Capítulo 5:
Vingador(es)
Sogou Ayaka
SOGOU AYAKA caminhava com cautela pela floresta no canto sudoeste do reino, mantendo os olhos atentos a qualquer ameaça. Já fazia alguns dias que estava nesse novo mundo, e ela ainda estava se acostumando com essa nova vida.
Galhos estalaram no mato próximo. Ela reagiu na hora e ergueu sua lança longa.
— Grrr... Graarh!
Era um cão-boca.
A criatura tinha uma boca enorme, deformada, cheia de dentes tortos e brilhantes. Os olhos reluziam em dourado. Sogou nunca tinha visto nada parecido... e nunca tinha sido tão claro o quão longe de casa ela estava.
O monstro canino deu um passo à frente.
— Você... quer brigar? — ela perguntou, tanto pra si mesma quanto pra criatura.
— Grrh…!
Ele arreganhou os dentes.
— Onde é que você se meteu, hein...?! Maldito cachorro! — a voz de Oyamada Shougo surgiu ali perto, e o som das folhas se agitando ficou mais intenso conforme ele se aproximava. Ele pulou pra fora do mato, brandindo sua espada gigantesca.
Ao ver Oyamada, o cão virou-se e disparou na direção oposta. Ayaka ficou paralisada — naquela distância, ela sabia que poderia interceptar, mas...
— Esse aí é meu, Sogou! Sai da frente! Só os de Elite pegam a presa boa, entendeu?!
Oyamada claramente não queria ajuda.
— Bom, talvez eu deixasse você participar se viesse com a gente e se juntasse ao nosso grupo! Pensa bem, hein? Cê tem que pensar no seu futuro!
Deixando essas palavras arrogantes no ar, Oyamada sumiu de novo no mato. Ayaka voltou a ficar sozinha. Olhou em volta — nenhum som — e finalmente permitiu-se relaxar um pouco, soltando um suspiro.
Os heróis da 2-C estavam treinando suas habilidades de combate numa área preparada especialmente pra eles, nos arredores do reino. Um muro de pedra gigantesco cercava uma parte da floresta, e dentro dela soltavam monstros ferozes, escolhidos conforme a força atual dos alunos.
Salvar o mundo do mal, é?
Ayaka sentou numa pedra próxima e segurou a lança com força. Já fazia alguns dias desde que a Deusa os obrigou a matar aqueles monstros no castelo. Ela dizia que queria que eles se acostumassem a tirar a vida de seres vivos. Mas Ayaka tinha dormido durante essa parte.
Quando acordou, o ritual de iniciação já tinha acabado. Alguns alunos não passaram — por mais que tentassem, não conseguiam matar seus monstros. Alguns ficaram paralisados, outros enjoaram, choraram, ficaram catatônicos ou confusos.
Claro que ficaram.
Todo mundo da 2-C cresceu num mundo pacífico. A simples ideia de tirar uma vida com as próprias mãos era completamente estranha pra eles. E Sogou não era exceção.
Assim que recobrou a consciência, ela foi falar com a Deusa, que explicou o que tinha perdido.
Pro horror de Sogou, a Deusa contou que qualquer um que não conseguisse fazer sua primeira “eliminação” em breve seria descartado.
— É realmente uma pena — começou a Deusa —, mas é necessário, Sogou-san. Temo que qualquer desistente terá que seguir o mesmo caminho do nosso infeliz amigo Too-ka Mimori-san.
A Deusa também falou brevemente sobre os últimos momentos de Mimori Touka entre eles. As últimas palavras dele pareciam estranhas — não soavam como o Touka que ela conhecia.
Ela... ela não conseguiu salvá-lo.
— Me desculpe mesmo, Sougo-san. Me dói ter que fazer isso, mas essas são as leis do Reino de Alion, e são absolutas. Sinto muito... mas não posso fazer nada — disse a Deusa, com lágrimas nos olhos.
Ayaka sabia o que ela estava tentando fazer.
— Com licença, Deusa... posso falar livremente?
— Sim? Fale o que quiser.
— Eu não gosto da forma como você faz as coisas. Nem um pouco.
— Hmm~? Como assim?
— Você joga fora os fracos quando eles deixam de ser úteis. É horrível.
— Ah. Suponho que essa seja uma forma de ver as coisas~! Sabe, apesar de ser uma Deusa, até que sou um espírito generoso. Às vezes posso até ser persuadida! Ainda assim... aqueles que não conseguem cumprir seu papel heroico neste mundo não duram muito...
— Minha classificação... S-Class. Isso tem peso aqui.
— Mas é claro! Isso te torna alguém bem importante!
Ayaka não teve escolha. Deu à Deusa o que ela queria.
— Eu vou lutar por você... mas os heróis que não conseguiram passar pelo seu ritual de iniciação estão sob a minha proteção. Eu me alio a você, contanto que todos eles possam ficar aqui.
— Que coisa maravilhosa e corajosa da sua parte! É algo admirável quando uma heroína de Classe S defende seus ideais. Pode até ter algumas reservas, mas está disposta a deixá-las de lado pra salvar o mundo!
— Sim, estou.
— Que encantador~! Vamos selar nosso novo vínculo com um aperto de mãos! Ah, e embora eu ache que foi necessário na hora, peço desculpas por ter te socado no estômago~!
Ayaka apertou a mão da Deusa. Ela estava fria como gelo.
Mãos frias, coração quente? Sei...
Eu sei que ainda tô confusa... só se passaram três dias, e eu mal entendi o que tá acontecendo...
Mas eu tenho que fazer isso. Tenho que protegê-los.
