Capítulo 2: Um Caipira Encontra a Realeza
Já tinham se passado três dias desde que fui às compras com a Allusia e comprei aquela jaqueta preta. Hoje era o primeiro dia da Mui na academia de magia. Era a ocasião perfeita pra usar uma roupa mais formal, mas, infelizmente, a jaqueta ainda não estava pronta. Ela estava sendo ajustada pro meu tamanho, e isso ainda ia levar umas duas semanas. Pelo menos ia ficar pronta a tempo da chegada da comitiva de Sphenedyardvania.
— Certo, vamos?
— Por que você tá todo animadinho, velhote?
Depois do café da manhã, saí de casa com a Mui, que hoje estava um pouco mais arrumada do que o normal. Ela me repreendeu por estar empolgado demais, mas como é que eu não ficaria? Minha filha— Espera, será que posso chamá-la assim? Tanto faz. Minha filha estava prestes a viver um grande momento.
— Ha ha ha. É assim que funciona o amor de pai.
— Hmph.
A Mui não estava usando sua roupa de sempre. Em vez disso, escolhi algo mais apropriado entre as roupas que o Ibroy tinha mandado pra gente. Foi um presente, então eu ia aproveitar. Ela vestia uma camisa branca simples e uma calça preta um pouco mais justa. A roupa habitual dela deixava muita pele à mostra, então essa combinava mais com a ocasião. Não era nada chamativo ou fofinho, então a Mui nem reclamou muito — a opinião dela foi parte importante da decisão.
— Essas calças estão muito apertadas nas pernas...
— Vai ter que se acostumar com esse tipo de roupa.
Ela não se incomodava com a cor ou o estilo, mas parecia ter resistência com calças que cobriam a perna toda. Ela estava só um pouquinho descontente, mas não tinha muita escolha a não ser se acostumar. Eu também nem tinha muita moral pra falar — também priorizava roupas confortáveis pra me mexer.
Segundo a Kinera, havia mais ou menos seiscentos alunos atualmente estudando na academia de magia. A idade deles variava bastante, desde crianças até mais novas que a Mui até jovens na faixa etária da Allusia e da Selna. A proporção de meninos pra meninas era bem equilibrada. Faz sentido, já que os fatores que despertam a magia em alguém parecem ignorar idade, gênero e linhagem.
Será que era egoísmo meu torcer pra que a Mui fizesse amizades com garotas da idade dela? Eu tinha quase certeza que encararia com desconfiança qualquer moleque que ela trouxesse pra me apresentar como amigo. Não ia entregar minha filha assim tão fácil... embora eu nem soubesse quando — ou se — a Mui começaria a se interessar por essas coisas.
— Enfim, eu tinha ouvido boatos, mas o valor da matrícula até que é justo — comentei.
— Não é exatamente barato...
— Pra você, é um preço pequeno a pagar.
— Hmph.
Mesmo sem a renda como instrutor especial, eu tinha mais do que o suficiente guardado — pagar a matrícula da escola não era problema pra mim. Se a Mui fosse mais talentosa, a taxa teria sido isenta, mas não seria justo com ela esperar isso.
Por enquanto, a única magia que a Mui sabia usar era a de fogo. Se ela fosse realmente um prodígio, supostamente já teria dominado vários tipos de magia desde o início — a Lucy era um exemplo perfeito de talento nato. Aquela garota é mesmo mais do que só um título. Acho que preciso revisar a imagem meio rude que eu tinha dela.
— Hup.
Observando a movimentação da multidão caminhando por Baltrain nessa manhã agitada, subi na carruagem. Como sempre, estava lotada. Baltrain é mesmo uma cidade incrível. Sua prosperidade era natural, já que era a capital de Liberis, mas a escala e a praticidade daqui estavam em outro nível comparado a Beaden. Em vilarejo que é vilarejo, nem existe esse negócio de carruagem pra circular pela cidade.
— Você vai me largar assim que a gente chegar lá — disse a Mui.
— É verdade, mas esse é um momento importante, não acha?
— Tsc...
Era o primeiro dia da Mui, mas não teria cerimônia de entrada nem nada. Segundo a Kinera, a academia de magia estava sempre em busca de novos talentos, então aceitava candidatos o ano inteiro. Como seria difícil admitir gente nova todos os dias, eles faziam isso uma vez por mês — a Mui entraria com os outros novatos do mês. Como não haveria cerimônia, eu não tinha nenhum papel a cumprir como responsável. Só estava indo levá-la até a academia. Ainda assim, é da natureza dos pais quererem acompanhar esse tipo de coisa. Talvez eu estivesse sendo superprotetor, mas a situação da Mui era meio delicada... pelo menos pelos meus critérios.
Descemos da carruagem num ponto e caminhamos por um tempo. Conforme nos aproximávamos do portão da magnífica academia de magia, fomos recebidos pela professora que tinha nos passado todas as informações outro dia: Kinera Fyne.
— Sr. Beryl, Mui, estávamos aguardando a chegada de vocês.
— Hm? Sra. Kinera, bom dia.
— Bom dia — ela respondeu, sorridente. — Hoje é o seu primeiro dia, então serei sua guia.
— Entendo, isso ajuda bastante.
Fiquei aliviado que ela seria a guia da Mui. Ser guiada por alguém conhecido em vez de um estranho tornava a adaptação mais fácil pra minha filha... e pra mim também.
— Anda, Mui, dá um bom dia pra ela — incentivei.
— Mm. B-Bom dia... — disse a Mui, meio sem jeito. Ela ainda não sabia muito bem como lidar com pessoas fora do nosso círculo, como eu e a Lucy.
— Bom dia! — respondeu a Kinera com alegria. — A partir de agora, deixem a Mui aos meus cuidados.
— Sim, por favor — disse eu.
A Mui tinha reclamado de eu ir junto, mas agora que estávamos aqui, ela estava super nervosa. Uma gracinha.
Agora que a deixei na escola, minha parte estava feita. Não tinha tirado o dia de folga, então precisava voltar até o ponto e ir pro escritório. Podia perguntar pra Mui mais tarde como tinha sido o primeiro dia. Não que eu achasse que ela fosse me contar tudo com sinceridade... mas precisava acostumá-la aos poucos com esse tipo de conversa. Não estava só oferecendo abrigo — meu objetivo era prepará-la pra viver de forma independente.
— Certo, então...
Agora que minha companheira havia partido, me vi vagando sozinho pelo distrito norte. O clima claro me dava uma vista perfeita das torres do palácio real. O palácio em si ficava a uma curta caminhada dali, mas eu não tinha nenhum motivo real pra ir até lá. Além disso, provavelmente eu acabaria indo até lá quando escoltasse a comitiva de Sphenedyardvania, então pensei em deixar o turismo pra depois.
Ah, e a capela da Igreja de Sphene também ficava no distrito norte. Não tenho boas lembranças daquele lugar. Já tinham terminado a limpeza depois do incidente, então aparentemente estava tudo normal de novo, mas eu realmente não queria voltar lá. No fim das contas, eu nem sabia quantos dos caras que derrubei ainda estavam vivos. Como eu não estava sendo acusado de nenhum crime, alguém como a Allusia ou a Lucy provavelmente mexeu os pauzinhos por mim.
Por causa de tudo isso, eu não estava particularmente empolgado com o distrito norte. Decidi voltar logo pro escritório.
— Bom dia... Opa, o pessoal tá pegando firme hoje.
Senti uma leve inquietação enquanto entrava no salão de treinamento da ordem. Como sempre, muitos cavaleiros estavam ocupados se dedicando à arte da espada.
Allusia me cumprimentou assim que entrei.
— Mestre, bom dia.
— Bom dia.
Ela não usava sua armadura habitual, mas sim roupas de treino. Como ela era a principal instrutora dos cavaleiros, não era estranho vê-la demonstrando suas habilidades. Ainda assim, tinha algo nela hoje... alegre demais? Por que ela estava tão feliz em estar ali dando instrução?
— Mestre, tenho um pedido — disse ela.
— Hm? O que foi?
Era bem raro ela me pedir alguma coisa. Na época do dojo, ela não era do tipo exigente, e aqui em Baltrain, também nunca tinha me pedido nada. Bom, me forçar a virar instrutor especial tinha sido absurdamente egoísta, mas aquilo era outra história.
— Poderia me conceder um duelo? — Ela empunhou sua espada de madeira, e seus olhos límpidos se fixaram nos meus.
— Hm... Hm? Não me oponho, mas de onde veio isso?
Allusia era comandante e instrutora da ordem, mas antes de tudo, ela era uma cavaleira. Claro que além de ensinar e liderar, ela também queria treinar suas próprias habilidades. Ainda assim, fiquei curioso sobre o motivo repentino do desafio.
— Estava pensando... com a visita da comitiva de Sphenedyardvania se aproximando, eu também deveria treinar meu manejo da espada.
— Entendi.
Sua postura seguia firme — no bom sentido. Ela sorriu suavemente. Seu rosto era tão bonito que parecia que uma estátua famosa havia ganhado vida. Era quase injusto que uma beleza dessas também fosse a cavaleira mais habilidosa de Liberis. Parecia que os céus haviam concedido múltiplos dons a uma só pessoa.
— Vamos começar logo? — perguntei.
— Sim, se estiver de acordo.
Dito isso, ela me entregou uma espada de madeira. Agora, quantos anos fazia desde a última vez que enfrentei Allusia? A última vez tinha sido na época do nosso dojo. Ela já era talentosa e forte, mas aquilo foi há muito tempo. Desde então, com certeza ela havia aprimorado suas técnicas — uma cavaleira fraca jamais teria se tornado comandante da Ordem de Liberion.
— Henbrits. Cuide do sinal de início.
—S-Sim, senhora!
Nos posicionamos frente a frente no centro do salão de treinamento, com as espadas de madeira em punho. Quando percebi, todos os cavaleiros ao redor tinham parado de treinar e estavam olhando pra gente. Bem, os dois instrutores da ordem iam se enfrentar — era compreensível que quisessem assistir. Eu estava meio empolgado, meio apreensivo. Queria ver o quanto Allusia havia evoluído, mas também tinha medo de parecer fraco diante dela. Quanto será que ela melhorou desde os tempos do dojo? Eu nunca a vi lutar, então não dava pra ter certeza.
Preciso me concentrar mais que o normal.
— Estão prontos? — perguntou Henbrits.
— Pronta — respondeu Allusia.
— Pode mandar ver.
Nossos olhos permaneceram fixos um no outro. Curiosamente, os dois usavam exatamente a mesma guarda média — uma postura ortodoxa, equilibrada tanto para ataque quanto para defesa.
— Então...
O salão, que antes estava tão barulhento, agora só tinha a voz de Henbrits ressoando. Eu adorava essa sensação única de tensão. Mesmo sendo só um treino, era raro sentir esse friozinho na espinha. Era a chance perfeita pra eu ter um vislumbre das habilidades da Allusia.
— Comecem!
Henbrits deu o sinal. Allusia manteve a espada de madeira na mesma posição e me observava atentamente, analisando o que eu faria.
Antes que eu percebesse, a lâmina dela já estava bem na frente dos meus olhos.
— Uwaaa?!
Rebati por puro reflexo. Calma aí, calma aí, calma aí! Como é que ela se moveu daquele jeito? Sério mesmo? Um suor frio escorreu pelas minhas costas. Eu mal tinha conseguido ver alguma coisa. Um instante antes, ela só estava em posição... e no seguinte, a espada dela já tava prestes a me acertar.
— Como eu esperava — murmurou Allusia. — Queria marcar um ponto com aquele golpe...
— Bom, sabe como é... Eu meio que pensei que não ia te deixar fazer isso tão fácil assim!
Consegui responder de algum jeito, mas meu coração tava disparado. Ela não era tão rápida a ponto de parecer que tava usando magia ou algum truque, mas a velocidade dela tinha sido absurdamente inesperada. Eu nem sabia de onde a espada tinha vindo — tudo o que fiz foi rebater aquele pedaço de madeira que apareceu de repente bem na minha cara.
— Uwaaa?!
De novo, Allusia estava pronta, e num piscar de olhos, a espada dela voou pra cima de mim. Rebati o golpe horizontal e dei alguns passos pra trás, todo atrapalhado.
