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Chapter 01 - Vol 03: Um Caipira Velho Compra Roupas

 Capítulo 1: Um Caipira Velho Compra Roupas

Era de manhã em Baltrain. Acordei e, como não morava mais sozinho, troquei um cumprimento rápido com minha nova colega de casa, Mui. Depois disso, me vesti rápido e tomei um café da manhã leve.

— Vamos?

— Mm.

Mui e eu saímos da minha nova casa e fomos para as ruas da cidade. Nossa vida juntos tinha começado de forma bem repentina, mas estava indo surpreendentemente bem. Mui não era do tipo que tentava se aproximar dos outros, nem sabia como fazer isso. Nós dois evitávamos nos meter demais na vida um do outro, então, mesmo que ainda houvesse algumas questões logísticas sobre morarmos sob o mesmo teto, as coisas tinham se ajeitado de forma confortável.

— O tempo tá bom hoje, hein — comentei.

— Melhor do que se estivesse uma droga...

Hoje eu estava saindo com a Mui. Pra ser mais exato, era meu dever acompanhá-la até o instituto de magia. A Lucy tinha me explicado recentemente mais detalhes sobre esse lugar. O instituto de magia estava sempre recrutando pessoas com talento pra magia, então, embora tivesse uma cerimônia de entrada padrão, eles aceitavam candidatos o ano inteiro. Ficaram mais do que felizes em receber a Mui imediatamente.

O instituto já estava acostumado com esse tipo de procedimento, então a matrícula dela foi bem tranquila. Claro, a Lucy esteve pessoalmente envolvida no caso da Mui, então isso com certeza ajudou muito. Acontece que a Lucy era tanto a comandante do corpo mágico quanto a diretora do instituto. Sério, quantos títulos uma pessoa pode ter ao mesmo tempo? Mas, aparentemente, ela quase nunca aparecia no instituto. A Lucy parecia mais uma pesquisadora do que uma professora. Provavelmente era raro ela dar aula.

— Hmm, então o instituto fica no distrito norte — murmurei, olhando pro mapa que a Lucy me deu.

Diferente da sede da ordem, o instituto de magia ficava no mesmo distrito do palácio. Não que eu ligasse pra saber se a ordem ou o corpo mágico era mais antigo (ou mais influente), mas havia algo especial em uma escola ficar no mesmo distrito do palácio.

E agora, a Mui seria aluna lá. Como responsável dela, isso me deixava orgulhoso.

— Você não precisava vir junto nem nada... — Mui murmurou.

Eu sabia muito bem que situações assim podiam ser desconfortáveis ou até embaraçosas pra uma criança como a Mui. Nesse caso, achei que ela estava com vergonha. Tô começando a entender ela mesmo.

— Achei que devia ao menos cumprimentar eles como seu responsável — falei. — Além disso, tô curioso pra conhecer o instituto de magia.

— Hmph.

Tudo o que recebi de resposta foi o resmungo de sempre dela. Mui ainda era jovem. Mas como ela ia se tornar uma aluna, era natural eu ir dar um oi. Não parecia certo matricular ela e simplesmente ir embora, desejar boa sorte e empurrá-la porta afora. Fora que eu tava curioso. O instituto tinha sido criado pra que o país garantisse magos talentosos — isso era bem empolgante do ponto de vista de um espadachim.

Também queria ver onde a Mui ia ficar. Não que eu quisesse me meter, mas era bem provável que, se ouvisse falar que estavam intimidando ela, eu sairia voando até lá. Já me imaginava invadindo a escola e gritando: "Quem é que tá mexendo com a minha filha?!"

Era nesse tipo de pessoa que eu tava me tornando por causa da Mui. Suspeitava que seria ainda mais babão se tivesse um filho de sangue. Mas, pra isso acontecer, primeiro eu teria que encontrar uma esposa — e já tinha desistido disso há tempos. Só cheguei até aqui porque meu pai se recusou a me deixar desistir.

As reviravoltas da vida me deram uma casa, mas eu não fazia ideia de como seria minha vida daqui pra frente. Será que Baltrain ia realmente se tornar minha residência permanente? Pelo menos, eu ia ficar nessa casa até a Mui poder viver sozinha. Meu plano de vida depois disso era uma folha em branco. Mesmo que eu quisesse me aposentar em paz, meu pai e a Allusia provavelmente não iam deixar.

— Que foi? — perguntou a Mui.

— Ah, nada não. Vamos.

Ops, não adiantava ficar pensando nessas coisas agora. Vai dar tudo certo de um jeito ou de outro. O distrito norte ficava bem longe — eu conseguiria chegar lá, mas fazer a Mui andar tanto não seria legal. Então, decidi pegar a charrete que ia direto até lá. A essa hora, tinha bastante gente indo trabalhar, então o ponto da charrete estava bem movimentado. Gente de todo tipo subia pra descer em lugares diferentes.

— Opa, com licença.

Quando entrei na charrete com a Mui, quase não tinha espaço pra ficar de pé. Já tinha andado de charrete algumas vezes desde que cheguei a Baltrain, mas era a primeira vez que via uma tão cheia. Fiquei preocupado se a Mui tava bem.

— Nossa, tá lotado aqui — murmurei.

— Muito apertado... — ela reclamou, fazendo uma careta.

Hmm, parece que as charretes ficam lotadas mesmo a essa hora. O instituto tinha dormitório, então os alunos geralmente ficavam lá, o que significava que a Mui não teria que enfrentar esse aperto com frequência. Provavelmente ia ficar tudo bem. Eu sabia que tava sendo superprotetor, mas já era tarde demais pra mudar isso. A Mui passou a vida inteira num mundo sombrio, então ela era praticamente novata em viver à luz do dia. Ela nem tinha educação suficiente pra escrever o próprio nome direito. Não tinha como deixar uma garotinha dessas sozinha. Me perguntei se ela faria amigos na escola, se iria se sair bem nos estudos...

Enquanto esses pensamentos paternos enchiam minha cabeça, a charrete chacoalhava e sacolejava até nosso destino.

— É grande mesmo...

— Mm...

Logo chegamos ao instituto de magia. Eu não ia ao distrito norte desde que capturamos o Reveos, mas tudo parecia bem diferente com o sol brilhando. Junto com o céu limpo, as torres do palácio real eram um espetáculo e tanto. Pra chegar ao instituto, tivemos que andar um bom pedaço desde o ponto da charrete no distrito norte. Ainda assim, nosso destino não era tão longe — dava pra Mui esticar as pernas e fazer um pouco de exercício.

Tínhamos seguido o mapa e os cartazes até encontrar o lugar, e ele era gigantesco — ocupava um terreno tão grande que me perguntei se não rivalizava com o palácio. A entrada era ladeada por um grande portão, e através dele eu via um jardim imenso que levava até o que parecia ser o prédio principal da escola. À direita havia um espaço amplo, que parecia um campo de esportes, e à esquerda deviam ficar os dormitórios. É, com certeza é enorme. Quantos alunos será que estudam aqui? Pode parecer presunçoso comparar, mas o meu dojô de interior é de outro mundo em relação a isso aqui.

— Vamos entrar e dar um oi? — perguntei para a Mui.

— Mm...

Depois de ter vindo até aqui, não podia deixar meu lado caipira dar as caras. Ainda mais acompanhado de uma garotinha que precisava da minha orientação — não dava pra ficar parado feito bobo. Primeiro, eu precisava ir até a sala dos professores ou algo do tipo... provavelmente. Eu tinha um mapa para achar o prédio, mas não fazia ideia de onde ir depois disso. Também não adiantava ficar plantado ali. Provavelmente eu encontraria algum professor lá dentro, explicaria a situação e pediria que nos guiasse.

Foi nesse momento, enquanto esse pensamento me passava pela cabeça, que ouvi uma voz atrás de mim.

— Por acaso vocês seriam a nova aluna transferida e seu pai?

Olhei rapidamente para os lados, mas não havia mais ninguém por perto. Ainda assim, a voz parecia estar falando com a gente. Quando me virei por completo, dei de cara com uma mulher usando uma túnica parecida com a da Ficelle. Tinha mais ou menos a mesma altura e idade da Allusia — talvez um pouco mais velha. Seu rosto gentil e o cabelo ondulado davam a ela uma aparência bem amigável.

“A aluna transferida e seu pai”, hein? Será que parecemos isso mesmo? Bom, pelo menos foi melhor do que nos confundirem com sequestradores. Na verdade, até me senti tocado por sermos vistos assim por um estranho. Olhei para a Mui pra ver como ela tinha reagido. Ela ficou um pouco sem jeito, mas não parecia estar rejeitando a ideia. Já estava de bom tamanho pra mim.

— Uhm, e você é...? — perguntei.

— Me desculpe — respondeu a mulher. — Meu nome é Kinera Fyne. Sou professora aqui no instituto de magia.

— É um prazer. Eu sou o Beryl, e essa aqui é a Mui.

Então ela era professora. Que sorte. Assim ela podia nos guiar.

— Como você deduziu, a Mui vai estudar aqui no instituto — expliquei. — Trouxe ela hoje, mas fiquei meio impressionado com o quanto o lugar é magnífico.

— Oh, céus — disse Kinera, soltando uma risadinha. — O instituto de magia é, de fato, o edifício mais grandioso de Baltrain.

A Ordem de Liberion era cheia de gente do tipo guerreiro, como a Allusia e o Henbrits. Já aqui no instituto de magia, as pessoas pareciam ser mais refinadas. Não que os cavaleiros fossem grosseiros ou algo assim — mas empunhar espadas sempre envolvia sangue, então não costumava atrair gente com temperamento dócil. Nesse aspecto, a Kinera exalava uma aura bem suave. Se alguém como ela fosse responsável pela turma da Mui, parecia que minha pequena ia conseguir baixar as garras e ter uma vida escolar tranquila.

— Gostaria que eu mostrasse o caminho? — ofereceu Kinera.

— Isso seria de grande ajuda — respondi. — Eu não fazia ideia de onde ir ou quais eram os procedimentos certos.

— P-Por favor... — acrescentou Mui, toda durinha. Não sabia bem o que dizer, que expressão fazer ou que tom usar, mas ainda assim tentou. Mui é mesmo uma graça.