Na opinião de Ayaka, os alunos que não passaram pela cerimônia de iniciação eram algumas das pessoas mais gentis da sala. Ela ouviu dizer que Zakurogi tinha assumido uma posição de liderança entre eles, embora também estivesse tendo dificuldades pra se adaptar à nova realidade.
Em um certo momento, quando tentou reafirmar sua posição de líder e figura de autoridade, Oyamada deu uma patada cruel:
— Ha! Você acha mesmo que eu vou aceitar um herói de Classe D como meu professor? Pode mandar eu te respeitar, mas não tem como provar que merece! Ah, e só pra constar... nosso grupo vai passar dessa, valeu! Que tal ver se tão precisando de ajuda pra lavar pratos na cozinha do castelo, Zakurogi-kun? Deve combinar mais com o seu talento!
Ayaka havia repreendido Oyamada por ter ido longe demais e tentou rebater com algo que encorajasse o professor, mas ele simplesmente passou por ela, tropeçando para fora da sala em choque. Desde então, parecia um homem quebrado.
— Eu preciso ficar mais forte… — ela o ouviu murmurar baixinho.
Eles tinham recebido permissão para pegar qualquer arma do castelo. Kirihara escolheu uma katana, Oyamada uma espadona, Hijiri uma espada longa, Itsuki um florete, e Yasu duas espadas para empunhar ao mesmo tempo. Espadas aparentemente eram comuns nesse mundo, embora tivessem sido trazidas originalmente por heróis invocados no passado.
Ayaka foi direto para uma lança, a arma com a qual ela mais tinha familiaridade. Sua avó era mestre do estilo “Kisou” de artes marciais antigas, e mesmo depois de se casar com um homem rico, continuou ensinando. Ayaka era sua aluna desde muito nova. O “Kisou” não era só combate com lanças — também incluía técnicas para situações em que o inimigo estava perto demais para usar uma — mas, para a maioria das batalhas, a lança era sua favorita.
Ayaka estudava e treinava duro todos os dias. As aulas faziam parte de sua rotina querida. Treinava todas as noites, depois tomava banho e lia um pouco antes de dormir.
Agora, tudo aquilo parecia tão distante.
Nunca imaginei que usaria essas técnicas numa situação real de vida ou morte… Não posso me contentar com meus feitos patéticos até agora. Um herói de Classe S precisa ter resultados de Classe S, senão todos os alunos reprovados vão acabar em perigo. Vão acabar como o Mimori-kun…
Descartar os fracos… aquilo era errado, não importava o que dissessem. A expressão Noblesse oblige lhe veio à mente. Os fortes têm o dever de proteger os fracos — uma obrigação.
Primeiro, ela precisava matar alguns monstros e “subir de nível”. Aparentemente, matar monstros concedia “pontos de experiência”, que seriam algum tipo de energia, talvez? Matando monstros fortes, você se tornava poderoso também.
— Status, abrir.
Ayaka Sogou
Nível 1
HP: +700 MP: +300
Ataque: +1300 Defesa: +300 Vitalidade: +500
Velocidade: +700 <+500> Inteligência: +700
Título: Heroína de Classe S
A Deusa disse que esses negócios de atributos aumentam conforme a gente sobe de nível.
Heróis invocados eram os únicos nesse mundo com esse esquema de “níveis” e “experiência” — pessoas normais e monstros não conseguiam ver atributos assim.
Ayaka passou levemente a ponta dos dedos sobre os brincos — o bônus em “Velocidade” vinha deles, seu item único. Tinham dito que a maioria desses itens especiais só aumentava os atributos brutos, e com os dela não era diferente — ela realmente se sentia um pouco mais rápida do que antes.
Pontos de experiência…
Matar uma pessoa não concedia experiência nem fazia você subir de nível. Ayaka achava que isso fazia sentido — não queriam heróis partindo numa matança pelo reino, matando as pessoas que deveriam proteger. Ela balançou a cabeça diante da imagem perturbadora.
Então, tinham que se limitar a matar monstros para subir de nível. Os monstros vinham em alguns tipos diferentes, e os que davam mais EXP tinham olhos dourados. Sem surpresa, eram também os mais fortes e difíceis de matar.
Vamos ver, o que mais…
Ela abriu sua lista de habilidades, já acostumada aos gestos de deslizar.
As palavras Habilidade Única estavam exibidas em cinza, como sempre.
Será que um dia vou conseguir usar magia?
Ela ainda não tinha matado nenhum monstro sequer, e continuava presa no nível 1.
Será que eu consigo…? Não, eu não tenho escolha. Não consegui salvar Mimori Touka, mas… preciso salvar os outros. Não vou deixar aquela Deusa levar mais ninguém. Vou proteger os indefesos, para que a morte do Mimori Touka não tenha sido em vão.
Preciso encontrar mais um daqueles monstros.
Ayaka se levantou e começou a andar.
Não usava mais o uniforme. Em seu lugar, um traje saído direto de um filme de fantasia — uma armadura chamativa que destacava mais seu corpo do que ela gostaria. Era linda e elaborada… e Ayaka passou a noite anterior adicionando tecido com cuidado nas partes mais expostas.
— Esse tipo de armadura dá uma grande vantagem contra inimigos do sexo oposto — a Deusa lhe dissera. — Também facilita o fluxo de mana pelo corpo! Não poupamos esforços para criar o equipamento de Classe S mais útil e mais atraente!