— Ufa!
Isso tá estranho. Ela não dá nenhum sinal antes de atacar. Se alguém me dissesse que a espada dela surgiu do nada, eu até acreditava — de tão insana que era a velocidade dela. Como isso é possível?
— Hee hee — riu Allusia. — É a primeira vez que alguém consegue me bloquear duas vezes.
— Que honra a minha...!
A velocidade dela era coisa de outro mundo. Eu não podia deixar isso se prolongar. Francamente, eu nem tinha certeza se conseguiria continuar desviando daquele jeito maluco de lutar. Só ter bloqueado duas vezes já tinha sido praticamente um milagre.
— Shhh!
— Hah!
Então, a única opção era ir pro ataque. A partir da minha postura média, fiz um corte ascendente, seguido de um corte descendente. O som seco de madeira batendo contra madeira ecoou pelo salão de treinamento. Allusia se moveu o mínimo necessário — só o bastante pra desviar dos meus golpes.
— Hmph!
Segui com um giro no lugar em um golpe horizontal, depois uma estocada. O primeiro ela rebateu, o segundo ela desviou dando dois passos pra fora do alcance. Droga. Tenho a impressão de que ando sendo forçado a atacar bastante ultimamente.
— Hee hee... Mestre, você sabe como o povo me chama?
— Não... não sou muito ligado nessas coisas.
Com uma certa distância entre nós, Allusia puxou conversa. Agora que pensei nisso, a Selna era chamada de Lâmina Gêmea do Dragão. Será que Allusia também tinha um apelido?
— Me chamam de Velocidade Divina — declarou ela. — Mas acho isso um tanto exagerado.
— Olha, até que combina bem com você... Hup!
Tive que voltar à defesa quando Allusia veio pra cima com uma sequência de ataques rápidos.
Dessa vez, ela veio de um pouco mais longe, então consegui rebater os golpes, de algum jeito. Pra encurtar a distância, ela deu dois passos pra frente — foi impressionante ver ela chegar tão perto num piscar de olhos, e mais ainda por parecer tão natural quanto respirar.
Entendi agora. Diferente da nossa primeira troca de golpes, tive um tempo pra observar melhor por causa da distância. Consegui entender um pouco como ela funcionava. Em termos de força, os golpes dela eram bem mais leves que os do Henbrits. E, em pura velocidade, talvez a Selna fosse mais rápida.
Mas os ataques da Allusia eram diferentes dos deles. Ela controlava cada movimento dos músculos até o extremo — os membros dela aceleravam instantaneamente de um estado neutro. Por isso, a habilidade dela de atingir velocidade máxima em tão pouco tempo superava qualquer outra.
O que tornava isso possível eram as pernas dela, especialmente os joelhos — incrivelmente flexíveis. Por conseguir flexionar os músculos ao redor deles com tanta eficiência, ela conseguia se lançar pra frente quase sem dar sinal nenhum da intenção. Por isso parecia que ela se movia num instante.
Ela também era excelente na defesa, o que a tornava ainda mais difícil de lidar. Os bons reflexos e a agilidade faziam com que ela sempre escolhesse a melhor forma de reagir a qualquer ataque. Eu tava perdido. Não via nenhuma brecha. Meu estilo também não combinava nada com o dela. Em termos de técnica pura, dava pra dizer que ela tinha aperfeiçoado sua arte.
Se isso fosse só uma disputa entre nós dois, eu não me importaria em perder pra ela. Mas os outros cavaleiros estavam assistindo. E, do ponto de vista de quem olhasse de fora, eu era o instrutor especial que a Allusia trouxe pessoalmente. Se eu parecesse mais fraco que ela, a posição dela podia ficar delicada... e a minha também. Nenhum de nós queria esse resultado.
Beleza, vamos nessa.
— Hoh!
Dei um passo à frente de repente, desferindo um corte descendente seguido de uma estocada. Segurei a empunhadura com uma mão só, com uma pegada curta, visando um combate de perto. Allusia lidou com minha espada com maestria, bloqueando cada golpe. O som de madeira se chocando ecoou diversas vezes ao nosso redor. Isso eu já esperava — ataques meia-boca assim não iam nem arranhar ela.
— Hup.
— Hã?
Pelos padrões dos livros, a técnica dela era onipresente. Mas isso só pelos livros. Isso aqui era uma luta. Usei minha mão esquerda livre pra agarrar a roupa da Allusia. Ela se enrijeceu por um instante — aproveitei e puxei ela com força. Allusia tropeçou com o puxão inesperado.
Toquei com o punho da minha espada de madeira na cabeça dela enquanto puxava.
— Um ponto.
— Ugh... — gemeu Allusia. — Você realmente me pegou...
— Essa é outra forma de lutar — falei pra ela. — Lembre-se disso.
Allusia sorriu de canto, como se tivesse sido pega de surpresa, mas não pareceu achar minhas táticas desleais ou sujas. Como alguém que vive no campo de batalha, ela conhecia bem os fatores de uma luta real. Isso era bom. Ninguém ali no salão de treinamento olharia torto pra alguém que usasse a mão livre na batalha. Num duelo formal talvez causasse certo desprezo, mas o lema dos cavaleiros era sempre se portar como se estivessem em combate real. Selna não era cavaleira, mas conhecia bem o campo de batalha — ela mesma usou chutes durante nosso confronto.
—A comandante... perdeu?
—Sério...? O Sr. Beryl é incrível mesmo...
Eu ouvia os murmúrios dos cavaleiros. Bom, o comandante era o topo da ordem inteira. Mesmo que fosse só uma simulação de batalha, ver ela perder... e de forma um pouco injusta, devia ser chocante. Tenho que admitir isso, mesmo tendo sido eu quem a derrotou.
—É a primeira vez que vejo alguém acertar um golpe na comandante... —comentou Henbrits.
—Ha ha ha. Você também devia aprender a usar mais do que só a espada —falei. —Embora não pareça muito estiloso pra um espadachim.
—Vou levar esse conselho a sério.
Naturalmente, as pessoas se tornavam lutadores melhores quando conseguiam usar o próprio corpo como arma. Henbrits tinha bons instintos, então eu queria que ele absorvesse todo tipo de técnica e ficasse ainda mais forte do que já era.
—Mrgh. Mestre... Desde que nos separamos, você pegou uns hábitos bem feios —reclamou Allusia, com um tom meio infantil.
—Que jeito maldoso de falar —respondi. —Allusia, seu estilo com a espada é lindo, mas também... bonito demais.
Não havia garantia de que um oponente lutaria de forma justa. Nunca se sabe os tipos de truques sujos que podem usar. Contra oponentes comuns, Allusia poderia dominá-los com técnica pura, mas o mundo é grande.
Por outro lado, minhas chances de vitória eram tão pequenas que precisei explorar as brechas da técnica dela. Vencê-la só com esgrima seria extremamente difícil. Quem foi o responsável por deixá-la tão forte assim? Ela não era assim lá no dojo, então não fui eu.
Então sim, talvez ela pudesse me vencer num duelo de pura esgrima. Mas levando em conta outros tipos de estratégia, eu conseguiria pensar em duas ou três formas de derrotá-la. E se usasse truques bem sujos, dava pra pensar em mais ainda.
Não dava pra culpar ela por ter uma esgrima tão impecável—era inevitável que alguém que entrou na ordem fosse desenvolver as habilidades desse jeito. Mas ela estava um pouco acostumada demais a lutas limpas e justas. Eu esperava que ela pudesse se acostumar com o lado sujo do combate e evoluir ainda mais.
—Acredito que existem inúmeras formas de alcançar a força além da espada —afirmei.
—Sim —ela assentiu. —Você tem razão.
Essa era a lição de hoje. Eu queria que os cavaleiros ampliassem a visão deles além da esgrima. Se empunhar uma espada fosse tudo o que precisasse pra se tornar forte, a vida seria tão mais fácil...
—Por favor, continue nos guiando —disse Allusia.
—Pode deixar, farei o que puder.
Muito bem, meu corpo estava bem aquecido, e os nervos devidamente acalmados, então era hora de voltar a treinar o pessoal. Eu esperava conseguir transformar dois ou três desses cavaleiros em novas Allusias. Bom, pensando bem, talvez uma só já fosse o suficiente—ter várias provavelmente faria as coisas saírem do controle.
—A Comandante Allusia está presente?!
—Hm?
Justo quando eu me preparava pra retomar o treino, passos apressados vieram do lado de fora e as portas do salão de treinamento se abriram de repente.
—Evans, o que houve? —perguntou Allusia.
Era um dos jovens cavaleiros da Ordem de Liberion, Evans Gene. Tinha mais ou menos a mesma idade que Kewlny. Estatura mediana, porte físico razoável. Pra ser direto, era alguém com muito espaço pra crescer. Suas características mais marcantes eram os olhos meio caídos, o cabelo curto e a energia contagiante. Como os outros cavaleiros, tinha bons instintos. Treinar jovens promissores assim era algo que eu não tinha vivenciado muito no dojo. Até apareciam alguns como ele, mas por algum motivo, a maioria dos nossos alunos eram crianças. O que também tinha seu charme, de certa forma.
Enfim, Evans parecia bem nervoso. Fiquei me perguntando o que tinha acontecido.
—Membros da Ordem Sagrada de Sphenedyardvania estão aqui! —exclamou ele.
—Hmm. Sabe o posto deles? —perguntou Allusia.
—P-Pelo visto, é o próprio comandante da ordem...
—Entendo.
Opa, chegou alguém importante do nada.
—Onde ele está agora? —Allusia continuou, sem demonstrar surpresa.
—E-Ele está esperando no portão.
—Entendido. Henbrits.
—Senhora!
—Ah, espera aí —intervim. —Não é falta de educação deixar convidados esperando no portão?
Duvidava que os visitantes estivessem mentindo sobre suas patentes—quem estivesse lá com certeza incluía o comandante da Ordem Sagrada. Eu me perguntava como Evans pôde deixar alguém com esse cargo esperando do lado de fora.
—Verdade... —concordou Allusia, após pensar um pouco. —Evans, por favor, conduza-os até a sala de recepção.
—I-Irei agora mesmo!
Boa decisão. Mesmo que fosse por pouco tempo, não podíamos deixá-los esperando do lado de fora. E duvido que pudéssemos conversar ali na frente do portão. Receber visitas de maneira tão inadequada certamente seria motivo pra bronca. Evans provavelmente se apavorou com a chegada repentina. Allusia e Henbrits entenderam isso, então nem pareciam dispostos a puni-lo ou coisa assim.
—Estamos todos suados. Talvez seja bom nos secarmos antes de encontrá-los —sugeri.
—Verdade... Me perdoe, Mestre. Eu deveria saber disso.
Estávamos lidando com o comandante de uma ordem estrangeira. Mesmo que ele tenha aparecido sem marcar hora, não estávamos em condições de recebê-lo—seria falta de respeito falar com alguém assim, pingando de suor.
Então, com isso, Allusia, Henbrits e eu saímos do salão de treinamento. Nos arrumamos rapidamente e seguimos para a sala de recepção, onde o comandante da Ordem Sagrada nos aguardava.
—Isso acontece com frequência? —perguntei no caminho.
—Não, é raro —ela respondeu. —A delegação viria em breve, então achei que só nos encontraríamos todos na ocasião.
—Hmmm.
Pelo visto, essa visita repentina estava fora do normal. Faz sentido. Um comandante de ordem era realmente alguém de peso. Aparecer de surpresa—e sendo estrangeiro ainda por cima—seria um problemão se acontecesse sempre.
—Ah, sim, por que você pediu para vir junto? —perguntou Allusia.
—Bom, sabe como é. Achei que pelo menos devia dar um alô.
Não dei exatamente uma resposta, mas esse cumprimento era basicamente meu objetivo.
Allusia tinha dito que me apresentaria durante a visita da delegação. Se possível, eu queria evitar isso. Então, se conseguisse fazer uma conexão aqui, a Ordem não precisaria se dar ao trabalho de me apresentar depois. Nada melhor do que evitar uma introdução formal, cercado de figurões. Eu encararia essa formalidade se fosse realmente necessário... mas queria reduzir essa possibilidade ao máximo. No entanto, se eu contasse isso para Allusia, duvidava que ela fosse concordar. Na verdade, ela provavelmente queria era me arrastar à força pro centro do palco.