— Hee hee, não precisa ficar tão nervosa! — disse Kinera. — Todos os alunos aqui são muito bons.

— Sei lá... Ah, quer dizer, tá bom... — corrigiu-se Mui. Provavelmente estava pensando que precisava melhorar a forma de falar. O esforço dela era tão fofo que fez esse velho aqui sorrir.

Segundo a Lucy, o instituto não se importava com a origem dos alunos, desde que tivessem talento para magia. Em outras palavras, devia ter bastante criança bagunceira matriculada, mesmo que nenhuma fosse tão barra pesada quanto a Mui. A Kinera parecia acostumada a lidar com esse tipo de aluno, então parecia tranquilo deixar as coisas nas mãos dela. Mas se acontecer qualquer coisa, eu ainda vou aparecer voando por aqui.

Com isso, nós três começamos a andar pelos terrenos do grande instituto de magia.

— Realmente é grande — comentei.

— É sim. Alunos novos às vezes até se perdem por aqui.

Kinera nos guiava pelo prédio da escola. No momento, estávamos no primeiro andar. Me perguntava quantos andares havia no total. Do lado de fora, parecia ter pelo menos quatro. Considerando o tamanho absurdo só deste andar, era natural que alguns estudantes se perdessem.

— Você vai ter que se acostumar rápido com o lugar, Mui — comentei.

— Eu vou ficar bem... acho — disse Mui. Começou confiante, mas foi murchando no fim e falou com um tom bem tímido.

Ela olhava encantada para os cenários desconhecidos à nossa volta. Era pedir demais esperar que alguém se acostumasse com um lugar tão grande em um só dia. Eu mesmo duvidava que conseguiria. As saídas do prédio até eram fáceis de encontrar, mas localizar lugares específicos ali dentro parecia muito mais difícil.

— Bom dia, professora Kinera!

— Bom dia.

Os alunos cumprimentavam Kinera enquanto passávamos pelos corredores, e ela retribuía todos os cumprimentos. Eu só acenei de leve com a cabeça pra cada um, porque sinceramente, não fazia ideia de como agir nessa situação. Já a Mui desviava o olhar, toda sem jeito, e mantinha a cabeça baixa.

Será que ela vai ficar bem? Vai conseguir fazer amigos? Esse velhote aqui tava um pouco preocupado.

— São todos muito bem-educados — comentei.

Os alunos de fato demonstravam boas maneiras. Faziam questão de nos cumprimentar e acenar também. Como essa era uma escola antiga e influente, provavelmente eles também recebiam educação em etiqueta.

Dando uma olhada rápida nos estudantes que passavam, vi alunos de todas as idades — alguns até mais novos que a Mui, outros bem mais velhos. Nunca dava pra saber quando o talento de um mago ia florescer, então a idade não parecia ser um critério muito relevante. Nesse sentido, a Mui provavelmente conseguiria se encaixar. Quando a idade e o gênero são muito concentrados, geralmente fica difícil pra quem vem de fora se enturmar.

—Essas crianças podem se tornar magos que representarão a nação — explicou Kinera. — A educação em boas maneiras faz parte do currículo aqui.

—Entendi.

Minha suposição estava certa. Bom, era natural. A Ordem de Liberion e o corpo mágico representavam todo o país de Liberis. Os cavaleiros davam ênfase à força física, enquanto o refinamento era mais visível entre os magos. Não que força física sozinha fosse suficiente pra entrar na ordem.

—Ah, sim. Mui, você já decidiu qual será sua especialização mágica? — perguntou Kinera.

—Especialização... mágica? — Mui repetiu, olhando pra ela com confusão.

O termo também não fazia sentido pra mim. Lucy nunca havia mencionado isso.

—Ah, me desculpe — disse Kinera. — A magia geralmente é classificada em algumas categorias diferentes. A maioria das pessoas tem afinidade com uma ou outra, e também têm áreas em que não se saem tão bem.

—Hmmm, então é assim que funciona — comentei. A magia realmente parecia com qualquer outro campo de estudo, e o sistema ali parecia semelhante ao de outras formas de educação formal.

—Tudo o que consigo fazer é criar fogo — respondeu Mui, timidamente.

—Nesse caso, você pode ter aptidão pra magia ofensiva — disse Kinera.

Agora estávamos entrando em uma parte mais técnica do assunto. Oficialmente, eu era o pai de uma garota matriculada no instituto mágico, então talvez fosse hora de fazer algo sobre minha ignorância com relação à magia. Talvez eu possa pedir pra Lucy me ensinar mais alguma coisa depois. Ela era bem ocupada... então eu só perguntaria o básico, se algum dia encontrássemos tempo.

—Perdoe a pergunta, mas o senhor tem familiaridade com magia, Sr. Beryl? — perguntou Kinera.

—Ah, de forma alguma — respondi. — Tenho até vergonha de dizer, mas não sei nada sobre isso. Como pode ver, tudo o que sei é empunhar uma espada.

Toquei a bainha na minha cintura. Era meio tarde pra pensar nisso, mas comecei a me perguntar o quanto meu título de instrutor especial significava diplomaticamente. Ele vinha com o selo real do rei, então duvidava que tivesse sido algo jogado ali por acaso. Eu realmente não sabia como essas coisas funcionavam.

—Entendo. Por favor, perdoe a indelicadeza da pergunta — disse Kinera. — Nunca se sabe onde o talento para magia pode florescer, afinal.

—Tudo bem — respondi. — Não precisa se desculpar.

Ela estava falando como se um velho como eu ainda tivesse chance de desenvolver talento pra magia. Seria um pouco problemático despertar algo nessa idade. Pra ser sincero, já estava mais do que satisfeito em seguir a busca tranquila pela espada.

—O instituto de magia também oferece cursos de magia com espada, mas sinceramente, não há muitos que a pratiquem — acrescentou Kinera. — Seria bom se mais alunos se interessassem por essa vertente no futuro.

—Hmmm, magia com espada, é?

A primeira pessoa que me veio à mente foi a Ficelle. Bom, ela era a única que eu conhecia. Como esperado, não havia muitos magos que seguiam essa vertente.

—A Ficelle, em particular, é— — Kinera parou por um momento antes de continuar. —Ah, a Ficelle é uma ex-aluna do instituto. Ela é extremamente talentosa com magia de espada — disse Kinera.

—Então a Ficelle está indo bem... — Nunca pensei que ouviria falar da minha antiga pupila aqui. De certo modo, foi comovente.

—Hã? U-uhm... O senhor conhece a Ficelle? — perguntou Kinera, com um leve tom de surpresa na voz.

—Sim — respondi. — Acontece que fui eu quem ensinou ela a usar uma espada.

—Oh, meu Deus! — Kinera exclamou, subitamente bem mais empolgada. —Ah, uhm... Me perdoe.

—Não tem problema — disse a ela. — Não achei indelicado.

No momento seguinte, Kinera cruzou os braços ao redor do próprio corpo e corou. Eu não fazia ideia de como reagir àquilo.

—A magia de espada da Ficelle é tão fluida... — disse ela. — Sempre acreditei que ela devia ter tido um bom instrutor.

—Ha ha ha... Você está me bajulando...

Se uma funcionária do instituto estava falando tudo isso, então talvez a Ficelle realmente estivesse realizando feitos absurdos... mesmo sendo tão preguiçosa o tempo todo. Nunca se pode julgar um livro pela capa. E por algum motivo, eu estava sendo elogiado pelos feitos dela também. Era meio embaraçoso.

—D-De qualquer forma, fiquei curioso sobre essas classificações de magia que você mencionou — falei.

Achei que Kinera estava começando a me olhar com um brilho meio estranho nos olhos, então tratei de mudar de assunto. Talvez eu estivesse começando a me acostumar com meus alunos me elogiando... Não, mentira. Ainda não tinha me acostumado, então quando um estranho começava a cantar meus feitos, meu corpo inteiro ficava arrepiado. Eu me sentia muito mais envergonhado do que feliz.

—Certo, as classificações — disse Kinera. — A magia geralmente pode ser classificada como ofensiva, defensiva, de cura, de reforço e de utilidade doméstica. Mas existem magias que se encaixam em mais de uma categoria e outras que simplesmente não se encaixam em nenhuma.

—Hm...

Era mais tipos do que eu imaginava. O fato da Mui conseguir criar fogo indicava que ela podia se especializar em magia ofensiva. No entanto, Lucy já havia me dito uma vez que toda essa magia, conhecida como feitiçaria neste país, não correspondia nem a um por cento de toda a magia existente. A educação mágica era realmente um poço sem fundo de aprendizado.

—Para começar, desenvolvemos o conhecimento dos alunos ensinando os fundamentos de todos os tipos de magia — continuou Kinera. — Depois disso, os estudantes seguem para uma especialização.

Kinera parecia ser uma pessoa muito atenciosa, o que combinava com a primeira impressão que tive dela. Ela era gentil com todos e muito sincera. Não pude deixar de pensar que o mundo seria um lugar bem mais pacífico se todos fossem como ela.

E assim, após ouvirmos um pouco mais sobre magia e sobre o instituto, chegamos a uma sala onde os professores da escola estavam reunidos.

—Chegamos — anunciou Kinera. — Esta é a sala dos professores. Você está com os documentos de transferência?

Eu me lembrava de ter assinado os documentos de transferência, mas deixei tudo por conta da Lucy. Ela ficou com os papéis, então espero que tenha trazido eles para o instituto. Só falta me dizer que ela esqueceu...

— Obrigado por nos mostrar o caminho — eu disse. — Quanto aos papéis, a Lucy... ahm, a diretora cuidou disso pra gente.

— É mesmo? Entendo. Vou confirmar depois — disse Kinera. — Ainda preciso explicar o processo de matrícula e os dormitórios, então venha comigo, Mui. E você, Sr. Beryl, o que vai fazer?

— Hmmm...

Talvez fosse melhor eu ficar por aqui? Mas se eu não ficar, posso perguntar tudo pra Mui depois também.

— Os pais geralmente ficam pra ouvir — acrescentou Kinera. — Acho que é natural se sentirem inseguros ao deixar seus filhos sob os cuidados de outros.