Será que ela tava falando sério? Isso é tão constrangedor…
Ayaka odiava se sentir exposta — por isso sempre usava meia-calça preta com o uniforme. Mas tinha que admitir que seu uniforme comum não ofereceria muita defesa contra garras de monstros. A armadura tinha algum tipo de proteção mágica da Deusa, aparentemente. Agora, era vital para sua defesa.
Vou ter que aguentar por enquanto.
Continuou caminhando, meio cabisbaixa.
Heróis, é?
A palavra ainda soava estranha para ela. Ser chamada de herói era como se não tivesse mais escolha — tinha que reunir coragem e ir lutar contra o mal. Mas ela não se sentia nem um pouco heroica.
A palavra "herói" é só um feitiço que ela lançou na gente pra impedir que corrêssemos.
Para Ayaka, aquilo parecia mais uma maldição.
Ela parou e preparou sua lança, sentindo algo se aproximar.
— Haah, haah… Ah! S-Sogou-san!
— Kashima-san…?
Ela é do grupo da Ikusaba Asagi, se não me engano. Já fomos todos bem separadinhos em grupos, não é…? Facções, igualzinho na sala de aula. Tem coisa que nunca muda.
— O que houve?
— M-me mandaram te entregar uma mensagem…! — Kashima arfou, ainda ofegante.
— Respira primeiro, depois me conta. Eu espero, prometo.
— D-desculpa… M-muito obrigada…
Kashima Kobato sempre foi uma das colegas mais quietas, mas se ela tá aqui…
Kobato deve ter passado pela cerimônia de iniciação da Deusa.
Ela não parece que machucaria nem uma formiga… talvez Ikusaba-san tenha feito alguma coisa pra ajudar ela a passar.
Eu… não confio na Ikusaba Asahi. Ela sempre parece estar tramando algo.
A respiração de Kobato acalmou o suficiente para que ela conseguisse falar.
— Hm… T-tem um monstro vaca-homem superforte que acabou se misturando aos outros por engano… Alguém do castelo me contou e… T-talvez todos devêssemos voltar…
Kobato não tá em boa forma e é super tímida… mas mesmo assim veio até aqui pra me avisar.
— Você correu até aqui só pra me contar isso? Obrigada, Kashima-san.
— S-sim… P-porque a gente precisa de você, Sogou-san. Você precisa viver…
Ayaka apenas a encarou. Parecia que Kashima achava que ela mesma não era necessária, de jeito nenhum.
—Kashima-san?
Um arrepio percorreu a espinha de Ayaka ao ouvir o tom de Kobato. A outra garota olhava fixamente por cima do ombro de Ayaka — ela levantou o braço devagar, apontando.
—P-pra trás de você...
Ayaka se virou.
—Grrrrraaagh!
Era um homem com cabeça de boi. O corpo era pequeno, mas sua presença era esmagadora e assustadora. Seus olhos dourados brilhavam sob o sol.
Com um rugido, a criatura avançou.
—Kashima-san, fique atrás de mim! Afaste-se, eu cuido disso!
—M-mas...
—Tá tudo bem! Só vai!
—Okay!
Ayaka posicionou sua lança.
Será que eu consigo mesmo?
Ela respirou fundo e tentou acalmar o coração acelerado. Quando encarou o inimigo, lembrou das palavras da avó.
"Presença de espírito e timing. Essas são as chaves."
A criatura já estava quase em cima dela, e...
Thunk!
No instante em que avançou, Ayaka habilidosamente encaixou a lança sob o braço da criatura, desequilibrando-a. Rapidamente girou o corpo ao redor do monstro, usando a lança como eixo para lançá-lo ao chão por cima das costas, formando momentaneamente uma cruz com o próprio corpo.
—Estilo Kisou... Cross Drop!
Ela gritou por puro hábito. Ayaka sempre foi ensinada a dizer o nome das técnicas enquanto as executava, como uma forma de visualizar o que queria fazer. Essa técnica usava a força do oponente contra ele, algo parecido com o Aikido.
O homem-cabeça-de-boi caiu com força de costas no chão, preso firmemente pela lança. A criatura engasgou com sangue espumando pela boca, o corpo ainda em choque com o impacto e o ferimento.
Eu consegui.
Ayaka olhou horrorizada para o monstro. Puxou a lança e apontou a ponta para o pescoço da criatura.
Eu tenho que matar. Eu tenho que... se eu quiser ficar mais forte, eu...
Ela firmou as mãos na lança, pronta para atacar...
—Sai da frente, Sogou!
—Hã?
Ela foi empurrada e caiu no chão.
—Gaah!
No lugar dela, surgiu Kirihara Takuto, com a mão estendida na direção da criatura imóvel.
—Dragonic Buster!
O homem-boi foi engolido por um feixe largo de luz dourada.
—Beleza, isso foi... nível 18 — disse Kirihara, ofegante.
Ayaka ficou paralisada, atônita com o que acabara de acontecer.
—Sogou-san... aquilo foi...? — perguntou Kobato, com a voz trêmula.
Kirihara soltou um suspiro, depois olhou para Ayaka com sua expressão fria de sempre.
—Valeu pela ajuda.
O quê? Ajuda...?
Kirihara suspirou de novo, com ar de tédio.
—Essa foi por pouco. Você precisa tomar mais cuidado, Sogou.
Ele se virou e foi embora, sumindo entre as árvores.
—O que acabou de acontecer...? — murmurou Kobato, ainda meio em choque.
—Escória.
Kobato se sobressaltou ao ouvir a voz de Takao Hijiri, que de repente estava bem ao lado dela.
Ayaka balançou a cabeça, a ficha caindo. Kirihara tinha roubado os pontos de experiência dela.