—Você conhece o comandante da Ordem Sagrada? —perguntei.
—Sim, nos encontramos todo ano. Pelo menos enquanto ele não for substituído.
Não era estranho que eles se conhecessem — afinal, ambos estavam envolvidos com assuntos internacionais. Eu, teoricamente, não deveria ter nada a ver com esse lado do mundo... mas lá estava eu, jogado bem no meio disso tudo. Não me ressentia da posição em si, mas ainda achava tudo isso difícil de digerir.
Com esses pensamentos na cabeça, e trocando mais algumas palavras, seguimos para a sala de recepção.
Quando abri a porta, vi uma silhueta grande e uma média lá dentro. Parecia que tínhamos dois convidados. Eles se levantaram dos assentos assim que entramos.
—Desculpem a demora —disse Allusia.
—Hm...? Opa, Sitrus! Quanto tempo!
A voz profunda, alta e animada chamou minha atenção. Ajustei o foco e vi um homem enorme. Essa era a melhor forma de descrevê-lo — ele era ainda mais alto que Baldur, e chutando por baixo, devia ter uns dois metros. Usava uma armadura de placas que parecia um tanto familiar, e seu cabelo castanho-escuro e comprido estava preso na nuca. A barba estava bem aparada também. Num primeiro olhar, não parecia ser um cara ruim.
—Fico feliz em te ver com saúde, Razwon —cumprimentou Allusia.
—Ha ha ha! Foi mal pela visita repentina —respondeu o homem chamado Razwon, sorrindo de orelha a orelha enquanto apertava a mão de Allusia. —Faz tempo que não te vejo também, Drout.
—Senhor. Cerca de um ano, acredito —respondeu Henbrits.
Por conta do pedido de Ibroy envolvendo a Igreja de Sphene, eu não tinha certeza de como as coisas iriam se desenrolar ali, mas parecia que os comandantes cavaleiros se davam razoavelmente bem. Aliás, só naquele momento me lembrei de que o sobrenome de Henbrits era Drout. Ninguém nunca o chamava assim, então foi uma experiência nova.
—E você... —o comandante estrangeiro se virou pra mim. —Acho que ainda não fomos apresentados. Sou Gatoga Razwon. Fui incumbido do comando da Ordem Sagrada da Igreja de Sphene em Sphenedyardvania.
—É um prazer conhecê-lo —respondi. —Sou Beryl Gardinant. Sirvo como instrutor especial da Ordem de Liberion.
Apresentações eram importantes. Ainda mais considerando meu objetivo aqui, então usei a forma mais formal que tinha preparado de antemão. Ele me encarou com olhos afiados. Somado ao porte físico, aquele olhar era realmente intimidador. Mas eu não podia vacilar. Não era como se a gente fosse lutar, afinal.
Quando a mulher ao lado de Gatoga ouviu minha apresentação, pareceu um pouco surpresa.
—Hmm... Instrutor especial —murmurou Gatoga.
—Sim. Ele é muito forte —interveio Allusia.
—Ha ha ha ha! Excelente!
Allusia, por favor, para de tentar inflar minha reputação toda vez que tem oportunidade. Isso pesa pra esse velho aqui.
—Aliás, cadê o Hinnis? —perguntou Allusia. —Achei que ele viria com você.
—Aah... —Gatoga fez uma pausa constrangida e desviou o olhar. —Aconteceu um monte de coisa com o Hinnis. —Ele se virou para a mulher ao lado e deu um tapinha nas costas dela. —Ela é a tenente-comandante agora. Minha protegida.
A mulher protestou por um instante, mas acabou desistindo. Tinha o cabelo azul tão claro que era praticamente translúcido. Mesmo suspirando de exasperação, seus traços eram gentis — passava uma impressão bastante refinada. Devia ter mais ou menos a mesma altura da Allusia e provavelmente era um pouco mais velha. Não tinha rugas nem nada, mas seu corpo curvilíneo era algo que as garotas mais novas não conseguiam imitar.
Outra coisa que chamava atenção era o jeito meio lento e peculiar de falar. Assim como Gatoga, usava uma armadura de placas completa, mas também carregava um escudo kite branco puro no braço esquerdo. Era bem raro ver alguém usando escudo. E, tirando o escudo branco, absolutamente tudo nela lembrava minha única conhecida que seguia a Igreja de Sphene.
Droga, tô com um pressentimento ruim sobre isso...
—Deixe-me apresentar —continuou Gatoga. —Essa é nossa nova tenente-comandante, Rose.
—Tee hee hee. Muito prazer. Sou Rose Mabelhart.
Rose se apresentou alegremente, então apertou a mão de Allusia e Henbrits. Quando estendeu a mão para mim, o sorriso dela ficou ainda mais brilhante.
—H-Há quanto tempo, Rose — gaguejei.
—Pois é. A sua aluna favorita, Rose Mabelhart, na área.
Quero ir embora...
—Aluna... favorita?
—Hm? Rose, vocês dois se conhecem? — perguntou Allusia.
Allusia e Gatoga reagiram cada um do seu jeito — completamente diferente, por sinal. A primeira lançava um olhar para Rose que poderia matar, enquanto o outro estava visivelmente surpreso. Allusia, você tá assustadora demais agora. Sorri, vai... Sorri...
—Ahm... Bem, a gente se conhece, sim — falei, tentando não cavar esse buraco mais fundo do que já tava.
—Hihihi. Ele é o meu estimado mestre — acrescentou Rose, tentando sabotar todos os meus esforços.
Cala a boca, sua idiota! Olha só como a Allusia tá agora! A expressão dela ficou ainda mais sombria.
—É mesmo?! — exclamou Gatoga, claramente chocado. —Eu sabia que você saiu em busca de um mestre e tal, mas foi esse cara que você encontrou?!
—Isso mesmo. Hihi.
Ao contrário da Allusia, o sorriso da Rose continuava o mesmo. A propósito, ela ainda não tinha soltado minha mão. O aperto de mão já não acabou? Espera... Ela contou sobre mim pro Gatoga? Fiquei um pouco curioso pra saber o que ela disse, mas agora não parecia ser o momento certo pra perguntar.
Allusia encarava nossas mãos entrelaçadas.
—Mestre...?
—Ah, é, tá bom, já vou soltar. Soltando agora.
A pressão que eu sentia vinda da Allusia ao meu lado era absurda. O fato de ninguém vacilar mostrava o nível das pessoas reunidas naquela sala. Mas... não era bem assim que eu queria descobrir o quão habilidosos todos eram...
—E-Então, que tal todo mundo sentar? — sugeri, já não aguentando mais esse clima pesado. Assim que a gente se sentasse, eu também teria uma certa distância física da Rose.
—Certo...
Num dos sofás, sentamos eu, Allusia e Henbrits. Do outro lado da mesa ficaram Gatoga e Rose. Por um momento, temi que a Rose fosse sentar do meu lado sem cerimônia, mas no fim das contas isso foi só uma preocupação à toa. Talvez ela tenha se intimidado porque a Allusia tomou esse lugar com uma velocidade e precisão absurdas.
—Beleza então, ahm... Por onde começar?
Essa reunião era pra ser um tipo de relatório ou algo assim, mas por algum motivo, eu tinha virado o centro das atenções. Droga...
Rose Mabelhart.
Ela me chamou de “estimado mestre”. Bem, tecnicamente, isso não tava errado. Na verdade, ela passou um tempo treinando no nosso dojo, mas diferente da Allusia e da Selna, ela apareceu mais recentemente — ficou com a gente por cerca de um ano e meio. Na época, não era óbvio que ela era uma cavaleira da Ordem Sagrada, mas segundo ela, tava viajando de um lado pro outro pra expandir a visão de mundo.
Nunca recusei ninguém que batesse à nossa porta, então ensinei bastante coisa a ela. Diferente de muitos dos meus alunos, ela não era iniciante. Já chegou com uma técnica de espada bem sólida, então foquei em passar os detalhes do estilo Gardinant — as diferenças entre o estilo do dojo e o dela — e principalmente fizemos muitos combates de treino. Depois de pouco mais de um ano, ela foi embora completamente satisfeita.
Mas não lembro de ter ensinado tanto assim a ponto de ser chamado de "estimado mestre". Ela já tinha o próprio estilo antes de aparecer no dojo. Eu sabia que ela era devota da Igreja de Sphene, mas agora ela tinha subido até o posto de tenente-comandante da Ordem Sagrada. Lembro que ela era absurdamente forte, então até faz sentido.
—É basicamente isso — disse, depois de dar uma breve explicação. —Ela passou um tempo no nosso dojo.
—Entendo... — Allusia assentiu, com os olhos cravados na Rose.
O tempo todo, Rose manteve o mesmo sorriso tranquilo. Aquela expressão era exatamente como eu lembrava — distante, mas estranhamente serena. Ela sempre foi assim. Não lembro de ter visto o rosto dela perder a compostura nem uma vez sequer. Por outro lado, a Allusia geralmente era fria, mas às vezes a expressão dela mudava completamente — o que, na verdade, era bem divertido.
Só que não tinha nada de divertido no olhar tempestuoso que ela tava agora.
—O Sr. Beryl realmente é um excelente instrutor — disse Henbrits.
—Imagina, que isso — respondi, desviando dos elogios. —Todo mundo que tem talento aprende rápido.
Mesmo que eu tenha um certo jeito pra ensinar, até onde alguém consegue chegar depende do próprio esforço e talento. O que ofereço aos meus alunos é só um empurrão na direção certa. Não é como se eu tivesse capacidade de transformar qualquer um em um espadachim de primeira linha.
—Hmm. Sendo tão experiente, nunca ouvi falar do seu nome — comentou Gatoga, inclinando a cabeça, curioso.
—Meu dojo fica escondido no interior, Sir Razwon.
—Hahaha, pode me chamar só de Gatoga. Afinal, não tem nada melhor do que ter conhecidos talentosos.
Como mencionei, passei a vida toda em Beaden até pouco tempo atrás. Vários dos meus alunos conseguiram grandes feitos, mas eu mesmo tenho só um nível razoável de habilidade. De qualquer forma, apesar do visual durão, o Gatoga era bem sociável e fácil de lidar.
—Hihihi, estou tão feliz — disse Rose, com um sorriso de orelha a orelha. —Nos encontrarmos aqui só pode ser orientação divina de Sphene, mestre.
—Ha ha ha...
O clima na sala tava absurdamente constrangedor. Allusia já tinha entendido depois da explicação, mas, pelo rosto dela, dava pra ver que alguma coisa ainda não tava batendo.
—D-De qualquer forma, o fato de vocês terem vindo até aqui deve significar que têm algum assunto a tratar, certo? — perguntei ao Gatoga, desesperado pra mudar de assunto.
Tinha que haver um motivo pra dois dos membros mais importantes da Ordem Sagrada de Sphenedyardvania estarem aqui hoje — e com certeza não era só pra me apresentar à Rose. Eles nem tinham como saber que eu estaria aqui.
—Ops, é mesmo — respondeu Gatoga. —Apesar de que... também dá pra dizer que só demos uma passada por aqui já que estávamos na área.
—Sério? — perguntou Allusia.
Isso queria dizer que o objetivo principal deles não era visitar a Ordem de Liberion. Então, o que vieram fazer em Liberis?
—A delegação chega em breve, não é? — continuou Gatoga. —A Rose não conhece direito Baltrain, então ela veio se preparar.
— Entendo.
— Aham — respondeu Rose, toda tranquila. — Tudo que eu sei é que é uma cidade grande e maravilhosa.
No dia da chegada da delegação, eu realmente não estava ligando pra assuntos como deslocamento ou segurança, mas Gatoga tinha um ponto — seria meio preocupante deixar a Rose cumprir seu dever em um lugar completamente desconhecido. Ainda mais quando ela precisava proteger gente importante. Ao virem mais cedo, provavelmente estavam tentando deixá-la mais ambientada, nem que fosse só um pouco.
— O plano é ficar alguns dias por aqui e ajudar ela a memorizar a geografia básica — explicou Gatoga.
— Nesse caso, gostariam que alguns cavaleiros os acompanhassem? — ofereceu Allusia.