— Então vou ouvir também.

Seria mentira dizer que eu não me importava. Mas isso não tinha nada a ver com ser um pai superprotetor. Já que estava ali, talvez fosse bom mencionar que a Mui e eu temos sobrenomes diferentes? Eles já devem ter visto isso nos documentos. Mas, sinceramente, eu não fazia ideia de com quem deveria falar sobre nossa situação... ou quanto deveria contar.

— Eu posso ir sozinha... — Mui protestou baixinho, sem jeito por eu continuar grudado nela.

— Ha ha ha, vai, só tô um pouquinho curioso — falei pra ela.

— Hee hee. — Kinera abafou uma risadinha.

— Hm? Tem algo engraçado? — perguntei. Será que tinha alguma coisa engraçada? Fora a Mui sendo fofa, não pensei em nada.

— Nada, não! É que você foi bem direto — disse Kinera.

— Aah... Foi mal.

Isso foi meio constrangedor. Eu estava tentando ao máximo manter uma postura educada e adequada, mas não era fácil segurar isso por muito tempo. Meu teatro desmoronou rapidinho.

— Por favor, entrem — disse Kinera. — Vou explicar tudo em detalhes.

— Ah, certo. Vamos, Mui.

— Cala a boca. Já entendi.

Toquei a Mui pra que se apressasse, tentando mudar de assunto, e ela respondeu na lata. Mesmo vendo isso, Kinera não disse nada. Espero que ela tenha entendido que a Mui só tem um temperamento mais forte. As palavras dela podiam ter espinhos, mas ela não era uma pessoa rude por natureza.

De qualquer forma, mesmo com tudo o que aconteceu, nunca imaginei que um dia eu andaria pelos corredores do Instituto de Magia. O mundo era mesmo imprevisível. Ao entrar na sala, alguns adultos que pareciam professores lançaram um olhar na nossa direção. Mas logo voltaram ao trabalho, como se já estivessem acostumados a visitantes. Fiquei aliviado por não encararem a gente de forma esquisita—já bastava os olhares tortos desde que cheguei a Baltrain. Mas isso era culpa da Allusia, da Selna e da Lucy, na verdade.

— Por favor, sentem-se.

Kinera nos guiou até uma área de recepção num canto da sala. Mui e eu nos sentamos num sofá bem-feito. Era bem confortável. Tudo ali passava uma sensação de qualidade. Ok, hora de prestar atenção. Isso envolve o futuro da Mui, afinal.

Depois de recebermos a explicação completa da Kinera, deixamos o Instituto de Magia. Quando passamos novamente pelo portão, o sol já estava alto no leste. Quase hora do almoço. Enquanto caminhávamos de volta pra casa, fiquei pensando no que faríamos pra comer.

— Entendeu tudo, Mui? — perguntei.

— Hmph. Eu não sou burra.

A maior parte do que ouvimos no instituto eram coisas básicas. Kinera nos explicou sobre o currículo geral da escola, como os quartos dos dormitórios eram designados, como funcionava o toque de recolher, e outros fundamentos importantes. Um ponto importante: os alunos não eram obrigados a morar nos dormitórios. Como o único instituto do país ficava em Baltrain, os dormitórios existiam pra permitir que alunos de fora da capital pudessem estudar ali. Quem morava nas redondezas podia, sim, ir e voltar de casa. Mas os pais de crianças com potencial mágico costumavam ser muito cuidadosos com o ambiente dos filhos, então muitos preferiam se inscrever pros dormitórios. A Lucy também comentou algo sobre isso... custava nada ter explicado melhor, né? Ela era rápida pra agir, mas às vezes, bem desleixada nos detalhes.

— Enfim, quer achar um lugar pra almoçar? — sugeri.

— Mm.

A gente só veio aqui hoje pra dar um oi e entender como tudo funcionava. A Mui só ia começar de verdade na semana seguinte. Era bom ter um tempo pra processar tudo mesmo, então o timing tava ideal.

— Aliás, você tem certeza mesmo? — perguntei enquanto andávamos pela região norte, relativamente calma.

— Certeza do quê? — Mui respondeu, um pouco desconfortável.

— De não usar os dormitórios.

— Tanto faz... Eu posso muito bem ficar em casa e ir pro instituto todo dia.

Mui decidiu não usar os dormitórios. Tinham dito que era opcional, então, pra mim, tudo certo. Mas como a maioria das crianças optava por morar lá, viver no instituto devia ser considerado um privilégio. Mesmo que o trajeto não fosse tão longo, morar no campus economizaria tempo, o que ajudaria ela a se concentrar nos estudos. Além disso, os dormitórios ofereciam tudo que ela precisaria no dia a dia. Não que em casa fosse muito diferente, mas ter alimentação garantida era um baita bônus.

Agora que estávamos morando juntos, provavelmente dividiríamos as tarefas domésticas. Eu não tinha a menor intenção de jogar tudo nas costas de uma criança, claro, mas também seria estranho se a Mui não fizesse absolutamente nada. Ia pedir a ajuda dela com isso. E o trajeto até o instituto não era tão leve assim. Eu considerava minha caminhada até o escritório parte da minha rotina de exercícios, então, pra mim, era de boa. Mas pra uma criança, era normal querer evitar o que parecesse uma perda de tempo.

— Qual é...? Você tem algum problema com eu querer ficar em casa? — Mui perguntou, meio irritada.

— Ah, não. Se você tá de boa com isso, por mim tudo certo.

Definitivamente não era um problema. Já morei com outras pessoas antes, então sabia que ia dar certo de algum jeito. Mui também já tinha morado com a irmã. Mas o fato de ela poder ter escolhido os dormitórios e ainda assim querer morar comigo... deu um certo comichão. No fim, não adiantava nada ficar interrogando a menina por causa disso. Eu aceitei aquela casa justamente com a ideia de morarmos juntos desde o começo. Então, decidi só aproveitar o que a vida tinha pra oferecer.

—Você tá de boa com isso? —perguntou Mui.

—Hm? Com o quê?

—Uhm... Você tinha trabalho hoje também, né?

Ah, isso? Eu não era burro a ponto de faltar ao trabalho sem avisar ninguém. Nessa idade, era difícil conquistar a confiança das pessoas, e só levava segundos pra perdê-la. Por isso, já tinha conversado com a Allusia sobre minha ausência. Contei tudo sobre conseguir uma casa e morar com a Mui. Na hora, o rosto dela pareceu perder toda a expressão por um instante, mas decidi não dar bola pra reação.

—Não se preocupa —respondi. —Ajustei meu horário.

—Sei lá... acho que tudo bem...

Além do mais, não era como se eu tivesse obrigação de aparecer todo dia. O plano original era que eu viesse pra Baltrain de tempos em tempos, então eles não estavam esperando um cronograma apertado da minha parte. E sinceramente, depois que meu pai me chutou de casa, minha agenda virou uma bagunça total — fui eu quem decidiu ir à ordem todo dia.

—Hoje é meu dia de folga —expliquei. —Seu futuro é mais importante, Mui.

—Hmph.

Soou meio brega, né? Mui bufou e virou o rosto de novo. Ainda assim, eu tava planejando passar no escritório mais tarde, quando as coisas estivessem mais calmas. Balançar uma espada todo dia já era costume, então pelo menos isso eu queria manter.

—Ah, falando nisso, sobre o almoço —disse eu enquanto a carruagem seguia pro distrito central —, tem algo que você queira comer?

—Tanto faz...

Era o que eu esperava. Mui não era do tipo que se impunha ou fazia questão de gostos próprios — ela quase nunca se comportava assim. Não sabia se era por causa da criação dela ou se ela só tava sendo reservada comigo. Provavelmente o primeiro. Ela não tinha vivido uma vida onde podia ser exigente com comida.

Mas, já que eu tinha uma graninha guardada e estava ganhando bem, não ia deixar a Mui viver na pobreza. Tava preparado pra lidar com um certo nível de “caprichos”. Só que, mesmo que eu deixasse isso claro pra ela, não era do tipo que ia concordar fácil. Só podia mudar o jeito dela pensar aos poucos, conforme a gente fosse vivendo junto.

—Vamos só achar um restaurante qualquer —sugeri.

—Mm.

A carruagem continuava sacolejando pelo caminho. Decidi descer no próximo ponto e escolher o restaurante que chamasse minha atenção. Ia ser perda de tempo ficar decidindo demais. Além disso, se não formos exigentes, Baltrain tá cheia de restaurantes. Especialmente no distrito central. Isso mostrava quanta gente vivia aqui e como a cidade era próspera. Era mais uma lembrança de quantas vezes eu já tinha notado como a capital era diferente de Beaden.

Pouco tempo depois, a carruagem chegou ao distrito central. Paguei a tarifa e descemos. O ar estava tomado por uma confusão bem diferente de quando saímos de manhã.

—Ah, e que tal ali? —perguntei.

—Tanto faz.

Baltrain era uma cidade grande, planejada com todo o cuidado pela administração do país. Vários comércios se espalhavam pelas ruas bem pavimentadas. Era mais ou menos meio-dia, e dava pra ouvir vozes animadas vindo de vários prédios. Um deles tinha uma faixa que chamou minha atenção — parecia uma loja de embutidos. Eu gostava bastante de linguiça, então decidi que aquilo seria nosso almoço.

—Com licença —disse ao entrar.

—Sejam bem-vindos! —respondeu uma voz amigável.

Era hora do almoço, então o lugar estava cheio. Se nosso grupo fosse maior que eu e a Mui, talvez nem conseguíssemos lugar. Fiquei procurando onde sentar. Já que a Mui estava comigo, queria evitar dividir mesa grande com estranhos, se possível. Foi então que uma das clientes levantou a voz.

—Hm...? Mestre?

—Hã? Ora, se não é a Selna. Que coincidência.

Era Selna Lysandra, do rank negro da guilda dos aventureiros. Parece que ela tinha chegado pouco antes da gente. Vi que ela estava prestes a atacar um prato de linguiça.

—Querem se sentar? —ofereceu ela. —Se não se incomodarem de dividir a mesa comigo, claro.

