Posso dar um soco nela? Melhor não. Bem, estou ganhando uma casa dela, então acho que tô mais em dívida com ela do que ela comigo. As coisas estão ficando complicadas.

Enfim, eu tinha que assumir a responsabilidade por ter invadido o mundo da Mui e tirado ela de lá. Chegou a hora de fazer isso. Não era nada demais—eu já tinha experiência por ter criado a Selna. Com certeza as coisas iam dar certo, mais ou menos.

—U-ummm... M-u-...j...?

—Aah, se escreve assim...

Sentei e fiquei observando a Mui se esforçando com a caneta enquanto assinava o documento. Ah, isso me lembra—provavelmente devo escrever uma carta pro Beaden. Muita coisa aconteceu desde que cheguei aqui, e eu queria saber como o Randrid estava se saindo no dojô. Me perguntei como começar essa carta, e só uma frase veio à mente. Sorri amargamente pra mim mesmo.

Querido Pai,

Encontrei uma casa e uma criança antes de encontrar uma esposa.


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