— Aaah, não. Não vai ser necessário. A gente combinou com um bispo local pra nos guiar.
Baltrain tinha várias atrações turísticas e restaurantes, então era o lugar perfeito pra passar o tempo. Não que esse fosse o objetivo, claro. Mas era bem mais agradável vagar por um campo florido do que por um deserto. Pensando bem, o bispo da Igreja de Sphene em Liberis era o Reveos. Será que ele ainda era bispo? Duvido que tenha sido absolvido. Mas esse não parecia o melhor momento pra perguntar, então resolvi ficar quieto. Se surgir uma oportunidade, vou perguntar pra Lucy ou pro Ibroy como aquilo acabou.
— Se pudesse escolher, eu preferia ter o Mestre Beryl como meu guia — disse Rose, olhando direto pra mim.
— Ha ha ha...
Ri, tentando disfarçar, mas Allusia já estava exalando aquela aura assustadora de novo. Achei que não teria problema ajudar um pouco no turismo, mas eu mesmo não conhecia Baltrain tão bem assim. Sabia identificar alguns pontos importantes do distrito central, mas era praticamente ignorante no resto da cidade. Quanto ao turismo, eu podia dizer que o palácio ficava no distrito norte, mas era praticamente tudo o que eu sabia — e eu nem saberia como chegar lá.
— Ah, sim. Este ano, a visita inclui apresentar a cidade a Sua Alteza, o Primeiro Príncipe — explicou Gatoga. — Um aviso oficial deve chegar em breve. Ficamos sob seus cuidados.
— Entendido.
O Primeiro Príncipe, hein? Nunca conheci nem um nobre, quanto mais alguém da realeza. Será que ele brilha? Eu sou só um plebeu, então essa é basicamente a única coisa que penso sobre gente real. Allusia, Henbrits, Gatoga e Rose provavelmente vão ser os responsáveis por guiá-los. O melhor pra mim seria me encolher num canto onde não atrapalhe ninguém.
— Bom, então, desculpe incomodar — disse Gatoga. — Fico feliz por ter conseguido ver vocês dois depois de tanto tempo.
— O sentimento é mútuo — respondeu Allusia. — Até a próxima.
Gatoga e Rose se levantaram. O objetivo deles não era bater papo, então provavelmente não queriam abusar da nossa hospitalidade. Além disso, a visita deles nem tinha sido esperada. Tivemos até que interromper o treinamento dos cavaleiros pra recebê-los.
— Hihihi. Mestre, até a próxima.
— É. Até mais, Rose.
Ela era a subcomandante da Ordem Sagrada, então nos veríamos de novo quando a delegação chegasse. Por isso, nossas despedidas foram bem simples.
— Henbrits, acompanhe-os — ordenou Allusia.
— Sim, senhora.
Gatoga fez um leve aceno respeitoso. — Desculpe por tomar seu tempo.
Henbrits acompanhou Gatoga e Rose até a saída, deixando eu e Allusia sozinhos. Justo quando eu ia sugerir voltarmos ao salão de treinamento, Allusia falou:
— Mestre.
— Hm? O que foi?
— O que exatamente ela quis dizer com “aluno favorito”?
Ainda tá pensando nisso?
— Uhhh... A R-Rose que inventou isso sozinha — respondi.
— É mesmo?
Pelo menos, eu nunca chamei ela disso. Ela era, claro, uma das alunas que estudaram esgrima comigo, mesmo que por apenas um ano e meio, então eu tinha carinho por ela. Mas seria difícil dizer se era a minha favorita. Tentei passar isso de forma implícita, mas Allusia parecia claramente insatisfeita. Bom, ela já tava com essa aura nos últimos minutos, então a atitude atual nem era tão diferente assim.
Hmmmm, o que fazer?
— Não dá pra escolher favoritos entre os alunos — declarei. — Você faz isso com seus cavaleiros?
— Isso... é verdade.
Essa era minha opinião sincera. Todos eram valiosos pra mim — todos eram meus queridos alunos. Se alguém me obrigasse a classificar Allusia, Selna, Kewlny e Ficelle com base em quem eu mais gostava, eu não conseguiria. Se fosse forçado a escolher, diria que todos são meus “favoritos”.
— Mas acho que vale a pena dizer... Você também é uma das minhas alunas preciosas, Allusia.
— Entendo...
Isso pareceu ser o suficiente pra ela. Diferente da expressão feroz de antes, agora ela me encarava com um sorriso gentil. Yup, um sorriso combina mais com uma beldade. Todo mundo prefere ver uma dama sorrindo.
— Certo então, voltamos pro salão de treinamento? — sugeri.
— Sim, vamos.
A visita foi inesperada, mas nós éramos instrutores ali. Hora de passar mais um dia suando com os cavaleiros.
◇
Com o treinamento do dia encerrado, tudo que restava era ir pra casa. Eu estava no meio da dúvida se ia direto ou passava em algum restaurante no caminho, quando uma mulher me chamou no portão do prédio.
— Olá, Mestre.
— Rose...? O que houve?
Era a subcomandante da Ordem Sagrada — e ela devia ter ido embora depois do nosso breve encontro mais cedo. Não usava mais a armadura; em vez disso, vestia um cardigã leve e uma saia longa.
— Hihihi, eu tava morrendo de saudade, então vim te ver.
— Aaah, é mesmo...
Aparentemente, eu era o motivo dela estar ali. Hmmm, não é como se eu tivesse planos. Se eu não chegar muito tarde, a Mui não vai reclamar.
— Então? O que você quer? — perguntei.
— Ah, nada demais.
— Hã?
Eu estava pronto pra escutar, mas aí ela solta que não tem nada pra me dizer. Então por que veio aqui? Esse velho aqui não tem tanto tempo li— Bom, com o treino acabado, acho que tô com tempo de sobra. Tudo que me resta agora é ir pra casa, comer e dormir.
— Faz tempo, né? Que tal batermos um papo? — disse Rose. — E também, se puder me mostrar a cidade, eu agradeceria.
— Tá, tá bom. Mas só por um tempinho.
Não me importei com o primeiro pedido, mas quanto ao segundo... eu não tinha tanta confiança. Ainda não conhecia bem o suficiente a região pra sair guiando alguém por Baltrain. Bom, provavelmente eu sabia mais que uma cavaleira estrangeira. Não fazia sentido ficar parado, então comecei a andar. Sem precisar dizer nada, Rose veio logo ao meu lado.
Ficar andando em silêncio era estranho, então puxei assunto.
— Realmente faz tempo, hein? — falei. — Tem passado bem?
— Uhum. Tenho estado bem, sim.
Rose era sem dúvida uma bela mulher, mas ao contrário da Allusia e da Selna, ela era praticamente uma desconhecida em Liberis, então não chamamos muita atenção andando pela rua. Isso era ótimo. De qualquer forma, eu ainda era um velho andando com uma mulher bonita, então a situação nem era tão diferente assim. Pelo menos era melhor do que sair com a Lucy, que parecia só uma garotinha — pelo menos não precisava me preocupar com a guarda atrás de mim dessa vez.
— Levei um susto quando te vi — disse Rose animada. — Nunca imaginei que você estaria aqui em Baltrain.
— Ha ha ha, muita coisa aconteceu...
É... muita coisa mesmo... Complicado demais pra resumir rapidinho. Ou talvez não. Se quisesse mesmo, dava pra resumir em uma frase: Allusia me indicou como instrutor especial — basicamente foi isso. Mas sei lá, não queria contar a história desse jeito. Acho que era só um resquício da vaidade de um velho.
— Ah, e desde quando você virou cavaleira? — perguntei.
— Desde logo depois de deixar sua tutela — respondeu Rose. — "Por que não usa sua espada a favor do seu país, já que é tão boa?" Foi o que me disseram.
— Ha ha ha, deixa eu adivinhar... Gatoga?
— Acertou. Mas, na verdade, o que eu queria era só continuar minha jornada com calma.
O sorriso da Rose tinha um leve toque de constrangimento. Diferente da Allusia ou do Henbrits, ela não era do tipo que entregava tudo de si à nação. Claro, essa era só minha opinião pessoal — não queria dizer que ela era irresponsável nem nada. A Rose sempre foi sincera em relação à espada e à Igreja de Sphene, mas como eu via a Allusia como a cavaleira modelo devota a Liberis, acabava notando essas diferenças.
— Bom, é uma experiência valiosa também — falei.
— Aff, você só diz isso porque esse tipo de coisa não tem nada a ver com você.
— Eu acabei assumindo um cargo na ordem — rebati. — Tem tudo a ver comigo.
Eu não tinha sido oficialmente nomeado cavaleiro, mas como instrutor especial da Ordem de Liberion, não era mais um civil comum. Minha nomeação veio com selo real, então havia momentos em que eu não podia mais me passar por um velhinho qualquer só pra fugir das coisas. Nunca imaginei que estaria me metendo num mundo desses nessa altura da vida. Ainda assim, não tinha como parar ou voltar no tempo, então só me restava olhar pra frente. No fundo, eu nem estava tão insatisfeito quanto deixava parecer, mesmo que a situação ainda fosse meio absurda pra mim.
— Aprender esgrima com você e fazer minhas orações pra Sphene... Foram os melhores tempos da minha vida — disse Rose.
— Fico feliz em ouvir isso.
Tive muitos alunos no dojo. Mesmo sendo no meio do nada, até que a gente prosperou razoavelmente. Mas isso não queria dizer que todo mundo seguia até o fim. Tinha gente que simplesmente parava de aparecer, ou que precisava se mudar e não conseguia mais frequentar. Eu não podia dizer com certeza que todo mundo ficou satisfeito com o tempo que passou por lá. Ouvir a Rose afirmar com tanta clareza que gostou da experiência... era mais do que eu merecia.
— Mas agora você já subiu até o posto de tenente-comandante, não foi? — perguntei.
— Sou só uma substituta.
Cada vez mais meus alunos estavam virando figurões. Nunca imaginei que algum fosse chegar tão longe, até além das fronteiras de Liberis.
— Foi mesmo um choque enorme... — murmurou Rose com um sorriso meio distante.
— Rose?
— Nada não.
Bom, eu mesmo estava bem surpreso com a minha situação — dava pra entender que uma pupila também ficasse abalada com o rumo que a vida tomou.
— Ah, e o Mordea? Ele anda bem? — perguntou Rose.
— Tá do mesmo jeito de sempre. Mas tem reclamado das costas ultimamente.
— Ih, será que é a idade pesando?
— Parece que sim. Apesar de todo o jeito dele, ele já tem bastante idade.
Seguimos andando sem rumo pelas ruas de Baltrain, conversando de forma bem tranquila. Ela não era tão meticulosa quanto a Allusia, nem ousada como a Selna. Não era inocente como a Kewlny, nem calada como a Ficelle. Estar perto dela tinha um conforto natural, por causa da sua personalidade. Ela sempre respondia logo às conversas, mas sem ser irritante. Era realmente agradável.
A conversa acabou dando uma pausa, e Rose aproveitou pra observar a paisagem ao nosso redor.
— Que cidade linda... — comentou.
— Hm? Acho que sim. Não é ruim, não.
Baltrain era um lugar bom. Movimentado, mas mesmo com tanta gente, a ordem pública era bem mantida. Talvez fosse mérito da Ordem de Liberion. Havia muitas comodidades ali, e a vida era confortável.
— Hihi, dá até vontade de me mudar pra cá — disse Rose.
— Ei, você tem deveres a cumprir, lembra?
— Heh heh heh...
Ao vê-la rindo desse jeito, qualquer um diria que ela não tinha a idade que tinha. Mas como eu convivi com ela no dojo (mesmo que por pouco tempo), sabia que essa leveza vinha do seu jeito afável. Igual à Kewlny — era fácil se aproximar da Rose, mesmo que as duas passassem impressões bem diferentes.
— Mestre.
— Hm? O que foi?
Nosso passeio despreocupado e sem rumo acabou nos levando para bem longe do escritório. Estávamos agora numa rua meio vazia do distrito central de Baltrain. Com prédios relativamente baixos e pouco movimento ao fundo, Rose se curvou um pouco, depois levantou a cabeça na minha frente.
— Se algum dia eu me mudar, por favor, venha me buscar.