—Claro, vai ajudar bastante —respondi. —Valeu.

Comida sempre fica melhor com rostos conhecidos ao redor, então aceitei na hora.

—Hã... Mestre? Quem é essa garota? —perguntou Selna, olhando pra Mui.

—Aah...

Droga. Agora que pensei nisso, fazia tempo que eu não via a Selna, então não contei nada sobre a casa nem sobre a Mui. E agora, o que eu faço? Bem, o jeito é ser honesto.

—Se importa se a gente se sentar primeiro? —perguntei.

—Ah, sim, claro.

Selna me lançou um olhar estranho, mas era de se esperar. Não devia ser comum ver um caipira recém-chegado do fim do mundo aparecer do nada com uma criança a tiracolo. Mas, enfim, a gente estava ali pra comer. A conversa podia rolar depois.

Me acomodei e Mui sentou do meu lado. —Hmm, por onde eu começo...? —disse, levando a mão ao queixo.

—Imagino que tenha alguma história complicada aí no meio —comentou Selna.

Ela percebeu que alguma sequência inevitável de eventos tinha me levado a conhecer a Mui. Fiquei grato pela sensibilidade dela. Talvez aventureiros de alto nível precisassem mesmo ter esse tipo de percepção. Mas já que íamos comer juntos, decidi apresentar as duas, pelo menos.

—Bom, deixa eu te apresentar —disse. —Essa é a Mui.

—Oi... —Mui respondeu baixinho, abaixando a cabeça.

Ela não era muito acostumada a interagir com as pessoas, mas quando começasse a ir à escola, ia se familiarizar com essa situação mais do que gostaria. Talvez eu devesse ensinar a ela como cumprimentar os outros.

—Sou Selna Lysandra. Já estive sob os cuidados do Mestre Beryl.

Selna parecia saber bem como lidar com a Mui — agiu com naturalidade. Mas sua voz estava só um pouquinho mais séria do que quando falava comigo.

—Vamos ver... —fiquei pensativo por um momento. —Pra ir direto ao ponto, virei o responsável por ela. Estamos morando juntos agora.

—Pfff!

—Whoa?!

Selna cuspiu a bebida. — Ei! Não precisa ficar tão chocada assim. Felizmente, ela quase não tinha nada na boca, então ninguém acabou sendo atingido.

— Hak! M-Me perdoe... — murmurou Selna.

— Tá tudo bem. Foi mal por te assustar. — Ainda me perguntava se eu tinha dito algo tão surpreendente assim.

— A-Aliás, a Sitrus sabe disso? — ela perguntou.

— Claro que sabe.

Allusia conhecia a Mui e sabia um pouco da situação dela, então contar pra ela foi bem tranquilo.

—B-Bem, não é da minha conta me intrometer, mas... — disse Selna, se virando pra Mui. — Ei, você aí.

—O-O quê?

A expressão e o tom da Selna ficaram bem mais sérios do que antes. Se alguém que não conhecesse ela visse aquele olhar, provavelmente ficaria assustado, mas a gente tinha acabado de ver ela cuspindo a bebida. Além disso, eu conhecia a Selna desde que era uma garotinha, então achei esse jeito dela até meio charmoso.

—Não incomode o Mestre Beryl — disse Selna, com um olhar afiado.

—J-Já entendi... — respondeu Mui, encolhendo os ombros.

—Ha ha ha, pega leve com ela, Selna.

Selna era uma adulta com uma expressão meio assustadora no momento — com certeza assustou a Mui mais do que precisava. A Mui ainda era bem jovem, então eu queria que a Selna desse um desconto. Eu estava tentando ser atencioso à minha maneira, e queria que a Mui pudesse relaxar.

—Enfim, vamos comer alguma coisa. — Me virei para o atendente. — Com licença, vou querer o prato de linguiça.

—Já vem!

Eu tinha vindo ali pra isso mesmo, então é claro que pedi linguiça. Já tinha comido no bar perto da antiga estalagem, mas agora queria ver como um lugar especializado se saía. Ia saborear cada pedaço.

Sem muito o que fazer até a comida chegar, puxei conversa com a Selna. — E aí, como você tem passado?

Selna deu uma mordida generosa na linguiça e tomou um gole d’água. — Tô bem — respondeu. — Tenho passado a maior parte do tempo caçando monstros nos arredores da capital. É a época, então não tem muito o que fazer.

—Bom saber. Mas o que você quer dizer com “a época”?

Fiquei um pouco curioso. A distribuição dos monstros era complicada e meio aleatória. Espécies grandes e pequenas viviam na natureza, em áreas que muitas vezes se sobrepunham. Mesmo em Beaden, tinha feras e animais que apareciam dependendo da estação. Eu era meio ignorante quanto a isso na região de Baltrain, então queria aprender mais. Não que eu quisesse sair por aí caçando monstros, claro. Era só curiosidade de quem vive pela espada.

—Você não sabe? — perguntou Selna. — A delegação de Sphenedyardvania vai visitar a capital em breve.

—Hmm?

Achei que a atividade dela tinha a ver com o comportamento dos monstros, mas aparentemente não era isso. Selna me olhou com curiosidade. Eu não tinha uma impressão muito boa de Sphenedyardvania depois dos últimos acontecimentos, mas esse gosto amargo tinha vindo dos cavaleiros da igreja, não do país em si. Isso eu entendia.

—Eles vêm todo ano pra fortalecer as relações — explicou Selna, ainda mastigando a linguiça. — Então nós, aventureiros, ajudamos a manter a segurança pública.

—Entendi.

Mesmo que a guilda dos aventureiros não fosse ligada a nenhum país específico, ela não podia simplesmente ignorar esse tipo de coisa, já que operava internacionalmente. E Liberis tinha feito um pedido oficial de ajuda pra guilda — não pelo país, mas pra manter a ordem.

—Isso quer dizer que os cavaleiros vão estar envolvidos nessa visita? — perguntei.

—Com certeza — respondeu Selna. — Como você vai se encaixar nisso, aí já depende da Sitrus.

Se eu pudesse, queria ficar bem longe disso — um velhote do interior recebendo VIPs não me parecia nada agradável. Só queria viver em paz, ensinando os outros a usar uma espada. Mas agora que tinham me dado esse título exagerado de instrutor especial, parecia que as coisas não iam sair como eu queria. Me poupem. Nem roupa de cerimônia eu tenho.

—Aqui está seu prato de linguiças.

Enquanto conversávamos sobre essas coisas, a comida chegou. Parecia deliciosa. Veio num pratão — vários tipos de linguiça, algumas assadas, outras cozidas, tudo muito bem arrumado. Só de olhar já dava fome.

—Vamos comer. Anda, Mui, manda ver.

—M-Mm... — respondeu Mui, ainda meio nervosa.

Comecei pela linguiça cozida. Quando mordi, a carne macia soltou um monte de suco. Era assim que carne devia ser. A Mui ainda estava um pouco tímida, mas acabou pegando o garfo, cutucando a linguiça e dando uma mordidinha. Isso aí, come bem e cresce saudável.

—Ah, é mesmo. A Mui vai estudar no instituto de magia — comentei.

—Hmm? Vai virar uma maga, é?

O olhar da Selna mudou um pouco ao encarar a Mui. Mais precisamente, parecia que ela passou a ver a garotinha como uma garotinha com potencial. Bom, talvez não seja uma mudança tão grande assim. Mas que olhar agressivo é esse, Selna?

—O instituto de magia é bem competitivo — disse Selna. — A coisa lá é braba.

—Ugh... J-Já sei... — murmurou Mui.

—Ei, ei — interrompi. — Não assusta ela desse jeito.

Era verdade — o instituto reunia só os melhores. Num mundo onde talento é tudo, a competição era inevitável. Mas Selna, não precisa botar tanta pressão numa garotinha dessas. Até eu fiquei com medo do quanto você soa convincente.

—Mesmo que seja só no papel, agora ela é sua descendente direta — continuou Selna. — Tem que manter isso em mente.

—Sério, o que vocês veem em mim...? — Selna e Allusia botavam expectativa demais em mim. Chamar a Mui de minha descendente direta soava grandioso demais.

—Bom, eu sei que o velhote aqui é super forte... — disse Mui.

—O... velhote...? — repetiu Selna num tom ameaçador.

—Eep! — Mui estremeceu e se encolheu.

—Ei, ei. Já deu, né?

Vamos lá, para com essa pressão estranha. Ela pode me chamar do jeito que quiser. Só quero bater papo e almoçar em paz. Por que o clima tá ficando tão pesado aqui?


Parecia que a gente não ia conseguir fazer uma refeição tranquila daquele jeito, então tentei mudar o rumo da conversa o mais rápido possível.

— Deixa isso pra lá, Selna.

— Como desejar. Me perdoe... Eu simplesmente não consegui me segurar.

Como assim “não conseguiu se segurar”? Agora que fiquei confuso. Enfim, eu preferia que a gente se desse bem durante a refeição em vez de ficar se cutucando o tempo todo. Queria acreditar que a Mui e a Selna pensavam o mesmo.

— Não se preocupe com isso, Mui — falei.

— Mm... — ela respondeu, ainda mordiscando a salsicha.

Estava uma refeição bem gostosa. Será que a Mui tava conseguindo saborear direito?

— Me desculpe. Peguei um pouco pesado — disse Selna. — Não é uma grande coisa, mas deixe que eu pago a conta.

— Hm? Não precisa ir tão longe — respondi. Não estava tão duro a ponto de precisar que os mais novos pagassem por mim, então recusei. Além do mais, ia ficar feio na frente da Mui.

— É mesmo...? — disse Selna, virando-se para Mui. — Hum, desculpa por isso. O Mestre Beryl é um homem realmente incrível.

— Mm... Meio que deu pra perceber... — Mui concordou.

— Tá exagerando — protestei. — Não sou nada demais, só mais um cara comum por aí.

Como assim um homem “realmente incrível”? Selna, tua visão de mim tá inflada demais. E Mui, não vai só concordando assim. Não era ruim ser admirado, mas eu ainda não tinha me acostumado a esse tipo de tratamento. Já ouvia isso direto da Allusia e do Henbrits, mas mesmo assim acabava ficando desconcertado.