—Você não esconde o que sente, né, Hijiri-san? — disse Ayaka.
—Vai deixar ele sair impune?
—Não quero arrumar confusão se não for necessário. Acho que o Kirihara-kun ainda não entendeu como lidar com essa nova situação. É por isso que ele tá sendo tão...
—Essa sua ingenuidade ainda vai te matar, Sogou-san — interrompeu Hijiri.
—Talvez você esteja certa.
—Eu não gosto disso em você.
—Eu sei.
—Bom...
Hijiri se virou nos calcanhares.
—Acho que essa também não é sua pior qualidade. Eu só não tenho espaço pra admirar esse tipo de coisa.
Deixando essa frase enigmática no ar, ela também desapareceu pela floresta.
Ayaka e Kobato se levantaram e seguiram de volta para se encontrar com os outros alunos. Caminharam até chegar a uma clareira, onde a copa das árvores se abria, revelando nuvens escuras se formando ao longe no céu.
Talvez a gente acabe tendo que lutar entre si por causa desses monstros de olhos dourados... Espero que não.
No coração de Sogou Ayaka, nuvens de chuva também começavam a se formar.
Naquele dia, Alion recebeu notícias sobre os movimentos do exército do Rei Demônio. A grande fortaleza ao norte do Reino de Magnar, a Muralha da Noite, havia caído. O exército do Rei Demônio parou após derrubar aquela grande rocha do Norte, e ainda não havia sinais de que pretendiam avançar mais.
As notícias da agitação se espalharam pelo continente como fogo selvagem, e cada país correu para se preparar para uma possível invasão.
Três dias após finalizar seu treinamento na floresta, essa notícia chegaria até Sogou Ayaka.
Mimori Touka
FINALMENTE, EU EMERGIA das Ruínas do Descarte — inescapáveis até então.
Hora de descansar um pouco e curtir esse sol?
Nem pensar.
Lembrei do que aquela Deusa imunda tinha dito.
"Eu envio periodicamente uma patrulha até a entrada das ruínas para verificar um marcador secreto que vai me indicar se alguém conseguiu escapar... mas esse marcador nunca foi ativado."
Espiei com cuidado, me escondendo nas sombras dos grandes pilares de pedra que cercavam a entrada. Não vi torres de vigia nem guardas.
Então a patrulha não fica sempre aqui... melhor dar uma olhada ao redor da entrada enquanto posso.
Mas não encontrei nada. Esse marcador secreto estava escondido em algum lugar que eu não consegui localizar. Era só questão de tempo até ela descobrir que eu escapei.
A porta das ruínas se fechou com força atrás de mim assim que pisei no sol, como se dissesse "vá embora e não volte!" Talvez eu tenha matado monstros demais lá dentro e o lugar quis se livrar de mim.
Uma pena — eu queria pegar aquele cristal dourado e tentar vender. Nem sempre dá pra ter tudo, né?
A área do lado de fora estava cheia de construções abandonadas, como aquelas grandes ruínas antigas que aparecem em livros de história. Analisei tudo rapidamente — as ruínas ficavam numa clareira cercada por floresta. Decidi me afastar da saída o quanto antes. Afinal, já me despedi daquele lugar.
Depois de escolher uma direção aleatória e andar por um tempo, acabei encontrando uma trilha de terra batida que parecia ter sido usada por pessoas recentemente. Considerei segui-la — mas aí pensei na possibilidade de o grupo de reconhecimento encontrar minhas pegadas estranhas. Decidi andar pela floresta, paralelamente à trilha.
— Se eu achar água, queria muito tomar um banho...
Escapei das ruínas, mas agora tinha um monte de outras coisas pra lidar. Criei alguns hábitos estranhos dos quais agora precisava me livrar — o principal deles era falar sozinho.
— Status Open.
Too-ka Mimori
Level 1789
HP: +5367 MP: +59037
Ataque: +5367 Defesa: +5367 Vitalidade: +5367
Velocidade: +5367 Inteligência: +5367
Título: Herói Classe E
Ainda é só o meu MP que tá absurdamente alto.
Abri a tela de habilidades e olhei para as duas skills que tinham subido de nível na última batalha.
Paralisar: Nível 3 / Custo de mana: 10MP / Habilidade de múltiplos alvos / Cancelamento manual / Local de cancelamento: cabeça
Envenenar: Nível 3 / Custo de mana: 10MP / Habilidade de múltiplos alvos / Cancelamento manual / Modo não letal
Novas opções tinham aparecido ao lado das habilidades — agora ambas mostravam "Cancelamento manual".
Nunca quis cancelar as skills enquanto estava nas ruínas, então nem tinha percebido que não dava pra fazer isso antes.
Preciso testar isso em uns monstros na próxima oportunidade.
— Local de cancelamento: cabeça — li em voz alta.
Então eu posso manter o corpo paralisado, mas deixar a cabeça livre? Dá pra conversar com alguém enquanto ele tá paralisado.
— Modo não letal...
Será que deixa com 1 de HP, tipo em RPG? Pode ser útil também... embora duvido que isso vá me render muitos amigos.
— ...
Se funcionar nela, seria a skill perfeita pra usar naquela Deusa imunda...
— Vou ter que testar esse novo efeito de Envenenamento logo.
Fechei a tela de status e tirei a garrafinha de refrigerante da minha bolsa de couro. Só restavam umas gotinhas da primeira bebida que recebi — abri a garrafa, fiz um brinde à minha fuga e virei tudo de uma vez. O gás já tinha ido embora, mas o sabor doce e profundo percorreu meu corpo cansado.