— Você é bem grandinha pra uma criança perdida.
Na improvável hipótese de eu acabar morando com a Rose, parecia que a Mui ia ser domada num piscar de olhos. Que pensamento assustador. A personalidade da Rose a tornava extremamente eficaz com crianças. Não importava o quanto fossem rebeldes, acabavam se rendendo rapidinho. Nos tempos do dojo, meus alunos adoravam ela.
— Hee hee, então vou me despedindo por aqui.
— Beleza. Fico feliz que a gente tenha conseguido colocar o papo em dia.
— Uhum, eu também.
Na real, nem mostrei nada de Baltrain pra ela — só ficamos andando e conversando à toa. Será que isso foi suficiente? Bem, pelo rosto dela, parecia que não achava que eu desperdicei o tempo dela, então já tava valendo.
— Até a próxima, Mestre. Muito obrigada por hoje.
— Pode deixar. Até mais.
Provavelmente, a próxima vez que nos víssemos seria durante o passeio turístico do primeiro príncipe de Sphenedyardvania. Ia ser trabalho pra nós dois, então duvidava que conseguíssemos conversar em particular. Nesse sentido, até que foi bom termos batido esse papo hoje.
— Certo, então... Hora de ir pra casa, acho.
Depois de me despedir da Rose, encarei o sol se pondo no oeste. Ainda era meio cedo pra voltar pra casa, mas também não tinha tempo suficiente pra passar em outro lugar. Melhor ir direto pra casa e ajudar a Mui a preparar o jantar ou algo assim. Pensando no cardápio de hoje à noite, considerei dar uma passada no distrito oeste pra comprar alguns ingredientes.
Mais uma vez, caminhei pelas ruas de Baltrain.
Depois da visita repentina da Gatoga e da Rose, o tempo passou tranquilamente, sem nada demais acontecendo. Não que minha vida em Baltrain fosse cheia de eventos, pra começo de conversa. Tudo o que eu tinha que fazer era treinar os cavaleiros e seguir a rotina com a Mui — e eu estava começando a me acostumar com as duas coisas.
Falando nisso, nos primeiros dias depois que a Mui começou a frequentar o instituto, ela voltava pra casa completamente exausta. Acontece que tinha gente demais por lá, e todo mundo queria puxar papo ou levá-la pra algum lugar. De vez em quando, ela murmurava "não aguento mais..." pra si mesma. Eu disse pra ela que esses eram os primeiros passos no caminho de uma vida normal, então que ela precisava se esforçar ao máximo.
Ainda assim, algumas coisas ajudaram a Mui a se acalmar. Descobrimos que o instituto de magia dividia os alunos em turmas, como qualquer escola. A Kinera, com quem tínhamos ficado mais próximos, acabou sendo a professora responsável da Mui — e eu fiquei aliviado com isso. Ela tinha sido quem explicou um monte de coisas pra gente sobre o instituto. A Mui também ficou visivelmente aliviada. Até hoje me lembro bem da expressão tímida, mas feliz, dela contando tudo isso no jantar. É uma lembrança que vou guardar pra sempre.
Quanto a mim, no momento...
— Ficou bem em você.
— S-Sério...? Ha ha ha...
Eu estava numa loja, experimentando uma roupa nova que comprei com a Allusia. Fui eu que escolhi, mas ainda assim me sentia estranho usando aquilo. Diferente das minhas roupas de sempre, essa era bem apertada no peito. Era uma roupa pra usar em encontros formais com figurões, então me disseram que um caimento mais justo era normal. Não dava pra discordar muito disso... mas ainda assim era desconfortável. Será que isso foi mesmo feito sob medida?
Olhei meu reflexo no espelho enquanto o atendente me elogiava. A jaqueta preta era praticamente o oposto do que eu usava normalmente. Pelo menos o bordado branco dava um destaque legal. Mas, resumindo... parecia que quem fazia o visual ali eram as roupas, e não eu. A jaqueta me deixava com uma aparência mais refinada do que algo folgado, mas ainda assim dava a sensação de que era ela quem me vestia — não o contrário.
Ah, e também comprei uma calça combinando — uma calça social preta, sem enfeite nenhum. Ia ficar ridículo usar uma jaqueta dessas com as calças que costumo usar. Enfim, era difícil ter uma opinião definitiva só com o que eu achava. A Allusia e o atendente pareciam que iam me elogiar de qualquer jeito. Talvez o melhor fosse perguntar pra Mui — que não tinha papas na língua.
— Vai dar sessenta e cinco mil dalcs.
— Ah, certo.
Paguei a conta, incluindo a roupa e o ajuste personalizado. Hmmm, eu já sabia o preço, mas ainda assim... foi difícil de engolir. Nunca tinha gastado mais de dez mil dalcs com roupas, então não teve como evitar a careta. Graças ao meu salário como instrutor especial e à grana que recebi do Ibroy, minha carteira estava bem abastecida. Mas mesmo assim, um gasto desse tamanho pesava no coração. Se fosse pra Mui, eu teria pago sem hesitar. Só que, quando se tratava de gastar comigo mesmo... dava um aperto. Infelizmente, pra esse evento que vinha aí, minha aparência importava. Então não tinha jeito.
— Agradecemos pela preferência.
Bom, compras feitas. Talvez seja hora de voltar pra casa. Como eu já estava usando a roupa nova, achei que seria bom me acostumar com ela usando durante o caminho de volta. Talvez chamasse um pouco de atenção demais pra uma caminhada na cidade, mas no dia da comitiva eu ia atrair todos os olhares mesmo, então era bom ir se acostumando.
A roupa estava bem apertada, mas talvez por causa da qualidade do tecido, era surpreendentemente fácil de se mover com ela. Parece que daria pra lidar numa boa mesmo se rolasse algum imprevisto. Só podia torcer pra que nada disso acontecesse.
— Tá bem movimentado hoje...
O distrito central sempre foi movimentado, mas ultimamente parecia ainda mais agitado do que o normal. Pelo que me disseram, a delegação anual de Sphenedyardvania coincidiu com um pequeno festival em Baltrain. Para ser mais exato, Baltrain realizava esse festival todo ano nessa época, e eles haviam combinado para que a delegação de Sphenedyardvania viesse justamente nessa data, como forma de estreitar relações.
Lá no interior, eu nunca tive nada a ver com festivais. Mas agora meu papel era ser um escolta nessa cidade toda animada, então eu não podia relaxar demais — com certeza não dava pra simplesmente curtir o festival. A escolta da delegação do ano passado correu bem, então talvez não tenha nada com o que se preocupar. Afinal, tínhamos uma grande concentração de cavaleiros habilidosos em Allusia, Henbrits, Gatoga e Rose. Seria difícil alguém causar encrenca.
Falando nesse tour turístico, o primeiro príncipe de Sphenedyardvania estava programado para vir do exterior — ele seria acompanhado pela terceira princesa de Liberis. Eu não manjava muito de protocolo, mas aparentemente era comum que um representante estrangeiro viesse acompanhado de alguém de status semelhante. Daí entrava a princesa. Allusia, Henbrits e os cavaleiros da Ordem de Liberion seriam responsáveis por escoltar a princesa, enquanto a Ordem Sagrada cuidaria do príncipe de Sphenedyardvania.
Minha posição ainda não tinha sido decidida. Provavelmente os figurões lá de cima estavam divididos sobre como um instrutor especial se encaixava nesses arranjos todos. Eu só queria ficar de boa — talvez cuidar da segurança nas ruas ou algo assim. Mas o simples fato de eu ter comprado essas roupas já deixava claro que era bem improvável que eu fosse deixado de lado.
Enquanto me aproximava da porta da frente de casa, fiz uma prece para ser designado pra algum canto discreto. Girei a maçaneta e entrei.
— Voltei — anunciei.
— Uhum, bem-vindo de volta — respondeu Mui. Ela já parecia meio acostumada com essa rotina. Me olhou de cima a baixo e a expressão dela se contorceu de um jeito bem claro. — Que roupa é essa?
— Lembra que vai chegar uma delegação estrangeira em breve? Eu fui buscar a roupa pra isso. Só vesti pra voltar pra casa mesmo.
— Hmmm...
A expressão da Mui agora era difícil de descrever. Tipo um "Nossa, sério isso?" mental.
Será que a roupa ficou tão ruim assim em mim? O pensamento era meio deprê.
— Será que... não combinou comigo? — perguntei meio hesitante.
— Ah... não. Tá tudo bem — ela disse depois de um momento de silêncio meio constrangedor. — Não ficou ruim.
— E-Eu entendo.
A resposta dela foi bem vaga. Por que ela hesitou daquele jeito? Isso ficou na minha cabeça. Não que eu estivesse esperando um “Olha só como ficou incrível em você!”, mas a reação dela foi pior do que eu esperava. Meio brochante, considerando quanto eu gastei nessa roupa.
— Mais importante: o jantar tá pronto — disse Mui.
— C-Certo. Beleza.
Então o jantar era mais importante. Que desanimador. De qualquer forma, eu não queria sujar a roupa nova, então decidi trocar antes de comer. Tinha escolhido preto, então não faria tanta diferença se sujasse um pouco, mas ainda assim era melhor manter limpo.
— Você realmente fica melhor com sua roupa de sempre... — Mui murmurou.
— Hm? Disse alguma coisa?
— Não, nada demais.
Acho que a Mui murmurou alguma coisa enquanto eu tirava o casaco, mas não deu pra entender direito. Bom, pelo menos ela não falou diretamente que não combinava comigo... ou mandou eu arrancar aquilo logo. A Allusia tinha dito que a roupa era simples, mas não falou que ficou ruim em mim. Como eu não confio nada no meu próprio senso de moda, só me restava acreditar nela.
— Obrigado por esperar. Vamos comer?
— Uhum.
Agora com minha roupa de sempre, fomos até a sala. Essa sim era a roupa mais confortável pra mim. O jantar de hoje era, mais uma vez, ensopado. Dessa vez usamos um pouco da linguiça defumada que eu tinha esbanjado lá no distrito oeste. Parecia bem carnuda e gostosa. Mesmo assim, já estava na hora de dar uma variada no cardápio da Mui. Fazer ensopado era simples, mas se ela só cozinhasse isso, não ia aprender muita coisa. Pelo menos ela estava cortando os legumes e a carne bem melhor. Fiquei feliz de ver esse tipo de progresso.
— Valeu pela comida — eu disse.
— Uhum. Obrigada pela comida.
Dividi a mesa com a Mui e jantamos juntos. E assim foi o dia, dois dias antes da chegada da delegação de Sphenedyardvania.
◇
— Atenção, todos!
A voz firme da Allusia ecoou pela praça central silenciosa da sede da Ordem de Liberion. Ninguém ali era sem noção o suficiente pra fazer sequer um barulhinho. Todos sabiam da importância da missão que estavam prestes a cumprir.
— Como todos sabem, a delegação de Sphenedyardvania entrará no reino hoje.
Finalmente chegou a hora. A delegação estava a caminho de Liberis. Provavelmente já estavam indo para o palácio, escoltados pela Ordem Sagrada e pela guarda real.
— Às dez da manhã, eles farão um tour por Baltrain acompanhados de Sua Alteza, a Terceira Princesa.
Depois disso, nós iríamos até o palácio para escoltar a terceira princesa de Liberis e o primeiro príncipe de Sphenedyardvania. Naturalmente, não dava pra deixar a ordem inteira aglomerada ao redor deles. Apenas alguns cavaleiros selecionados iriam até o palácio. O restante trabalharia junto com a guarda real para patrulhar as ruas.
Na minha opinião, isso já era mais do que suficiente. Ainda assim, como o trabalho envolvia escoltar figuras centrais de dois reinos, as coisas tinham que dar certo logo de primeira — não haveria segunda chance pra corrigir falhas. Nosso papel era preparar tudo para que absolutamente nada desse errado.
Aliás, a voz da Allusia falando em público era mesmo impressionante. Ela normalmente falava com um tom suave, então ouvir ela desse jeito me fazia perceber ainda mais a diferença entre a pessoa de sempre e a comandante da ordem. Isso deixava bem claro o poder e a posição que ela ocupava. De fato, ela tinha se tornado uma mulher admirável.