De qualquer forma, pelo menos a Selna tinha parado com aquele ar ameaçador. A Mui também parecia ter se acalmado e estava aproveitando a comida. E assim, almoçamos juntos com a Selna.

— Mestre, vou me despedindo por aqui. Até mais, Mui.

— É, até a próxima.

— Mm...

Depois de terminarmos nosso prato de frios, nos despedimos da Selna em frente à loja. As coisas tinham começado meio turbulentas, mas no fim das contas, ela e a Mui acabaram se dando bem. Mui tinha pouquíssimos conhecidos — praticamente nenhum. Provavelmente ia fazer um ou dois amigos no instituto, mas pra ampliar o mundo dela, criar laços e conversar com os outros era essencial. Nesse sentido, conhecer a Selna foi uma baita sorte. Se algo acontecesse, agora ela teria a opção de contar com uma aventureira. Só podia torcer pra que nunca fosse necessário.

— Certo então. Vamos pra casa também, Mui?

— Mm... Não tenho nada pra fazer mesmo...

Com a barriga cheia, comecei a pensar no que fazer a seguir. Não me importava de ficar relaxando em casa. Afinal, era meu dia de folga. Mas, depois de passar décadas como espadachim, era difícil não pegar numa espada nem por um dia.

— Vou dar uma passada no escritório — decidi. — Você consegue voltar sozinha?

— Não sou burra. Lembro o caminho de volta.

Pronto, estava decidido — eu ia até a Ordem dar um alô e fazer alguns exercícios. Na minha idade, se eu deixasse de treinar, engordava num piscar de olhos.

— O que vamos fazer pro jantar? — perguntei.

— Eu preparo alguma coisa... — disse a Mui.

— É mesmo? Tô ansioso, hein.

— Hmph.

Eu até estaria de boa em comer fora, mas parece que a Mui ia cozinhar. Dizem que ela fazia umas tarefas domésticas de vez em quando na casa da Lucy, e eu estava mais do que disposto a ser o cobaia das receitas dela. Seria exagero chamar isso de “treinamento para dona de casa”, mas melhorar as habilidades domésticas dela era essencial se eu queria que ela seguisse com a própria vida um dia. Eu já tinha arriscado um pouco na cozinha, mas como sempre vivi no dojô, nunca tomei iniciativa pra cozinhar. Quando morava numa pousada em Baltrain, comia fora quase sempre. Talvez fosse hora de eu começar a treinar também. Quando era só pra mim, tanto fazia. Mas se a Mui fosse comer, eu queria fazer algo decente.

— Beleza, até mais então — falei.

— Mm.

Afastei os pensamentos sobre o jantar, me despedi da Mui e fui até o escritório.

O sol estava bem no alto. Caminhei pela cidade, aproveitando o brilho. O tempo realmente estava ótimo.

Tanto em Baltrain quanto em Beaden, o clima era geralmente quente e ameno o ano todo. Não tinha exatamente uma estação seca ou chuvosa — embora o verão fosse naturalmente quente e o inverno frio, a variação de temperatura era bem tranquila pra se viver. Por isso a agricultura era tão forte por aqui, e mais colheita significava uma mesa mais farta.

De fato, era fácil para os humanos viverem nesses lugares — o que também significava que era confortável pra praticamente todas as criaturas. Muitos monstros diferentes habitavam Liberis. Por isso, saber lutar era importante o bastante pra que eu conseguisse me sustentar como instrutor de esgrima mesmo num fim de mundo. Basicamente, era uma bênção e uma maldição. Não havia nada melhor do que uma vida pacífica, mas como meu sustento vinha da espada, seria um problema se ninguém mais precisasse desse tipo de habilidade.

Fui andando tranquilamente pela cidade, pensando nessas coisas, e quando me dei conta, já estava em frente ao escritório da Ordem de Liberion.

— E aí. Trabalhando duro como sempre, hein?

— Ah, obrigado.

Cumprimentei o guarda no portão e passei direto. Eu vinha aqui todos os dias como instrutor especial já fazia um bom tempo, então estava acostumado com os guardas. Eles também pareciam lembrar de mim. Pelo menos nunca me questionavam e sempre me deixavam passar.

Aliás, havia três principais forças militares em Baltrain. A primeira era a Ordem de Liberion — Baltrain era a sede deles, e eram o orgulho da nação. Em segundo vinham os magos. A Lucy estava no topo dessa organização, que rivalizava com a Ordem. Por fim, havia a guarnição real, que cuidava principalmente da patrulha da cidade. Os guardas de frente ao escritório faziam parte dessa guarnição.

Pelo que eu tinha visto, muitos membros da guarda real eram bem mais velhos que os cavaleiros. Cheguei até a ver alguns que tinham mais ou menos a minha idade. Com certeza, era uma ocupação que cavaleiros aposentados podiam assumir. Afinal, o corpo enfraquece com a idade, e fica difícil empunhar uma espada continuamente na linha de frente.

A guarda real era uma organização voltada para assuntos internos. Eles lidavam com delitos menores e também garantiam a segurança das estradas entre as cidades. Isso significava que, ao contrário dos cavaleiros, eles não lidavam com questões externas—praticamente não tinham envolvimento com extermínio de monstros ou assuntos diplomáticos. Eles também eram muito mais numerosos que a ordem, embora não fossem tantos a ponto de cobrir o país inteiro. Lá em Beaden, por exemplo, não tinha nenhum. Minha vila ficava tão longe no interior que não precisava de uma força de segurança especializada estacionada por lá.

De qualquer forma, membros da classe média baixa como eu eram mais gratos à guarda do que à ordem ou ao corpo mágico. A ordem até tinha bastante prestígio e aprovação popular, mas os membros da guarda estavam muito mais próximos do povo, nas ruas. Apesar disso, eu com certeza estava mais envolvido com os cavaleiros.

Ah, e os aventureiros não contavam. Eles não faziam parte das forças do reino.

Com a delegação de Sphenedyardvania vindo, era fácil imaginar que a guarda, a ordem e vários outros iam ficar bem ocupados. A ordem conseguia cuidar da proteção de VIPs numa boa, mas não havia cavaleiros suficientes para vigiar a cidade toda. Por isso, provavelmente iam coordenar tudo com a guarda real. Eu não sabia se essa visita ia acabar em festa pelas ruas ou se ia ser só uma visita formal.

—Estão animados mesmo.

Fui direto para o salão de treinamento do quartel e vi vários cavaleiros empunhando espadas de madeira. Como eu já tinha visto antes, todos os cavaleiros estavam bem entusiasmados com os treinos. Era ótimo ver eles focando com tanta seriedade na própria arte.

Um dos cavaleiros me chamou, percebendo minha chegada.

—Oh? Senhor Beryl! Você não tinha tirado folga hoje?

—É, hoje não vim pra ensinar. Só pensei em dar umas espadadas.

Quem se aproximou de mim com um sorriso tranquilo foi Henbrits Drout. Ele era o tenente-comandante da Ordem de Liberion. Sua pele bronzeada e os olhos amendoados eram suas marcas registradas. Resumindo: o cara era bonito. Ele tinha alcançado o posto de tenente-comandante ainda jovem, além de ter uma ótima aparência e uma personalidade excelente.

Provavelmente é bem popular com as mulheres. Mas agora que parei pra pensar, nunca ouvi nenhuma história assim. Também não é como se eu fosse atrás desse tipo de fofoca.

—Entendo —disse Henbrits. —Todos nós poderíamos aprender com sua dedicação à espada.

—Ha ha ha, nem é pra tanto.

A reação dele foi exagerada. Fiquei até sem jeito com essa idolatria incondicional. Como eu disse, só vim aqui pra dar umas espadadas.

—Ah, certo. Henbrits.

—Sim? —ele respondeu.

—Ouvi por acaso que a delegação de Sphenedyardvania vai chegar em breve, né?

Henbrits não era nenhum recruta novato—como tenente-comandante, ele com certeza sabia alguma coisa.

—Agora que você mencionou, é essa a época mesmo —disse Henbrits. —Sphenedyardvania manda uma delegação todo ano nessa época.

—Hmm.

Pelo visto, a informação da Selna estava certa.

—No ano passado, eles tiveram uma audiência com o rei e fizeram turismo pela cidade —continuou Henbrits. —A gente ajudou na escolta naquela vez também.

—Entendi.

Então era praticamente certo que a ordem ficaria responsável pela escolta. Bem, com VIPs estrangeiros visitando, era claro que a maior força militar do país não ia ficar de braços cruzados. Mesmo que fosse só pra fazer pose, a ordem tinha que se envolver.

Agora, onde exatamente eu entro nessa história?

—Será que eu também vou ter que participar dessa escolta? —perguntei. Tava torcendo pra que não.

—Difícil dizer —disse Henbrits. —Você é nosso instrutor especial, mas ainda não foi nomeado cavaleiro...

—Aah, tem razão.

Eu até tinha um cargo e uma função aqui, mas no fim das contas, era só um contratado, não um cavaleiro de verdade. Talvez fosse inconveniente pro reino me dar muito destaque. Tudo bem por mim—isso me poupava de participar de ocasiões formais.

—Acho que vai depender do comandante —acrescentou Henbrits.

—Depender da Allusia? Isso quer dizer...

Aquela garota era do tipo que ignorava totalmente o lado diplomático e me jogava na linha de frente. Ela já tinha feito isso antes, afinal foi ela quem me recomendou como instrutor especial. Assustador... Não posso baixar a guarda.

—Falando nisso, não vi a Allusia por aqui —comentei.

Eu nem tinha notado que ela não estava no salão de treinamento até ela entrar na conversa. Como eu vinha sempre ensinar, não a via dando aula com tanta frequência, mas ela era a principal instrutora de esgrima da ordem. Achei que estaria aqui, já que eu tinha avisado que ia tirar o dia de folga.

—Ela saiu pra resolver um assunto menor —disse Henbrits. —Acho que já deve estar voltando, então—

—Henbrits, voltei. Oh? Você também está aqui, Mestre?

—Falando no diabo...