— Aaaahhh...
Guardei a garrafinha plástica vazia, pra usar como recipiente se encontrasse água. E continuei andando, com a mente a mil, pensando em tudo que precisava fazer.
Calma... uma coisa de cada vez. Eu sou péssimo em multitarefa, então preciso resolver tudo por ordem antes de começar a riscar da lista.
— Beleza, então...
Primeiro, preciso tentar achar uma vila. Preciso de um lugar pra descansar — uma estalagem, se possível. Depois tenho que consertar minha roupa e dar um jeito nesse uniforme escolar. A última coisa que quero agora é chamar atenção, então esse uniforme definitivamente precisa ir embora.
Também quero saber onde eu tô… ainda tô no Reino de Alion ou fui mandado pra algum outro lugar completamente diferente? Queria ter um mapa...
Dei uns tapinhas no peso reconfortante da bolsinha com moedas de prata e gemas que encontrei.
Depois, preciso descobrir quanto vale essa moeda. Tenho que saber quanto custam as coisas nesse mundo.
As explicações daquela Deusa foram bem rasas, então tem muita coisa que vou ter que descobrir por conta própria.
— Isso aqui também...
Olhei por cima do ombro pros Pergaminhos da Magia Proibida que estavam saindo da bolsa nas minhas costas.
Quero entender mais sobre essas coisas. Vai que me ajudam a derrotar aquela Deusa, afinal...
— Fico pensando...
Será que dá pra eu mesmo lançar esses feitiços se aprender a ler a língua? Ou só pessoas específicas conseguem usar esse tipo de magia? Preciso testar isso. Além disso...
— Queria ter uma espada — murmurei. Mas com todos os meus status além do MP tão baixos, talvez nem adiantasse muita coisa.
Pensei na minha jornada pelas ruínas.
Depois de um tempo, parei de me sentir cansado ou enjoado, e não ficava mais sem fôlego. Podia andar por horas numa boa, e a bolsa de couro nas costas parecia cada vez mais leve com o passar do tempo, mesmo com os itens que eu ia pegando.
Meus modificadores de status devem estar funcionando até certo ponto, mas o Devorador de Almas ainda me considerava fraco. Mesmo acima do nível 1000, eu ainda era a coisa mais fraca lá embaixo...? Acho que sou mais do tipo conjurador — aquele personagem que fica na beirada do alcance das magias e atrás dos guerreiros parrudos.
Isso só me fazia querer uma espada ainda mais. Ou, melhor ainda...
— O que eu realmente preciso é de um guarda-costas pra cobrir minhas costas.
Se eu tivesse um lutador forte do meu lado pra fazer a linha de frente, eu poderia usar minhas habilidades sem tanta preocupação.
Nas ruínas, consegui me virar bem ficando encostado na parede e deixando os inimigos se empurrarem e se atrapalharem uns aos outros, mas ao ar livre não vai ser tão fácil assim. Talvez eu consiga contratar um mercenário habilidoso pra encarar a Deusa comigo.
— Ou formar meu próprio grupo de mercenários...
Preciso ter dois ou três planos diferentes de como levar a cabo minha vingança. Essa história de magia proibida parece promissora, mas não conheço o suficiente pra confiar só nisso... melhor ter opções.
— Isso seria tão mais fácil se minhas habilidades de status funcionassem naquela Deusa imunda. Mas... acho que já tive mais do que minha cota de sorte ultimamente. — Entre a bolsa de couro que me dava comida e a utilidade inesperada das minhas habilidades, eu realmente tive uma sorte absurda até agora.
Por fim, quero tirar um tempo pra ler esse Artes Proibidas: Obra Completa que o Grande Sábio me deu...
Senti uma presença. Me movi e espreitei de trás de uma árvore.
— Squee!
— Squee?!
— Sque-ue-uee-!
— Squee—!
Seis coisinhas redondas, gelatinosas e azuis estavam por perto.
— Aquilo são... slimes?
Slimes são um clássico dos RPGs, geralmente os primeiros monstros que aventureiros enfrentam. Normalmente, são fracos.
Não acho que esses sejam diferentes... não parecem estar escondendo nenhum poder especial ou algo assim.
Parece que os monstros nas Ruínas do Descarte eram mesmo desbalanceados, como eu suspeitava.
— Esses slimes também não têm olhos dourados...
Todos os monstros que eu enfrentei tinham um brilho dourado nos olhos, até mesmo aquele híbrido esquisito de cavalo com planta. As únicas exceções foram os dragões zumbis… mas eles nem tinham olhos pra começo de conversa.
Os slimes pareciam distraídos e não notaram minha aproximação.
— Squee!
— Squ-ee… ee…!
— Quee?!
— Quee! Squue…
Eles estavam brigando entre si.
Não, pera… Acho que tão se juntando pra cima daquele ali…
O menorzinho do grupo tava no centro, cercado por cinco slimes maiores que se revezavam atacando ele. Parecia assustado, se encolhendo a cada golpe, como se quisesse correr.
Fiquei pra assistir. Não parecia que os slimes maiores estavam brincando, e o slime pequeno se achatou no chão como se estivesse se curvando, pedindo desculpas pros outros.
— Isso não vai funcionar — murmurei sem pensar.
Não tem nada de errado em pedir ajuda de vez em quando… mas a chance de alguém aparecer é bem pequena. Então lute. Confie na sua própria força antes da dos outros.
— Squ-eee… ee…
A cor do slime menor tava desbotando pra um cinza pálido.
Será que esses slimes grandes vão matar o pequeno assim, do nada?