—Conforme discutido anteriormente, vamos nos dividir em cinco grupos. Cada um será designado para escolta ou patrulhamento da rota planejada. O primeiro grupo será composto por mim, Henbrits e o Sr. Beryl. Nós acompanharemos Sua Alteza.
Allusia revisou mais uma vez a disposição do dia. Pelo visto, os superiores hesitaram até o último segundo sobre onde me posicionar, mas no fim, fui designado para escoltar a princesa. Não tenho a menor ideia de como chegaram a essa conclusão.
—Em seguida, o segundo grupo...
Oficiais foram nomeados para cada esquadrão, e o plano de defesa foi traçado. Cara, esses grupos parecem bem mais tranquilos. Será que posso trocar? Mas é, não tem como escapar do meu destino. Vou ter que encarar os figurões. A vida não é fácil.
Depois de explicar a composição dos grupos, Allusia olhou ao redor da praça para os cavaleiros.
—Alguma dúvida?
Aparentemente, nenhuma. Ninguém abriu a boca. Em vez disso, todos demonstraram empolgação. No fim das contas, era só uma missão de escolta, mas era uma chance rara de fazer isso por membros da realeza. O desempenho da ordem estava diretamente ligado à reputação com a família real e com outro reino, então os cavaleiros estavam a mil. Já eu, estava menos animado e mais preparado pra lutar pela vida — no sentido figurado. Colocar um velho do interior pra proteger a realeza é pular várias etapas de uma vez.
—Em marcha!
—Sim, senhora!
Allusia encerrou o discurso com essa ordem firme, e todos começaram a se dividir em grupos.
—Bom trabalho, Allusia — falei em meio à movimentação.
—Nosso trabalho está só começando — respondeu com um tom suave. A voz de discurso público já tinha ficado pra trás.
—Enfim... Eu realmente preciso acompanhar a princesa? — perguntei, na esperança de escapar.
—Foi decidido com base nas habilidades... Há algum problema com isso?
—Não, ahm... Tá tudo certo. Desculpa a pergunta esquisita.
O olhar da Allusia mostrava claramente que ela não fazia ideia do que eu queria dizer. Ela nem cogitava duvidar da minha capacidade — e eu queria que ela duvidasse um pouquinho, só pra variar. Eu queria reclamar por terem jogado um velho no palco principal, mas reclamar não ia adiantar nada. No fim, tudo foi decidido no momento em que aceitei o cargo de instrutor especial. Onde foram parar meus dias tranquilos como professor no dojo?
—O que tiver que ser, será... — murmurei, com a voz se perdendo no céu.
Era um dia sem nuvens — o clima perfeito para um passeio real.
—Olá, Allusia. Conto com você hoje.
—Senhora. Pelo orgulho da Ordem de Liberion, garantiremos sua segurança.
Algum tempo depois do encontro no escritório, lá estava eu diante de toda a realeza nos portões principais do palácio. Allusia representava nós três ao se dirigir à nossa protegida — a terceira princesa do Reino de Liberis, Salacia Ashford el Liberis.
Parecia estar na metade da adolescência e ainda tinha um ar bem doce. Seus olhos eram especialmente grandes e encantadores, lembrando um pouco os da Kewlny. Mas, em contraste com a aparência fofa, ela carregava uma postura calma e uma presença que não era diminuída pela juventude. Esse era o poder da realeza.
—Henbrits, conto com você também.
—Senhora! Pode deixar comigo!
A princesa cumprimentava cada escolta com carinho. Henbrits provavelmente nem esperava ser chamado diretamente. A resposta dele saiu até um pouco aguda. Entendo bem a tensão. Meu coração também estava disparado.
—Hmmm... Você seria o instrutor especial, por acaso?
Opa, sabia que ia chegar minha vez. Mas pera aí... Como é que você sabe de mim, princesa? De qualquer forma, Allusia e Henbrits estavam de armadura, então eu era o único com um casaco simples. Me sentia completamente deslocado. Mas agora não dava mais pra voltar atrás. Respirei fundo e firmei a postura.
—É uma honra conhecê-la. Meu nome é Beryl Gardinant. Fui nomeado instrutor especial da Ordem de Liberion. Hoje estou encarregado de acompanhar a comandante e o subcomandante na sua proteção.
—Certo, vou contar com você também.
Será que falei certo? Ficou decente? Firmei a postura, mas isso não mudou o quanto eu estava nervoso. Meu primeiro encontro com o topo da sociedade humana deixou meu coração parecendo um tambor.
—Princesa Salacia.
Enquanto esses pensamentos passavam pela minha cabeça, ouvi uma voz imponente ao lado. Virei para ver um jovem que também exalava uma aura impressionante. Parecia estar no limiar da idade adulta. Seu cabelo loiro, bem arrumado, refletia a luz do sol e brilhava intensamente. Os olhos, claros como jade, transmitiam uma imagem de alguém íntegro e honesto. Muito provavelmente — não, com certeza — esse era o primeiro príncipe de Sphenedyardvania.
—Príncipe Glenn, estou ansiosa pelo passeio de hoje.
—O prazer é meu. Baltrain é uma cidade linda. Parece que teremos um dia encantador.
Os dois trocaram cumprimentos calorosos e apertaram as mãos. Era o encontro do primeiro príncipe de Sphenedyardvania com a terceira princesa de Liberis. Era como se flores estivessem prestes a brotar ao redor deles. E eu aqui, um velho do interior no meio disso tudo? Será mesmo que isso tá certo?
Gatoga e Rose também estavam ao lado do Príncipe Glenn. Como esperado, foram designados como escoltas pessoais dele. Os dois notaram meu olhar, e Rose acenou discretamente com um sorriso. Concentra no dever, caramba.
—Então, vamos? — perguntou a princesa. — Acontece que tem um festival em Baltrain agora.
O Príncipe Glenn sorriu. — Sim, ouvi falar. Este é realmente um país animado e maravilhoso.
Os dois ainda trocaram mais algumas palavras. Era bom ver que se davam bem. Apesar de... essa delegação era um símbolo da amizade entre os reinos, então tinha a opinião pública a se considerar. Mesmo que se detestassem, não seriam tolos a ponto de deixar isso transparecer.
— De qualquer forma, fico feliz que tenhamos sido abençoados com um bom tempo hoje.
— De fato... P-Permite uma vista perfeita da sua beleza, Princesa Salacia.
— Ora, ora...! Hihi.
Hm? Príncipe... isso foi uma cantada? Eu estava perto o suficiente pra ouvir a conversa deles, e não deu pra ignorar que o príncipe tava claramente tentando dar em cima dela. E ainda ficou todo envergonhado depois. Se vai ficar corado, é melhor nem dizer nada, né? Quase soltei essa, mas seria extremamente indelicado da minha parte. Não queria ser grosseiro. Em vez disso, só fiquei observando com um sorriso. A princesa não pareceu incomodada, então a harmonia entre os dois tava perfeita do início ao fim. Nobre com nobre, né? Não entendo nada desse mundo da alta sociedade.
— Princesa Salacia, sua mão, por favor.
— Muito obrigada.
O príncipe e a princesa embarcaram numa carruagem magnífica que já os aguardava diante do portão. Havia outras carruagens também — essas eram pros guardas, e serviriam como isca, caso algo acontecesse. Os dois nobres estavam acompanhados de seus respectivos camareiros. Eu ainda não tinha falado com eles, mas pelo jeito deles, não eram apenas atendentes — provavelmente sabiam lutar também. Eu jurava que o príncipe e a princesa iam em carruagens separadas. Será que tinha algum motivo por trás disso?
Mas, bom, não era da minha conta. O plano do dia era dar a volta pelo distrito norte, depois o central, fazer uma pausa pro almoço e terminar no distrito oeste. Segundo o cronograma, estaríamos de volta ao palácio antes do entardecer — ou, no máximo, no pôr do sol. Não sei o que vinha depois disso, mas se eu tivesse que me envolver, com certeza a Allusia ia me avisar.
Nessas horas, ser apenas um instrutor especial e não um cavaleiro de verdade tinha suas vantagens. Eu não precisava comparecer a reuniões ou conferências de cavaleiros, essas coisas. A Allusia adorava me empurrar pra frente por algum motivo, mas minha presença nem sempre era bem-vinda em certos ambientes. E tudo bem — só o fato da terceira princesa saber meu nome e meu rosto já era pressão demais pra esse velho aqui. Queria distância de mais encrenca.
— Estamos partindo.
Quando subi na minha carruagem, o cocheiro me avisou que íamos sair. E assim, o passeio turístico do primeiro príncipe começou sem problemas.
— O tempo tá realmente ótimo hoje.
Fiquei tranquilo, olhando pela janela enquanto a carruagem sacolejava de um lado pro outro. No total, eram quatro carruagens. O príncipe e a princesa estavam na principal, e as outras estavam com os guardas selecionados. Quem não foi escolhido ia a pé ou ficou posicionado em pontos estratégicos ao longo do caminho. Por sinal, eu era o único na minha carruagem, tirando o cocheiro. Então, mesmo estando de escolta, eu tava de boa, só observando a cidade animada.
— Haaah... Não tem nada pra fazer mesmo.
Segurei um bocejo e murmurei pra mim mesmo. O príncipe e a princesa estavam basicamente só dando uma volta de carruagem pela cidade. Claro, iam descer pra comer ou visitar alguma loja específica, mas no geral, iam passar a maior parte do tempo dentro da carruagem. Ou seja, eu mal ia ficar na presença da realeza.
A Allusia e o Henbrits estavam andando do lado de fora pra proteger as carruagens. Por algum motivo, eu acabei dentro de uma como isca. Não faço ideia de como decidiram isso. Mas era muito mais confortável ficar sentado aqui do que andando por aí. Talvez fosse porque eu era o único guarda sem armadura. Não que isso me incomodasse. Ainda assim, não dava pra parecer entediado em público, então ia fazer meu trabalho direito quando fosse preciso.
Por enquanto, não tinha nada pra fazer além de aproveitar a carona. Acho que tô perdoado por resmungar baixinho.
A cidade estava bem mais animada que o normal. Como a Princesa Salacia tinha comentado, Baltrain estava em clima de festival. Eu não fazia ideia do motivo, mas aparentemente era algo anual, então devia ter alguma importância histórica. O distrito norte era mais voltado pro palácio e as residências dos ricos, então tinha menos lojas que os distritos central e oeste. Mesmo assim, o clima festivo estava em todo lugar, e dava pra ver várias barraquinhas montadas em frente às casas por onde passávamos.
Nossa, aquela carne ali parece deliciosa. Com esse pensamento, fiquei imaginando onde a gente ia comer. Como escoltas, provavelmente no mesmo lugar que o príncipe e a princesa.
— Hm...?
A carruagem parou. Dei uma espiada lá fora. As outras também tinham parado. Os camareiros saíram da carruagem principal, seguidos pelos nobres. Tinha algo estranho — isso não tava no roteiro. Mas se os escoltados estavam saindo, eu também tinha que sair. Abri a porta rapidinho e vi todos os outros guardas — Allusia, Henbrits, Gatoga e Rose — reunidos.
— Aconteceu alguma coisa? — perguntou Allusia à princesa, como nossa representante.
A princesa manteve o sorriso encantador, enquanto o príncipe parecia um pouco sem jeito e envergonhado.
— Não, nada sério — respondeu o Príncipe Glenn. — Vi um prendedor de cabelo naquela loja e me chamou a atenção...
— Sim, mesmo de longe, era realmente lindo — concordou a Princesa Salacia.
Pelo visto, os dois estavam apreciando a paisagem e viram uma loja de acessórios. Estavam falando de prendedores de cabelo, então provavelmente não era pra ele. Muito provavelmente, queria dar um presente pra princesa.
— Entendido. Por favor, deixem a segurança conosco — disse Allusia após hesitar por um instante.
— Sim, estamos em boas mãos.
Não podíamos desobedecer à realeza, então seguimos obedientemente. Eu estava parado em frente à loja com Henbrits. Gatoga e Rose estavam escutando curiosos atrás da porta, mas ao ouvirem a conversa, Gatoga deu um sorriso irônico e Rose mostrou seu sorriso habitual. Bom, não dava pra virar pros nobres e dizer: “Não mudem a porcaria do cronograma por conta própria, seus idiotas.” Ninguém tinha coragem de abrir a boca na frente da mais alta autoridade.