Virando na direção da voz, me deparei com a belíssima comandante da Ordem de Liberion, Allusia Sitrus. Ela parecia um pouco surpresa em me ver. Bem, eu nem planejava estar aqui hoje, então era uma reação natural.

—Mestre, se bem me lembro, o senhor tinha pedido folga pra hoje.

Sorri. —Só vim fazer um pouco de exercício e dar umas espadadas.

É isso aí, o velhote só veio manter a forma no treino de rotina. Assim que terminar, dou no pé. Foi mal, mas hoje não tô com espírito pra ensinar. Pedi folga, então posso cuidar de mim mesmo hoje... certo?

—É mesmo? —Allusia me observou por um momento.— Isso é perfeito. Tenho algo importante pra te contar.

—Hm? Aconteceu alguma coisa? —perguntei.

A expressão e o tom da Allusia estavam sérios — parecia que ela tinha um assunto importante comigo. Eu realmente, realmente esperava que não tivesse nada a ver com escoltar a delegação estrangeira. Eu tinha acabado de conversar sobre isso com o Henbrits, então foi a primeira coisa que me veio à cabeça.

—Não sei se você já está sabendo —ela começou—, mas uma delegação de Sphenedyardvania vai nos visitar em breve.

Assenti com a cabeça.

—Sim, fiquei sabendo hoje mesmo.

Ugh. Tô com um mau pressentimento...

—Agora que você foi nomeado instrutor especial da ordem, acredito que é uma boa oportunidade pra te apresentar oficialmente.

Sabia... Me dá um tempo.

—Bem... Eu não vou destoar demais do ambiente? —perguntei, tentando recusar. Não queria ter papel de destaque nisso. Mesmo que eu tivesse que participar, preferia seguir de fininho, só dando suporte na escolta.

—Pode até dizer isso, mas sua nomeação tem o selo do rei.

—Mrgh...

Allusia parecia decidida a seguir com isso, e eu realmente não tinha muitos argumentos. Eu não tinha sido condecorado como cavaleiro, mas tinha sido nomeado instrutor pelo próprio rei. Isso estava claro na carta que a Allusia me mostrou durante a visita dela a Beaden. Eu não tinha intenção nem meios de questionar os motivos do rei. De qualquer forma, era uma nomeação formal feita pelo líder do meu país — se me mandassem me apresentar pra uma delegação estrangeira, não tinha muito como dizer não.

—Que oportunidade maravilhosa de espalhar seu nome além das nossas fronteiras! —exclamou Henbrits.

—Para com isso, você tá exagerando demais —respondi, abanando a mão.

Olhei ao redor do salão de treinamento. Praticamente todos os cavaleiros tinham a mesma expressão que o Henbrits. Sério? Vocês todos tão pensando isso? Eu até agradecia por não me verem com maus olhos, mas no fim das contas, eu era só um caipira do interior. Era difícil acreditar que eu valia a pena ser apresentado pra uma comitiva estrangeira.

—Sei que você não gosta muito dos holofotes —disse Allusia.— Mas entenda que isso faz parte do seu dever como nosso instrutor especial.

—É assim que funciona...?

Tava meio tarde pra isso, mas comecei a perceber que eu não era mais um simples cidadão. A culpa era, em grande parte, da Allusia por ter me recomendado, mas eu também tinha minha parcela por ter aceitado (embora recusar uma nomeação real fosse, no mínimo, complicado).

A Ordem de Liberion precisava manter a dignidade diante de visitantes estrangeiros. Eu não teria como recusar.

—Haah... —suspirei.— Então... quem exatamente eu vou conhecer? O papa?

Não tinha escolha agora. O melhor era entender todos os detalhes o quanto antes. Não adiantava enrolar.

—Não —respondeu Allusia.— Ano passado, a família real de Sphenedyard veio nos visitar. Você vai se encontrar com eles e com membros da Ordem Sagrada.

—Hmm... Então não são altos representantes da Igreja de Sphene?

Achei que a igreja estaria envolvida numa delegação de um estado religioso, mas parecia que não era o caso.

—O papa comanda a Igreja de Sphene, mas o governo é centrado no parlamento estatal —explicou Henbrits.— Há gerações, um membro da família real atua como chefe do parlamento.

—Entendi.

Então, não era uma única pessoa que comandava a nação. Em Liberis, tínhamos um rei no topo, mas também havia um congresso de nobres abaixo dele. Devia ser algo parecido.

—Nesse caso... o chefe do parlamento vai vir? —perguntei.

—No ano passado, quem veio foi o primeiro príncipe e a terceira princesa —disse Allusia.— Dá pra assumir que vamos receber convidados do mesmo nível.

—Um príncipe e uma princesa, hein...

Fiquei sem palavras. Coisas envolvendo realeza, príncipes e princesas estavam completamente fora da minha realidade até pouco tempo atrás. Ser jogado num palco desses tão de repente me fazia pensar se isso tudo era alguma pegadinha divina. Será que eu fiz algo errado? Eu só queria levar a vida de boa, ensinando esgrima no interior. Talvez tudo tenha dado errado no dia em que aceitei treinar a Allusia.

Suspirei. Claro que não era isso, mas ser arrastado pro centro desse mundo me dava vontade de reclamar um pouco.

Tanto faz. As apresentações provavelmente vão ser só um “Oi, sou o instrutor especial.” A delegação não veio pra me ver nem nada. Dá pra acabar com isso rapidinho, é só não ser rude.

—Nesse caso, vou precisar fazer algo quanto à minha roupa... —murmurei.

—Verdade —concordou Henbrits.— Você não pode ir com suas roupas normais. E duvido que tenha uma armadura como a nossa.

Mais um problema — conhecer figurões exigia um mínimo de cuidado com a aparência. Naturalmente, eu não tinha nenhuma roupa adequada pra uma ocasião tão formal. Até quando fui apresentado aos cavaleiros como instrutor especial, estava com minhas roupas do dia a dia. Durante os treinos, todo mundo usava o que fosse mais confortável pra se mover. Isso não ia funcionar numa cerimônia.

—Hmmmm. Não tenho nada assim. Acho que vou ter que comprar algo—

—Eu te acompanho! Isso é ótimo! Conheço várias lojas! —disparou Allusia, empolgada. Ela falou tão rápido que parecia nem respirar — fazia tempo que eu não via ela assim.

—Uhhh...

Não era uma má ideia ter pelo menos um conjunto de roupas formais. Mesmo sem essa história de Sphenedyardvania, eu já tinha decidido que precisava de algo decente — queria estar apresentável pra reuniões no instituto mágico, como guardião da Mui. Mas como eu nunca tinha lidado com isso antes, não fazia ideia do que comprar. A empolgação crescente da Allusia me deixava um pouco em alerta, mas provavelmente era melhor confiar nela nessa situação. Eu nem saberia em que loja entrar se estivesse sozinho.

— Acho que vou aceitar sua oferta — cedi.

— Entendido. Ajustarei minha agenda imediatamente — respondeu Allusia.

— Aaah, bem, não precisa se apressar nem nada, tá...?

Huh. Desde que cheguei a Baltrain, já tinha dado umas voltas pela cidade com Kewlny, Ficelle, Lucy e o pessoal, mas não tinha saído com a Allusia desde a minha visita aos cavaleiros. Ela era uma pessoa ocupadíssima, então eu ficava meio culpado de chamar ela pra dar uma volta. Mas, julgando pela reação dela, talvez eu estivesse enganado — talvez ela quisesse vir junto. Mesmo assim, ela era uma pessoa de prestígio demais pra andar com um velhote. Mesmo sem segundas intenções da minha parte, a Allusia era de altíssima posição... e uma beleza extraordinária.

— A propósito, quando essa comitiva vai chegar? — perguntei.

Duvidava que fosse hoje ou amanhã. Visitas desse tipo exigiam bastante preparação. Até eu ia ter que abrir espaço na minha agenda pra esse evento. Porém, se por acaso coincidisse com alguma coisa envolvendo a Mui, eu daria prioridade a ela. Só de pensar nisso já dava um certo medo.

Eu precisava saber a data com antecedência.

— Daqui a mais ou menos um mês — respondeu Allusia.

— Que bom. Se dissesse que vinham amanhã, eu tava frito.

A Mui começaria as aulas em uma semana, então um mês seria tempo suficiente pra ela se acostumar com o novo ambiente. Também dava tempo de arranjar umas roupas. Pelo visto, minha agenda não seria completamente virada do avesso.

— Enfim... — suspirei. — Acho que nunca vou me acostumar com esse tipo de coisa.

Como eu sempre repetia, não passava de um homem comum. Eu me via apenas como um cidadão de Liberis, mesmo que meu título dissesse o contrário, e não estava nem um pouco empolgado com essa história de comitiva. Se fosse só um espectador de fora, talvez até aproveitasse o evento.

— Hee hee, ainda vai ter muitas oportunidades de se acostumar com eventos assim — disse Allusia, sorrindo.

— Preferia que não... — respondi, amargo.

Por algum motivo, eu me sentia cansado. Fisicamente, ainda estava ótimo, mas o cansaço mental era impressionante. Eu só tinha vindo pra cá pra balançar minha espada. Bom, mais cedo ou mais tarde isso ia acontecer mesmo. Melhor encarar com otimismo. Pelo menos me deram tempo suficiente pra me preparar física e mentalmente.

— Ha ha ha! É só questão de costume — disse Henbrits. — Eu também fiquei nervoso no começo.

— O Henbrits tem razão — concordou Allusia. — Você acaba se acostumando.

— Vocês falam como se fosse fácil...

A comandante dos cavaleiros e seu tenente pareciam muito habituados a esse tipo de evento. Os dois eram bem mais jovens que eu, mas tinham muito mais experiência. No momento, estavam ainda mais impressionantes do que de costume.

Henbrits me lançou um sorriso refrescante.

— Então, senhor Beryl, que tal balançar um pouco a espada pra relaxar?

— É... vou fazer isso mesmo.

Aquele sorriso era mais uma prova do quanto ele era um cara atraente. Seria um verdadeiro mistério se não tivesse mulher nenhuma na vida dele. Mesmo sob o meu ponto de vista, como homem, dava pra perceber que ele devia ser bem popular.