Era difícil dizer o que eles estavam sentindo — não dava pra sentir aquele desejo assassino intenso que vinha dos monstros nas ruínas.
Será que é mais difícil de ler porque eles são fracos? Não faço ideia do que estão sentindo.
— Squeeeeeeee!!
O slime achatado saltou no ar com um grito.
Os slimes abaixo colidiram uns com os outros com uma sequência de estalos. Um momento depois, eles se reagruparam e, endurecendo partes do corpo como armas, avançaram pra atacar.
— Squeeee! Squeee—!
— Quee! Squ-?!
Mas o ataque surpresa do pequeno não serviu de nada. Ele não tinha chance num cinco contra um.
— Squee! Squeee!
— Quee?! Queee?!
Não tinha como ele vencer.
— Certo, pra mim já deu.
Dei um passo na direção dos slimes com o braço apontado pra eles. Sorri.
— Paralyze.
Os atacantes congelaram no lugar.
— Qu-Quee?!
Seus guinchos ficaram mais agudos, tomados de alarme e confusão.
— Poison.
Os cinco slimes ficaram instantaneamente roxos.
Um aviso apareceu no canto da minha tela de status — dizia letal.
— Então é assim que muda a configuração, hein?
Toquei na opção Non-lethal e a tela fez um clique.
— Sorte a minha poder testar isso tão cedo.
Os slimes pareciam apavorados, mas não senti agressividade vindo deles — acho que só estavam assustados com o que eu tinha feito.
— Squ-ue-ee…
Olhei pros slimes paralisados.
— Heh heh… foi mal atrapalhar a brincadeira de vocês, mas eu não curto ver os fortes tirando vantagem dos fracos desse jeito, ainda mais numa luta tão injusta. Tive que interferir.
Selecionei a barra amarela de um dos slimes e toquei em Dispel. Uma janela de confirmação apareceu com sim / não. Toquei em sim e dissipei os efeitos de paralisia e veneno dos cinco slimes.
Meu sorriso desapareceu.
— Caiam fora.
Com alguns guinchos patéticos, os slimes enfraquecidos se arrastaram cautelosamente pela grama.
Derrotá-los teria sido fácil — depois que o veneno os deixou à beira da morte, bastava pisar neles pra acabar de vez.
— Não tem por que matar se não dão EXP boa… e vai saber? Eles podem ser amigos ou até família desse carinha aqui.
Eu sabia bem que alguns pais eram capazes de ferir ou até matar seus próprios filhos.
Virei pro slime menor, ainda paralisado onde o deixei.
— Vou deixar você se mexer de novo, beleza? Depois disso, pode fazer o que quiser. Não vou te matar nem nada.
Tinha começado a falar com o slime sem pensar muito — o devorador de almas parecia me entender, afinal. Mas, pra ser sincero, eu nem sabia se o slime entendia linguagem.
Me agachei.
— Não leva a mal, pequenino, mas…
— Squee?
Nem parece assustado… Estranho.
— Foi mal não ter chegado mais cedo. Você mandou bem. Enfrentar aquela desvantagem toda… foi impressionante.
— Squee…!
— Não me ataque assim que eu te dissipar, beleza?
— Squee!
Talvez fosse só impressão minha, mas parecia que o slime tinha entendido.
Dissipei o efeito de Paralyze.
— Squee! Squee! Squee!
Hm? Tá mudando de cor… Talvez esteja se recuperando dos ataques de antes?
Me levantei.
— Até mais. Se cuida por aí, camarada.
Joguei minha bolsa de couro de volta no ombro e comecei a andar. Consegui testar o novo recurso da minha habilidade — essa era a maior vitória — mas o encontro também me fez sentir um pouco melhor com tudo.
Já fazia um tempo que eu tava andando depois do encontro com o slime quando ouvi um farfalhar nos arbustos. Alguém estava me seguindo.
Me virei e suspirei.
Sabia…
O slime pequenino surgiu do mato, coberto de folhas e galhos. Cocei a cabeça.
— Você não tem amigos pra voltar? Aqueles idiotas não podem ser seus únicos amigos, né?
— Squeee…
O slime se achatou um pouco, como se estivesse abaixando a cabeça.
Virei de novo e continuei andando. Depois de um tempo, parei e olhei pra trás.
— Squee…
Putz…
— Vai me seguir até quando, hein?
— Squee…?
"Posso ir com você…?" Talvez fosse por causa dos monstros que enfrentei nas ruínas, mas senti que conseguia entender o que o slime queria dizer.
Bom… ele não parece agressivo como aqueles monstros eram… e não tem olhos dourados, nem nenhuma daquelas características bizarras e nojentas. Será que existem monstros nesse mundo que não são perigosos…? Acho que humanos também são assim — tem gente como Kirihara e Oyamada, mas também tem pessoas como a Sogou e o Kashima.
— Não sei se conseguiria te levar pra uma cidade cheia de gente, sabe…
— Squuuh…
Parecia chateado ao ouvir isso. Aquele olhar despertou uma memória antiga, e me lembrei de uma vez, há muito tempo, em que levei um gato doente que tava largado na rua pra ser tratado no veterinário.
É… a Kashima Kobato foi comigo.
Ela ficou com o gato depois que ele melhorou — minha mãe adotiva era alérgica, então eu não podia levar ele pra casa. Quando olhei nos olhos do gato ao sair da clínica veterinária, ele parecia tão assustado.
— Obrigado por me salvar… — ele parecia dizer. — Mas o que eu faço agora?