Ainda assim, Allusia manteve o tom e a expressão serenos, fazendo o possível para dar um aviso sutil.
— Ainda assim, por favor, evitem fazer isso novamente, se possível — disse Allusia. — Se for necessário, avisem os assistentes com antecedência e faremos o possível para nos adaptar.
Isso era melhor do que lidar com tiranos, mas ainda assim não era uma boa ideia adicionar paradas fora do cronograma. Era justo alertá-los. Se eles agissem por conta própria, quem estivesse encarregado da segurança não conseguiria protegê-los direito.
O local ao nosso redor não estava completamente livre de perigo, mas havia cavaleiros por toda a área. Seria impossível romper o perímetro sem uma batalha considerável. Eu provavelmente também não conseguiria forçar passagem. Nesse caso específico, não tínhamos escolha a não ser deixar passar esse comportamento impulsivo deles.
— Oh, é realmente bonito.
— Sim. Acho que combina muito com você, Princesa.
— Hee hee hee.
Ignorando nossa preocupação, os dois estavam se dando super bem. Lancei um olhar para Allusia, e ela apenas deu de ombros. Em resumo: “Não diga nada — apenas proteja eles.” Não havia rumores de que alguém estivesse atrás do príncipe ou da princesa. Se houvesse, todo o passeio turístico teria sido cancelado. Então, embora eu não pudesse me descuidar, também não era necessário exagerar na cautela.
Olhei ao redor e vi uma multidão se formando, tentando dar uma espiada no príncipe e na princesa. Eles estavam sendo mantidos à distância pelos cavaleiros. Hmmm, o efeito da realeza nas ruas é realmente poderoso. Baltrain era uma cidade enorme e um ponto de encontro para uma quantidade imensa de cidadãos de Liberis. À primeira vista, parecia que os cavaleiros estavam mantendo o controle, mas com tanta agitação, era assustador pensar nos pontos fracos ou onde alguma brecha poderia surgir.
— Realmente combina com você — disse o príncipe. — Fico feliz que tenhamos parado a carruagem aqui.
— Hee hee. Obrigada.
Pelo visto, eles conseguiram adquirir o acessório em questão. A Princesa Salacia já o usava, recebeu um elogio do Príncipe Glenn e agora sorria para ele. Tá esquentando por ali, hein? A troca entre eles era fofa e nem um pouco formal. Fiquei me perguntando se eles já estavam noivos ou algo assim. Ou talvez fossem conhecidos e o príncipe tivesse um certo interesse pela princesa. Não que isso importasse muito, mas, pelo jeito como estavam agindo, não tinha como não pensar nisso. Melhor perguntar pra Allusia depois.
— Alteza, por favor, pare por aqui — pediu Gatoga de forma bem direta.
— Sim, perdoe-me. Não farei novamente.
Hmm. O Príncipe Glenn parece mais franco do que eu imaginava. Dava pra ver que o príncipe e o comandante da Ordem Sagrada tinham uma relação amistosa.
— Hã...?
A multidão avançou um pouco, querendo ver a realeza de perto. A maioria dos olhares era de curiosidade. No entanto, por um breve instante, senti uma emoção distorcida entre eles.
— Mestre? Aconteceu algo? — perguntou Allusia, percebendo que eu encarava fixamente um ponto.
Lancei um olhar para ela. — Aaah, nada demais... — Quando olhei de novo para a multidão, aquela presença estranha tinha sumido por completo. — Deve ter sido coisa da minha cabeça. Não se preocupe com isso.
— É mesmo?
Provavelmente foi só um mal-entendido. Talvez eu estivesse tenso demais por estar escoltando membros da realeza. Não ia adiantar nada causar alarde quando nada de fato havia acontecido.
Como o príncipe e a princesa já tinham voltado para a carruagem, eu também voltei para a minha. Esperava que fosse apenas impressão minha. Era possível que alguém na multidão apenas detestasse a família real — não seria estranho um olhar ácido vindo desse tipo de pessoa. No entanto, minha experiência me dizia que eu tinha sentido algo mais intenso. Algo como intenção assassina.
— Deve ser imaginação minha — murmurei dentro da carruagem. Foi uma presença tão fugaz. Não houve ataque nem nada, então achei melhor contar aos outros depois do passeio.
Me concentrei novamente no meu papel — que era basicamente ficar sentado na carruagem sem fazer nada. Já era um pouco tarde pra perguntar... tipo, bem tarde mesmo, mas será que era certo ficar só nisso? Agora não dava pra falar nada e acabar bagunçando o cronograma. Então só fiquei quieto, deixando a carruagem me sacudir enquanto observava a paisagem.
Nosso passeio turístico teve um leve desvio por conta da parada inesperada do Príncipe Glenn, mas depois disso, seguiu sem problemas.
— Hm, isso está delicioso.
— Hee hee, fico feliz que tenha agradado seu paladar.
O príncipe saboreava os pratos preparados pelos chefs de Liberis — eles haviam colocado todo o talento na refeição de hoje. Por coincidência, nós, guardas, almoçamos no mesmo restaurante. A carne estava divina.
— Hmmm, acho que é a primeira vez que vejo tanta variedade de equipamentos mágicos.
— Recentemente houve progresso na mineração de magicita — explicou a Princesa Salacia.
Numa loja no distrito oeste, o príncipe exclamou, admirado com os equipamentos mágicos em exposição. Ao mesmo tempo, eu olhava tudo meio abobado, imaginando qual seria a reação da Ficelle se estivesse ali.
E assim, seguimos o cronograma do dia sem mais problemas. Aquele olhar perturbador que senti no início não voltou a aparecer, então consegui me dedicar ao dever de guarda com tranquilidade. Era bem provável que tudo não passasse de um mal-entendido. Talvez eu só estivesse um pouco nervoso.
— Princesa Salacia, muito obrigado por hoje.
— De nada. Eu também me diverti.
Depois de terminar nosso passeio pela cidade, voltamos até os portões do palácio. Após se despedir da Princesa Salacia aqui, o Príncipe Glenn seguiria para uma mansão nobre no distrito norte. Uma vez que ele fosse entregue em segurança lá, a missão da Ordem de Liberion no primeiro dia estaria concluída. Passei a maior parte do tempo dentro de uma carruagem, então estava menos cansado do que esperava. Apesar de sentir certo desgaste mental, ainda estava com energia suficiente pra participar de um treino, se quisesse. Na verdade, o que mais me incomodava era a bunda dolorida de tanto ficar sentado.
— Certo, hora de dar aquele último gás — murmurou Gatoga, alongando os ombros largos.
Já tínhamos praticamente terminado, mas isso não significava que podíamos relaxar. Além disso, o tour de hoje não era um evento isolado — ele continuaria amanhã.
Após se despedir da princesa, o príncipe embarcou novamente na carruagem. O sol já se inclinava para o oeste. Nesse ritmo, todos conseguiríamos voltar para casa antes do pôr do sol.
Só precisava aguentar mais um pouco... sentado dentro de uma carruagem.
Pouco depois, conseguimos deixar o príncipe na mansão nobre com sucesso. Ele agradeceu à Allusia.
— Agradeço de verdade pelo esforço de todos hoje.
Allusia fez uma reverência.
— Sua gratidão é mais do que merecemos.
— Conto com vocês novamente amanhã.
— Sim. Juro pela dignidade da nossa nação que o manteremos seguro.
Depois disso, conversaram um pouco sobre o plano para o dia seguinte e nos separamos. Agora eu só queria voltar pra casa. Tirando aquela encenação no começo, o príncipe era um cara bem honesto e educado. Eu achava que membros da realeza fossem mais egocêntricos ou tirânicos, mas pelo que vi, tanto a Princesa Salacia quanto o Príncipe Glenn pareciam boas pessoas. Se todos fossem assim, será que o país prosperaria mais? Ou talvez um plebeu como eu não conseguisse enxergar os esquemas traiçoeiros e podres por trás das aparências. O mundo da nobreza era tão distante da minha realidade...
— Certo então, até amanhã.
— Isso aí. Tenham um bom descanso, pessoal.
Foi ali também que nos despedimos de Gatoga, Rose e os outros cavaleiros da Ordem Sagrada. Fiquei imaginando onde eles iriam passar a noite. Provavelmente em algum lugar ali por perto. De qualquer forma, não era algo com que eu precisasse me preocupar.
— Mestre, Henbrits, voltamos também? — perguntou Allusia.
— Sim, senhora.
— Bora.
Com isso, decidimos voltar para o escritório da ordem. O plano era revisar rapidamente o cronograma de amanhã e encerrar o dia. Ainda era cedo pra dormir, então, enquanto caminhávamos, considerei a ideia de comprar alguma bebida no caminho de casa.
— Quanto à programação de amanhã...
De volta a uma sala no escritório da ordem, eu, Allusia e Henbrits ficamos por mais um tempo para revisar os planos. Allusia segurava um relatório simples feito pelos líderes de cada esquadrão. Os outros cavaleiros tinham sido liberados depois que se reuniram no escritório. Eles passaram o dia inteiro servindo de barreira entre nós e a população, então estavam mais cansados do que nós três — Allusia e Henbrits ficaram mais próximos escoltando, sem precisar lidar com multidões, e eu só fiquei sentado na carruagem o tempo todo. Como o passeio ainda não tinha terminado, era bom que eles descansassem bem para amanhã.
— Começaremos às dez horas de novo. O plano é circular pelo distrito central com a Princesa Salacia e depois assistir a uma peça de teatro.
— Hmmm...
Teatro, é? Nunca fui. Acho que esse tipo de coisa é o que a realeza curte? Não entendo nada de arte, então duvido que vá aproveitar assistindo uma.
— A gente vai assistir também? — perguntei.
— Essa é a ideia — respondeu Allusia. — É mais conveniente enquanto estivermos servindo como guarda-costas.
— Entendi...
Hmm, tô com medo de acabar cochilando no meio. Como vai ter nobre assistindo, provavelmente vamos ficar numa área VIP. Dormir ali seria um desastre. Melhor nem tomar aquela bebida depois disso — devia ir dormir cedo.
— Ah, e a partir de amanhã vamos reorganizar alguns dos esquadrões — acrescentou Allusia.
— Hm? Por quê? — perguntei. Não parecia que algo tivesse dado errado com a segurança hoje.
— A visita de Sua Alteza àquela loja de acessórios gerou uma reação enorme do povo. Temos parte da culpa nisso, então vamos mudar a disposição das equipes de segurança.
— Aaah...
Faz sentido. Aquela parada na loja não estava nos planos. Quando a realeza aparece do nada, claro que vai atrair um monte de atenção. É como se um furacão tivesse surgido do nada. O dono da loja deve estar gritando de alegria até agora.
— Ah, é...
Como todos estavam ali, resolvi comentar sobre o incômodo que senti mais cedo. Não falei nada na hora porque poderia gerar confusão, mas agora eu estava com dois especialistas. Era melhor compartilhar minhas preocupações.
— Senti um olhar estranho enquanto estava de serviço hoje. Talvez... fosse uma intenção assassina.
Os dois engoliram seco. Nosso bate-papo tranquilo ficou um pouco tenso.
— Foi por isso que você travou mais cedo, Mestre? — perguntou Allusia.
— É. Sumiu logo em seguida, então pode ter sido só impressão minha. Mas achei melhor comentar, só por precaução.
Ainda não havia perigo evidente. Era bem provável que fosse só um mal-entendido meu. Mas não custava nada sermos cautelosos. Nosso objetivo era prever todos os piores cenários possíveis e sair deles ilesos.
— Entendido — disse Allusia. — Vamos ficar alertas e levar isso em consideração amanhã.
— É, acho que é o melhor a se fazer.
Não que isso fizesse muita diferença, mas Allusia e Henbrits não duvidaram de mim nem por um segundo. A confiança incondicional deles era até um pouco constrangedora. Ainda assim, será que um pouco de sede de sangue era suficiente pra romper tanto a Ordem de Liberion quanto a Ordem Sagrada? Se fosse, isso era preocupante. No meio daquele grupo de elites selecionadas, esse velhote aqui parecia completamente fora de lugar. Talvez fosse exatamente por isso que tinham me enfiado numa carruagem.