Mas não adiantava pensar nisso agora. Como ele mesmo disse, eu queria focar na espada pra levantar o ânimo. Tinha vindo ao salão de treinamento no meu dia de folga, então era hora de fazer o que vim fazer.

— Voltei.

Depois de suar um pouco no quartel, o sol já estava se pondo a oeste. Logo, o fundo do sol estaria escondido no horizonte, banhado em um brilho avermelhado. Abri a porta da minha casa nova — algo com o qual eu ainda não tinha me acostumado.

— Mm. Bem-vindo de volta.

Alguém estava ali pra me receber. Não era algo com que eu estivesse acostumado. Não que eu achasse ruim. Lá no dojo, meus pais sempre estavam por perto, então não era nada demais. Ainda assim, ter uma garota mais nova esperando por mim em casa parecia estranho. Ia ter que me acostumar com isso aos poucos.

Depois de confirmar que era eu, a Mui me cumprimentou com um tom quase casual. Parecia que ela estava na sala de estar, sentada numa cadeira, apoiada na mesa sem fazer nada. Ela me olhou por alguns segundos e depois se endireitou.

— Oh? Tem um cheiro bom no ar.

Notei um cheiro de comida que não estava lá quando saí de manhã. Hmm, provavelmente é algo cozido. Tipo um pot-au-feu ou um ensopado. A Mui provavelmente não tinha muita familiaridade com culinária — sua educação doméstica em geral parecia ter vindo da Lucy e da Haley —, mas essas receitas eram simples o bastante pra acertar. Com esse tipo de prato, bastava jogar os ingredientes na panela e deixar cozinhando. Era o prato ideal pra ensinar a quem não sabia nem o básico — qualquer um conseguia fazer, e só um desastre mesmo pra dar errado.

— Tô com fome... — murmurou Mui.

— Hm? Cê tava esperando por mim, por acaso?

Um ronco adorável ecoou pela casa. A responsável pelo som arregalou os olhos e desviou o olhar, envergonhada. Tão fofa. Eu estava completamente convencido de que a Mui comeria antes de mim, então foi uma surpresa ela ter esperado. Eu sabia que ela não me odiava, mas também não achava que ela fosse tão apegada assim a mim. Essa novidade me deixou feliz... e meio sem jeito.

— Comida é melhor quando tem companhia... — murmurou.

— Ha ha ha! Concordo plenamente!

Não consegui conter um sorriso largo com o comentário dela. A Mui era simplesmente adorável. Com a mente tomada pelo cheiro da comida, tive certeza de que tinha feito bem em me exercitar antes. Uma fome agradável percorria cada fibra do meu corpo. No meu tipo de trabalho, isso nem era um problema, mas se eu só comesse e dormisse o dia todo, viraria um porco.

— Bom, então, vamos comer — sugeri.

— Mm.

Uma panela cheia de ingredientes estava sobre a mesa. Dei uma olhada e vi linguiça e batatas. As batatas não tinham sido descascadas direito, e os pedaços estavam bem irregulares, mas isso não mudava o fato de que a Mui tinha se esforçado. Ser um pouco desajeitada com a faca não ia alterar o sabor.

Mui usou uma concha para servir o conteúdo da panela nos pratos.

— Valeu pela comida.

— Mm.

Comecei a comer na hora. Delicioso. Tava um pouco amargo por causa da espuma, mas ainda assim bem comível. Como a Mui nunca tinha cozinhado de verdade, provavelmente nem sabia que precisava ir tirando a espuma enquanto cozinhava.

— Mm, tá ótimo — falei.

— É mesmo...?

Nunca posso esquecer de agradecer quem prepara minha comida. Não importa se é alguém num restaurante, minha mãe ou a Mui—tenho que dizer que ficou bom. Isso também fazia parte do meu objetivo de ensinar bons modos pra ela. Será que vi um cantinho da boca dela subir? Duvido que exista alguém nesse mundo que não goste de receber elogios. Quero que a Mui viva uma vida onde ela possa ser elogiada cada vez mais.

Depois de duas ou três colheradas do pot-au-feu, a Mui se virou pra mim e murmurou:

— Ah... é mesmo.

— Hm? O que foi?

— Chegou uma encomenda pra você — disse ela. — Eu guardei lá dentro.

— Mm, valeu. O que será, hein?

— Sei lá.

Não me lembrava de ter encomendado nada. Já tinha trazido tudo da estalagem, e as únicas pessoas que sabiam que eu morava aqui eram a Allusia, a Lucy e o Ibroy. Tinha encontrado a Selna ao meio-dia, mas não contei pra ela onde era minha casa.

E, entre eles, quem enviaria algo pra mim...

Ibroy. Provavelmente foi o Ibroy. Devia ser a recompensa que ele mencionou por capturar o Reveos. Não conseguia pensar em outra coisa.

O pedido dele foi um baita incômodo, mas já que ele quis me dar algo em troca, tudo bem. Duvidava que fosse mandar alguma porcaria, e mesmo que fosse, qualquer presente, seja dinheiro ou alguma coisa útil, já tava valendo. Decidi ver o que era depois de terminar de comer.

— Ah, é mesmo, preciso te contar uma coisa — falei.

— O quê...?

Mui levantou o olhar do prato. Pra ser educado, ela comia como uma criança. Pra ser direto, ela não tinha nenhum pingo de etiqueta. Como cozinhar era essencial pra viver sozinha, a Haley ensinou isso primeiro pra ela, mas não deu tempo de ensinar boas maneiras à mesa. Afinal, comer sem modos não mata ninguém. Mas agora a responsabilidade era minha. Ela com certeza ia ter momentos pra comer com os colegas da escola de magia—e eu queria que ela soubesse como se portar pra não passar vergonha.

— Vai ter uma visita importante de um país vizinho em breve — falei. — Me colocaram como escolta deles.

— Hmph.

A reação da Mui foi seca como sempre. Pelo visto, não era um assunto que interessava muito pra ela. Mesmo assim, eu provavelmente ia ficar uns dias fora, então precisava avisar.

— Como você pode ver, não tenho nenhuma roupa decente pra ocasião — continuei. — Vou sair pra comprar algumas nos próximos dias. A Allusia vai me acompanhar. Quer vir junto?

— Não.

De novo, a mesma de sempre. Aah, para de amassar a salsicha com o garfo...

— Eu sei que é chato, mas não brinca com a comida — avisei.

— Hmph.

Mui largou o garfo com má vontade. Ainda parecia de mau humor. Vai saber por quê. Era fofo, de certo modo, mas... o que eu podia fazer?

— A Allusia é aquela cavaleira? — ela perguntou.

— É. Aquela de cabelo prateado que você viu no escritório.

— Entendi...

Não entendi muito bem, mas acho que, do ponto de vista da Mui, a Allusia era tipo uma pedra no sapato. Ela claramente não curtia a comandante dos cavaleiros. Mas também não eram inimigas mais. Não esperava que virassem amigas, mas queria que se dessem bem, pelo menos um pouco. A Allusia era minha... colega? Acho que dava pra chamar assim. Afinal, trabalhamos no mesmo lugar.

— Valeu pela comida.

— Mm...

Conversamos durante a refeição, e antes que eu percebesse, meu estômago já tava cheio. Comer demais também não era bom, então parei por ali. Dei uma olhada na panela. Ainda tinha bastante—dava tranquilo pra sobrar pro almoço de amanhã.

Mui terminou de comer um pouco antes de mim. Ela comia rápido. Acho que era o jeito que aprendeu a viver até agora. Não sabia como aproveitar a refeição devagar, sempre devorava tudo. Queria que ela percebesse que agora vivia num mundo diferente, mas isso era difícil de explicar só com palavras.

Ela ia se acostumando aos poucos com a nova vida.

Depois de colocar os pratos na pia, fui pra parte de dentro da casa. Deixo pra lavar depois. Tava bem curioso com o pacote do Ibroy, então fui abrir logo. Ele tinha dito que era uma recompensa, mas não explicou o que era. Aceitaria qualquer coisa, mas se fosse algo complicado, podia dar dor de cabeça.

— Ah, é isso aí?

Tinha uma caixa de madeira largada num canto da sala. Achei que seria menor. Ainda bem que não era pesada demais pra Mui carregar. Fiquei encarando a caixa por um tempo e depois a peguei. Não parecia muito pesada. Mais misterioso ainda. Realmente não fazia ideia do que tinha dentro, e só tinha um jeito de descobrir.

— Hup.

Com uma pontinha de esperança e um bocado de ansiedade, abri a caixa. A tampa saiu fácil.

— Então era isso mesmo...

Dentro, tinham vários tecidos dobrados. Mais especificamente, roupas... que claramente não eram do meu tamanho. O modelo e o corte eram feitos pra uma mulher—e bem pequena, inclusive. Tinha desde peças simples que serviam como pijama até roupas bonitinhas que ela provavelmente ia detestar.

É, isso aqui é pra Mui.

O Ibroy sabia que eu tinha ganhado uma casa, mas não que eu tava morando com a Mui. Pelo menos eu não contei. Só podia ter uma culpada.

— Vou agradecer da próxima vez que vir eles.

E por “eles”, eu queria dizer o cara que enviou o pacote e a tiraninha que armou tudo por trás. Ah, e embaixo das roupas também tinha uma quantia de dalcs. Fiquei feliz, mas sem saber muito bem como reagir.

Bom, tanto faz. Vou usar isso pra levar a Mui pra comer algo gostoso de novo.

— Hwaaah...

O sol da manhã tinha acabado de surgir no horizonte. Eu estava parado em frente ao escritório da ordem, passando o tempo sem pensar em nada, só observando as ondas de humanos animados indo de um lado pro outro.

Já fazia dois dias desde nossa conversa sobre a delegação de Sphenedyardvania. Eu tinha resolvido minha agenda rapidinho depois disso, mas aí a Allusia me chamou pra sair—e agora eu estava esperando por ela.

De qualquer forma, estava absurdamente cedo. A gente tinha combinado de comprar algumas roupas pra mim—algo que eu achava que não levaria tanto tempo—mas eu já tinha aquele pressentimento de que o dia inteiro ia ser consumido por isso. Eu não fazia ideia de que lojas ir, nem que tipo de roupa comprar, e a única pessoa em quem eu podia confiar pra me ajudar era a Allusia.