O gato não usava coleira — devia ser de rua. Agora estava sozinho no mundo, sem nenhum outro gato pra ajudar. Provavelmente vagou sozinho por um bom tempo até ficar fraco o suficiente pra precisar de ajuda. Eu sentia uma conexão estranha com ele agora, até mais do que naquela época.
Assim como eu e você, parceiro.
— Você é igualzinho a mim…
Sozinho, inútil, rejeitado…
— Um excluído.
Quando Kashima Kobato concordou em adotar o gato, eu fiquei muito grato a ela.
Alguns dias depois fui agradecer, mas ela desviou o olhar de forma meio desajeitada e saiu andando. Não achei que fosse algo pessoal. Kashima sempre foi meio na dela e nunca falava com os caras da sala. Acho que ela só não sabia como reagir.
No fim, deixei pra lá.
Talvez um dia ela venha falar comigo de novo, vai saber. Desde que ela não me odeie por algum motivo que eu desconheça… se for isso, acho que nunca seremos amigos. Mas não tem por que apressar — amizade não se força. Melhor deixar as coisas crescerem com o tempo.
Meus pais adotivos me ensinaram isso, e sempre levei esse conselho comigo.
Eu estava sentado sob uma árvore, mastigando um katsu.
Minha bolsinha de couro tinha terminado o tempo de recarga, então decidi almoçar. O slimezinho se mexia ao meu lado, olhando curioso para a embalagem retangular. Era um salgadinho de tonkatsu que eu comia de vez em quando no mundo antigo — não era ruim.
Crosta crocante por fora, recheio mastigável com gosto de peixe… e um molho intenso cobrindo tudo. Macio e duro, salgado e doce — os sabores e texturas dominavam meus sentidos e me sobrecarregavam.
Não era muita coisa, mas era satisfatório. Dei uns goles de chá verde refrescante pra empurrar.
— Aaah…
Aqui na superfície, era mais fácil comer e beber sem se preocupar tanto com o quanto restava. Olhei pra última mordida de katsu que restava na embalagem.
— Quer um pouco? — Estendi a comida pro slime. Ele se esticou um pouco em resposta.
— Squii…?
— Hm? Tá conferindo se pode?
O slime ficou verde — sinal de “sim”.
— Pode pegar, é toda sua.
Ele esticou um tentáculo gosmento e pegou a comida da minha mão. Absorveu dentro do corpo translúcido, e eu vi o pedaço começar a derreter lá dentro.
Hmm… então é assim que ele come?
— Squee!!
Ele ficou cor-de-rosa — o sinal de felicidade. Pelo visto, gostou mesmo.
Eu tinha feito alguns testes com o slime antes do almoço pra ver se a gente conseguia se entender. Ele parecia entender rápido minhas intenções, mesmo sem entender as palavras. E ele também conseguia se comunicar comigo. Verde era “sim”, vermelho “não” e rosa “feliz”. Essas eram as três cores que eu tinha descoberto até agora, mas já era um começo.
Slimes eram criaturas muito mais expressivas do que eu esperava. Mesmo sem uma linguagem comum ou um rosto, ainda assim eu conseguia entender o que o pequeno tentava me dizer.
Talvez até melhor do que eu entendia as pessoas, pra ser sincero.
Só dependia de deixarem ou não um monstro entrar num povoado humano…
Esse problema se resolveu quando o slime me mostrou que conseguia se esticar como uma corda fina. Ele subiu e se escondeu dentro das minhas vestes.
— Contanto que ninguém na cidade perceba a presença de um monstro, devemos ficar bem.
Havia outra vantagem em ter um slime escondido nas roupas. Quando me levantei, seu corpo escorregadio subiu pela minha perna e apareceu na gola da roupa, atrás da minha cabeça.
— Squee!
— Pode ficar de olho nas minhas costas?
— Squee!
Um tentáculo gosmento se esticou por trás da minha cabeça, onde eu conseguia ver. A ponta ficou verde, sinal de “sim”.
— Beleza…
É uma solução temporária, mas por enquanto, ele pode cuidar da retaguarda.
— Fiz bem em deixar você ficar, parceiro.
— Squee! ♪
O slime desceu, e eu voltei a me sentar sob a árvore. Tinha outra coisa que eu queria conferir antes de seguir viagem. Peguei Artes Proibidas: A Obra Completa da bolsinha e abri o livro. O slime esticou um tentáculo pra espiar o que eu estava fazendo.
— Acho que era por aqui… — Folheei as páginas, procurando uma que lembrava de ter lido nas ruínas.
— Aqui está.
Solução de aprimoramento de monstros — experimental
Resultados dos testes:
Solução criada (evolução rápida).
Slimes → viável.
Primeiro experimento: sucesso.
Segundo experimento: sucesso.
Terceiro experimento: sucesso.
Efeitos adversos em monstros: possível aumento de hostilidade, não comprovado. Outros efeitos?
As páginas seguintes estavam cheias de anotações rabiscadas.
“...pelo contrário, os slimes se mostraram parceiros brilhantes comparados aos candidatos anteriores. Sua capacidade de compreensão e compaixão é inegável. E eles são tão fofinhos...”
Parece que o Grande Sábio achava eles úteis em seus experimentos.
— Um tipo de solução pra aprimorar monstros, hein…?
Olhei pro slimezinho.
Talvez eu pudesse usar isso pra deixá-lo mais forte.
— Será que slimes conseguem subir de nível…?
Era mais uma coisa pra investigar, mas o Grande Sábio tinha deixado uma dica. Se ele estava pesquisando uma “solução de aprimoramento de monstros”, dava pra supor que monstros tinham que contar com poções e feitiços pra ficarem mais fortes, em vez de subir de nível automaticamente como os heróis invocados.
— Mas… se a pessoa errada botasse as mãos nessa pesquisa, vai saber no que daria?
Fiquei cantarolando baixinho enquanto folheava mais páginas.
Dá pra entender por que ele chamava isso de “artes proibidas”.
Olhei com atenção pra lista detalhada de ingredientes no fim da página. Também havia uma lista de lugares onde poderiam ser obtidos — nenhum dos nomes me parecia familiar, é claro.
— Enquanto procuro alguém que saiba ler esses pergaminhos de magia proibida, acho que posso tentar entender alguma coisa por conta própria. Certo… pronto pra ir?
— Squee!
— Hmm…
Percebi que ainda não tinha um nome pra ele. O bichinho precisava de um nome.
— Squee?
Esses grunhidos dele pareciam meio com os de um leitão… e ele também era meio redondinho…
— Já sei. Piggymaru.
— Squee?
— A partir de agora, seu nome é Piggymaru. Bom, a não ser que você não goste — aí a gente muda, beleza?
— Squee!
Piggymaru ficou verde.
— Sque-ue-uee~! ♪
Depois, ficou rosa — acho que isso significava que ele tinha gostado do nome novo. Guardei Artes Proibidas: A Obra Completa de volta na minha bolsa. Tinha um monte de lixo acumulando lá por causa das comidas de loja de conveniência — eu até limpava os pacotes pra não deixar resto de comida, mas mesmo assim estava ficando tudo bagunçado.
Por sorte, nem a bolsa de couro nem o livro das Artes Proibidas tinham cheiro de nada — será que itens mágicos também se mantêm limpos magicamente? Mas, sinceramente, eu precisava de outra bolsa só pro lixo, ou pelo menos um lugar onde pudesse me livrar dele.
— Nada de jogar lixo no chão, hein? Joga no lixo certinho.
As palavras da minha mãe adotiva vieram à tona. Eu não queria sujar o mundo, a não ser que fosse extremamente necessário.
— Será que ela tá bem…?
Ela é boa demais pra esse mundo — e é exatamente isso que mais me preocupa.
— Provavelmente deve estar se preocupando comigo agora mesmo…
Foi logo depois que meus pais de sangue desapareceram que conheci meu tio e a esposa dele pela primeira vez — meus novos pais adotivos. Naquele primeiro dia, minha mãe adotiva me apertou contra o peito, com a voz e as mãos tremendo. Achei que ela estivesse com raiva de mim. As mãos do meu pai sempre tremiam quando ele ficava bravo e bêbado. A voz da minha mãe sempre tremia quando gritava comigo.
— Me desculpa por não termos percebido antes — sussurrou minha mãe adotiva.
No começo, não entendi por que ela tinha pedido desculpas. Mas, quando entendi, chorei.
Eu estava feliz. As pessoas choram de felicidade também — não é só quando estão tristes.
Foi a primeira vez que alguém demonstrou compaixão de verdade por mim.
Eu caminhava, com Piggymaru enrolado no meu pescoço e a bolsa de couro nas costas.
— Ei, Piggymaru.
O slime apareceu no meu ombro.
— Squee?
— Tudo isso que eu tô fazendo… é só vingança. É uma parada pessoal. Pode não parecer grande coisa… mas pra mim é.
Racionalmente, eu sabia que era idiota ficar tão obcecado com vingança. O que eu realmente achava que ia acontecer quando tudo acabasse?
Vingança é errada, é inútil, é perda de tempo. Tenho certeza de que muita gente pensa assim — olhariam pra mim e pros meus objetivos e achariam tudo patético.
Mas eu vou fazer mesmo assim.
E se alguém me perguntasse por quê… bem, pra mim é óbvio. Eu tô fazendo isso porque quero. Não vou parar até conseguir o que quero — até sentir que isso acabou. Dane-se esses idiotas com complexo de herói, lutando “pelos outros”, brincando de mocinhos e vilões. Nem estamos no mesmo tipo de história. Pra mim, tudo se resume a uma coisa só — meu ego.
Mas tem um tipo de justiça nessa minha vingança. Uma justiça minha — não de mais ninguém. Quem quiser me acompanhar nessa jornada vai ter que aceitar isso. Vou deixar tudo bem claro, ser direto. Se vão vir comigo ou não, a escolha é deles.
— Eu tô fazendo isso só pela minha vingança pessoal — nada mais, nada menos. Sou basicamente um egomaníaco. Você tá mesmo de boa com isso?
— Squee!
— Se quiser cair fora, é agora, parceiro. Não vou te julgar.
— Squeee!
Um tentáculo do Piggymaru saiu das minhas vestes e ficou vermelho — sinal de “não”.
— Você quer mesmo ficar comigo nessa busca por vingança?
— Squee!
O tentáculo ficou verde — sinal de “sim”.
— Beleza, então.
Acariciei gentilmente o tentáculo e dei meu primeiro passo.
Dois rejeitados em busca de vingança.
— Tô contando com você, parceiro.
— Squee! — respondeu Piggymaru, animado, ficando ainda mais verde.
Seguimos pela floresta juntos, com os galhos se quebrando sob nossos pés.
Dizem que nada de bom pode vir da vingança. Mas tudo bem. Eu não quero nada de bom. Não preciso que essa vingança dê em algo.
Na verdade, eu não vou deixar que dê.
Não vou deixar isso sair do controle.
— Quando estiver pronto… vou atrás de você. E não vou parar até que esteja morto.
E é isso.
Deusa imunda…
— Eu vou me vingar.
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