Andar pela cidade com uma beldade de primeira como a Allusia devia ser um evento e tanto, mas como eu conhecia ela desde criança, não achava lá essas coisas. Na real, o que me deixava nervoso era o tanto de olhares que a gente ia atrair e a pressão de estar andando do lado de alguém tão importante como a comandante dos cavaleiros.

Mesmo com o cargo chamativo de "instrutor especial", no fundo eu ainda era só um cara da classe média baixa. Não era como se eu não gostasse de sair com a Allusia, mas sair com a Kewlny ou a Mui era muito mais relaxante.

Enquanto eu deixava esses pensamentos vagarem, vi uma figura conhecida de cabelos prateados vindo em minha direção pela estrada.

— Mestre, desculpe a demora.

— Aah, tá tranquilo. Nem esperei tanto assim, é que acordei bem cedo mesmo.

A comandante da Ordem de Liberion, Allusia Sitrus, tinha chegado. Hoje ela não estava com a armadura usual. Vestia uma camisa branca e uma saia longa azul—o visual dela passava uma sensação bem serena. Com aquelas roupas, ninguém jamais diria que ela era a corajosa comandante dos cavaleiros. Era impressionante o quanto ela estava linda.

Mesmo assim, ver a Allusia de saia foi algo inesperado. As roupas que ela usava normalmente até destacavam suas curvas, mas tinham um estilo mais unissex. Agora, a saia balançava ao vento, revelando de vez em quando suas panturrilhas fortes. E como sempre, a beleza dela contrastava direto com a minha aparência totalmente sem graça. Eu definitivamente não era alguém digno de andar ao lado dela—me sentia mal por submetê-la a isso.

— Eu não entendo muito de moda... mas acho que essa roupa ficou muito bem em você — comentei, elogiando-a.

—M-Muito obrigada.

Na real, eu achava que qualquer coisa ficaria bem nela. Ainda assim, se uma mulher se deu ao trabalho de se arrumar, era dever do homem elogiá-la. Sempre foi assim, mesmo se a mulher em questão for uma ex-aluna. Pelo menos é o que eu acho. Não entendo muito dessas coisas.

— E-Então vamos — disse Allusia. — Vai ser uma caminhadinha.

— Beleza, tô contigo. Já que vamos a pé, posso assumir que a loja é no distrito central?

— Sim, isso mesmo.

Achei que a gente fosse até o distrito oeste pra isso, mas pelo visto íamos ficar pelo distrito central mesmo. E o lugar em questão ainda era perto o bastante pra ir andando.

— Então o distrito central também tem esse tipo de loja, hein — comentei, enquanto começávamos a nos afastar do escritório. — Ainda tem muita coisa sobre a cidade que eu não sei.

— Bem, Baltrain é enorme.

Eu já estava na capital fazia um bom tempo, mas ainda não conhecia aquele caminho nem sabia o nome de nenhuma loja famosa por ali. Uma parte de mim se perguntava se isso era certo agora que eu tinha uma casa aqui—mas outra parte achava que tudo bem, já que isso não atrapalhava meu dia a dia. Muito provavelmente, a Mui conhecia bem mais do lugar do que eu. Felizmente, eu tinha várias pessoas em quem podia confiar, o que me poupava um bocado de dor de cabeça.

— Não que eu ache que precise me preocupar com isso, mas tem certeza de que isso não tá atrapalhando suas tarefas oficiais?

— Não tem problema. Não surgiram assuntos urgentes ultimamente.

— Entendi. Que bom.

Se a Allusia estivesse ocupada, o restante da ordem também estaria—afinal, eles não podiam ignorar um conflito. De certa forma, o fato de a Allusia estar com tempo livre significava que a ordem pública na capital estava estável. Sinceramente, só de imaginar a força militar principal da nação ocupada já dava um certo medo.

O povo de Baltrain também parecia entender isso—todos olhavam para a Allusia com um ar caloroso. Já os olhares que lançavam pra mim... bom, isso ainda me deixava desconfortável. Acho que não tenho escolha a não ser me acostumar. Não dava pra evitar o fato de que minha fama estava se espalhando.

— A propósito, mestre, que tipo de roupa o senhor prefere? — perguntou Allusia.

— Hmmm, o que eu gosto, hein?

Nunca tinha parado pra pensar nisso antes. Passei a vida no interior, então nunca fui exigente com o básico. Não vivia na miséria, mas também nunca fui próspero.

— Se for pra escolher, acho que algo mais flexível — disse. — Não curto roupa apertada nem pesada.

— Entendido.

Não era bem uma questão de gosto estético, e sim de preferência como espadachim. Mesmo que fosse um passeio com delegações estrangeiras, no fim das contas meu trabalho ainda era de escolta—se possível, eu queria evitar usar algo restritivo. Também nunca fui do tipo que usa armadura pesada, então queria roupas com as quais eu pudesse me mover livremente. Será que isso seria possível?

Allusia assentiu, mas dessa vez, a formalidade da ocasião precisava ser levada em conta. Afinal, se eu pudesse ir com minhas roupas atuais, a gente nem teria saído pra comprar nada.

— Vamos começar por essa loja — disse Allusia.

— Fechado. Vai com calma comigo, hein.

Andamos por quanto tempo? Chegamos a uma rua cheia de lojinhas estilosas. Mesmo pequenas, essas boutiques tinham uma presença marcante. As lojas tinham um ar bem sofisticado, o que era de se esperar do distrito central de Baltrain.

Definitivamente não pertenço a esse lugar. Será que isso vai dar certo mesmo?

— Sejam bem-vindos... Oh, se não é a senhorita Sitrus — cumprimentou um atendente bem vestido.

— Olá, gostaria de dar uma olhada nas roupas — respondeu Allusia.

A aparência da loja já me deixava intimidado, mas a Allusia entrou com uma naturalidade impressionante. Eu fui atrás, obviamente meio sem jeito, e dei uma olhada ao redor. Havia fileiras de roupas elegantes, mas eu não conhecia nenhuma das marcas nem fazia ideia dos preços. Só de olhar, pareciam todas bem rígidas e difíceis de se movimentar com elas.

— Tem bastante variedade mesmo — murmurei casualmente.

— De fato. Por favor, me avise se algo chamar sua atenção — disse o atendente.

"Algo que chame minha atenção", hein? Meu senso de moda não é lá confiável, então acho melhor deixar isso nas mãos da Allusia mesmo.

— Mestre, o que acha desta? — perguntou Allusia.

— Hm? Deixa eu ver... Ééé...

A primeira peça que a Allusia me mostrou foi uma camisa justa com gola cheia de babados e ornamentos luxuosos. Parecia ser feita de veludo—o tecido era macio e brilhante.


O que diabos é isso? Eu tenho mesmo que usar isso? Aí complica…

— É um gibão. Você gostou? — perguntou Allusia.

— Bom, ahm... Não é meio chamativo demais?

Retiro tudo o que disse. Se eu deixar tudo nas mãos da Allusia, vou acabar vestindo cada coisa… Não que ela tenha más intenções, claro, mas ela podia ser um pouco mais… bem, você sabe. Algo mais condizente com esse velhote comum aqui. Queremos algo bonito, mas discreto.

— Acho que combina com você — disse o atendente, com um sorriso simpático. Mas como era trabalho dele vender essas roupas, duvidava que fosse dizer outra coisa. E eu tinha quase certeza de que aquilo não combinava comigo.

— Hm... Talvez a gente devesse olhar outras opções... Ha ha ha — falei, tentando ser educado, mas torcendo muito pra escapar daquele gibão.

— Entendo... — murmurou Allusia, meio desapontada.

Bom, foi mal aí, tá? Mas aquilo ali era chamativo demais.

Aliás, será que todas as roupas da nobreza ou da alta patente são assim? Super espalhafatosas, apertadas… só de pensar em vestir aquilo já dava preguiça. Nunca tive muita convivência com nobres que não fossem cavaleiros, então não sabia bem quais eram os padrões. Allusia e Henbrits pelo menos podiam se virar com armadura como traje formal.

— Hm...? E isso aqui, será que serve?

Fiquei olhando em volta, meio perdido, até que uma jaqueta me chamou a atenção. Era preta na maior parte, mas de um tom que passava uma certa tranquilidade. Ia até a cintura, com a frente um pouco aberta na altura do peito — o bordado branco dava um toque elegante. Algo me dizia que talvez combinasse comigo... um pouco. Pelo menos ela tinha me chamado a atenção, ao contrário das outras roupas da loja. Não era chamativa, e se aproximava muito mais do meu gosto do que aquele gibão da Allusia.

— Hmmm... Me parece meio simples demais... — comentou ela.

— Quer dizer, pra mim tá na medida certa.

Nunca fui de me enfeitar, então o ideal mesmo era algo discreto, sóbrio e com um mínimo de elegância.

— Entendido. Separe esta, por favor — disse ela ao atendente.

— Como desejar — respondeu ele.

Quando ela disse “separe esta”, entendi que ainda não tínhamos terminado. Eu já estava satisfeito com aquela jaqueta e podia muito bem encerrar por ali, mas com a Allusia do meu lado, sabia que as coisas não iam ser tão simples assim.

— Voltarei mais tarde — disse ela. — Mestre, vamos dar uma olhada em outras lojas também.

— C-Certo...

Talvez ela tenha decidido que não ia encontrar o que queria ali. Por mim, tudo bem, contanto que eu não visse mais nada parecido com aquele gibão.

— Hee hee hee... Isso aqui é claramente um encon—

— Hm? Disse alguma coisa?

— Não, nada não.

O murmúrio da Allusia se perdeu no céu claro.

Visitamos mais seis lojas, parando só para almoçar no meio do caminho. No total, ela me mostrou dezesseis sugestões e, no fim das contas, acabamos escolhendo a jaqueta da primeira loja mesmo. Fiquei até com um pouco de pena, já que ela tinha se empenhado tanto, mas, por algum motivo, ela parecia satisfeita. Então resolvi deixar quieto.


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