— Suponho que esses tenham sido os únicos acontecimentos preocupantes do dia, certo? — perguntou Allusia.
— Vamos ver... Acho que não teve mais nenhum problema — respondi. — Mas eu passei praticamente o tempo todo dentro da carruagem.
Não notei nada de errado com a segurança hoje. Allusia e Henbrits tinham muito mais experiência com isso, então seria estranho se eu percebesse algo que eles não perceberam.
— Então vamos encerrar por aqui — disse Allusia.
— É, bom trabalho hoje.
Depois de compartilhar o que sabia sobre aquele olhar perturbador pra fechar o dia, cada um foi pro seu lado. Rezei pra que o cronograma da comitiva continuasse sem imprevistos. Claro que era nosso trabalho garantir isso, mas nada melhor do que uma missão de escolta tranquila onde a gente não precisa realmente fazer nada.
— Certo, então...
Fiquei pensando no que fazer em seguida. Podia voltar direto pra casa e jantar com a Mui, ou passar numa taverna e tomar uma. Já conhecia bem a área ao redor do escritório, então sabia mais ou menos onde ficavam os comércios próximos. Não parecia uma má ideia sair pra descobrir algum lugar novo, mas seria problemático se eu me perdesse e chegasse tarde em casa. Se não fosse pelo plano de amanhã, tudo bem, mas decidi ir a algum lugar familiar e pegar leve.
Também queria sentir um pouco da atmosfera do festival, e beber depois do trabalho era sempre ótimo. Então, pra recarregar as energias pras atividades de amanhã, decidi encher a barriga com um pouco de cerveja.
◇
Na manhã seguinte, nos reunimos mais uma vez bem cedo na praça central do escritório.
— Esse é o plano de hoje. Além disso, ontem detectamos sinais preocupantes. Não dá pra saber o que pode acontecer. Fiquem atentos o tempo todo.
— Sim, senhora!
Allusia encerrou a reunião mencionando o que eu havia percebido no dia anterior, alertando todo mundo pra ficarem em guarda. Bom, com certeza eles já estariam atentos de qualquer forma, mas só de dizer isso já servia pra reforçar o foco de todos. Nada de mais tinha acontecido ontem, então esse empurrãozinho era o que precisavam pra manter a concentração.
— Em frente!
Com o comando da Allusia, todos começaram a se mover. Era hora de voltar à escolta do príncipe e da princesa, embora tudo o que eu fosse fazer de novo fosse sentar numa carruagem vazia. Mas não dava pra reclamar disso na frente de todo mundo.
— Conto com vocês mais uma vez hoje.
— Sim, alteza. Deixe conosco.
Estávamos novamente em frente aos portões do palácio, cumprimentando a Princesa Salacia e o Príncipe Glenn — como percebi ontem, os dois tinham auras incrivelmente belas. Ontem, passamos pelos distritos norte, central e oeste. Hoje, o plano era focar inteiramente no distrito central. Também, diferente de ontem, pretendíamos visitar várias lojas, e depois do almoço, assistir a uma peça de teatro.
Agora que era meu segundo dia nisso, já estava começando a me acostumar. Me sentia muito mais tranquilo. Naturalmente, não podia ignorar a sede de sangue que senti ontem, então não era hora de baixar a guarda. Ainda assim, contanto que nada realmente acontecesse, não havia por que ficar paranoico. Como sempre, o que tiver de ser, será.
— Sozinho de novo... Fazer o quê.
Assim como no dia anterior, entrei na carruagem vazia que tinham preparado só pra mim. Não consegui evitar resmungar ao subir.
— Hehe. Mestre, quer que eu vá com você? — perguntou Rose com aquele sorriso de sempre.
— Rose, faz o seu trabalho direito — repreendi.
— Taaaalvez...
Allusia estava com aquela cara assustadora de novo. Na real... como ela ouviu a gente? Talvez fosse melhor parar de ficar resmungando sozinho. Ainda assim, falar ajudava a aliviar a tensão. Ficar tenso o tempo todo só me deixaria lento numa emergência. Só podia torcer pra que nada de ruim acontecesse.
— Estamos partindo.
O cocheiro colocou a carruagem em movimento. A cidade estava tão agitada quanto ontem. Não era bem uma festa nas ruas, mas no geral, estava cheia de energia a ponto de eu conseguir sentir mesmo de dentro da carruagem. Tinha mais gente na rua do que ontem. Era o segundo dia, então provavelmente a notícia da visita real já tinha se espalhado. Como esperado, não era o suficiente pra bloquear a passagem das carruagens — mas o povo ainda se amontoava pra ver o príncipe e a princesa. Os cavaleiros lidariam com a multidão se passassem dos limites, mas ainda assim era bastante gente.
— Acho que tá todo mundo curioso...
Eu mesmo não sentia nada de especial com a realeza andando por aí, mas talvez fosse porque eu vim do interior. Nossas posições eram tão diferentes que eu não via isso como algo abençoado. Bom, depois de conhecê-los pessoalmente, entendi melhor a aura que eles exalavam, então talvez fosse algo pra ser sentido mesmo.
Enquanto esses pensamentos passavam pela minha cabeça, a carruagem parou. Parece que chegamos a um dos pontos da rota de hoje. Desci rapidamente, bem na hora em que os mordomos ajudavam o príncipe e a princesa a sair da carruagem.
— É realmente maravilhoso.
— Hehe, não é mesmo?
Os dois estavam olhando uma loja de enfeites. Assim como a loja de acessórios de ontem, Baltrain tinha várias lojas que vendiam esse tipo de artigo artístico. O país como um todo prosperava com a agricultura, mas também tinha muitos produtos artesanais. Não eram mágicos, mas os enfeites brilhantes chamavam atenção. Obviamente, no interior não tínhamos esse tipo de loja, então eu também estava curioso pra dar uma olhada. O dono da loja era bem simpático, mas dava pra ver que estava nervoso — e com razão. Mesmo sabendo de antemão que a realeza viria, qualquer um ficaria daquele jeito.
— Hm...?!
E enquanto eu observava aquela cena harmoniosa se desenrolar, meu corpo enrijeceu por um instante. Senti o mesmo olhar de ontem. Mas desta vez, ele estava muito mais intenso.
— Allusia...
— Sim? Mestre... Está falando daquilo?
— É. Melhor ficar em alerta.
Passei a informação para Allusia, que fazia a vigia na frente da loja. Olhei ao redor. A multidão estava igual a sempre, e não dava pra ver ninguém com cara de que ia se lançar sobre nós de repente. Mas eu conseguia sentir uma hostilidade afiada e pegajosa vindo na nossa direção. Assim como ontem, a presença sumiu em questão de segundos. Era inquietante. Só podia torcer pra que nada acontecesse.
— Eram mais de um...
— Você sentiu também, Allusia?
Sim. A presença tinha vindo de mais fontes do que ontem. Parecia que não era só uma pessoa.
— Vamos nos mover — disse Allusia.
Pensei se devíamos informar Gatoga e Rose sobre isso. Enquanto pensava, o príncipe e a princesa voltaram para suas carruagens. No fim das contas, não era tão estranho assim olhares hostis estarem voltados para a comitiva. Com certeza havia muita gente que não gostava da realeza. Era completamente plausível imaginar que alguns estavam demonstrando seu descontentamento de forma anônima no meio da multidão.
Ainda assim, algo me incomodava, mas não dava pra interromper o passeio só por causa de um pressentimento. Por enquanto, apenas voltei para minha carruagem. Não era algo que eu conseguiria resolver apenas remoendo em silêncio.
O sol já se inclinava no céu a oeste quando chegamos ao teatro, nosso último destino do dia. Já fazia várias horas desde que senti aquela presença perturbadora. Havíamos parado algumas vezes desde então, inclusive para almoçar. Aliás, a refeição tinha sido tão deliciosa quanto a de ontem. As comidas feitas por chefs de alto nível eram mesmo outro mundo. Um verdadeiro espetáculo.
— Hoje, assistiremos a uma apresentação neste teatro — disse a princesa.
— Estou ansioso.
— Sim, aproveite o espetáculo.
Descendo da carruagem, o príncipe e a princesa conversavam em harmonia, com sorrisos tão belos quanto sempre. Viajar sozinho de carruagem era bem puxado, mas ir o tempo todo em dupla também devia ser difícil. Será que conseguiram manter a conversa o tempo inteiro?
— Hm...?
Logo quando eu estava prestes a voltar ao dever de escolta, ouvi um alvoroço. Estávamos autorizados a portar espadas de verdade, então tínhamos capacidade total de reagir se necessário. Claro, não íamos atacar cidadãos comuns, mas seria outra história se sentíssemos qualquer indício de perigo. Supondo que os responsáveis por aquele olhar hostil finalmente estivessem se revelando, senti a tensão percorrer minhas veias.
— Ei, você aí! Pare!
Minha previsão parecia estar certa. Figuras sombrias ignoravam os avisos dos cavaleiros.
Eles estavam se aproximando.
— Príncipe Glenn, por favor, recue.
Gatoga e Rose imediatamente protegeram o príncipe. A situação se desenrolava de forma abrupta, mas ninguém estava em pânico. O príncipe contava com Gatoga e Rose ao seu lado, enquanto a princesa tinha Allusia e Henbrits. Eu estava um pouco afastado deles, ao lado da minha carruagem. Sem que ninguém dissesse uma palavra, todos já tinham desembainhado suas espadas.
Os homens de preto—pareciam ser três—vinham em nossa direção, desviando habilmente dos cavaleiros. À primeira vista, não pareciam estar armados com nada perigoso, mas imaginei que pudessem ser magos. Por ora, decidi bloquear o caminho deles com meu corpo.
Ainda assim, algo estava estranho. Eles tinham escolhido justamente esse momento para atacar. Era de se esperar sentir uma sede de sangue no ar, mas eu não percebia nada do tipo. A intenção assassina que senti hoje e ontem não vinha dessas figuras de preto. Na verdade, os homens que se aproximavam quase não emitiam presença alguma. As impressões que eu tinha deles eram tão fracas que quase dava pra confundir com foliões animados demais ou cidadãos comuns que estavam de preto por pura preferência pessoal.
Mas se eles estão vindo pra cima da gente, vou ter que detê-los de qualquer forma.
— Hm?!
E então, justo quando me movi um pouco pra cobrir o príncipe e a princesa, finalmente senti as emoções violentas que esperava desde o início desse incidente.
— Allusia! Rose! Acima!
Esses caras são iscas! No instante em que gritei, um grupo de figuras de preto saltou dos telhados.
— Shhh!
As adagas dos assassinos vieram direto pra cima da gente. Eram cinco. Rebati uma das lâminas com toda minha força para o lado. Uma pessoa comum teria largado a arma, mas a figura de preto usou o impulso do impacto pra girar no ar e aterrissar a poucos metros de distância.
Esse cara é forte! Só pela troca rápida já dava pra sentir o nível dele. Isso significava que a tentativa de assassinato era pra valer. Não sabia quem era ele, mas a habilidade era notável.
— Hah!
Os outros guardas repeliram as quatro adagas restantes. Allusia e Henbrits fizeram como eu, desviando os golpes com suas espadas longas. Gatoga aparou o ataque para o lado, e Rose bloqueou de frente com seu escudo. Ótimo, parece que o príncipe e a princesa estão bem. Ainda assim, não dá pra relaxar.
— Alteza! Entrem no teatro! — gritou Gatoga.
— Não! — gritei. — Não podemos garantir a segurança deles lá dentro!
Estávamos enfrentando inimigos que não hesitavam em atacar em campo aberto. Vai saber se não havia mais assassinos esperando dentro do teatro.
— Revidem aqui mesmo! — gritei. — Formem um círculo ao redor do príncipe e da princesa!
— Tch! Droga! — rosnou Gatoga, empunhando seu estocador.
Eu não fazia ideia de quão fortes eram os dois camareiros. Era possível que fossem mais fortes que os assassinos — mas o contrário também podia ser verdade. Com tantas incógnitas, dividir nossas forças era uma péssima ideia. Não, o melhor era eliminar todas as ameaças que tínhamos pela frente, sem deixar margem pra erro.
Todos os guardas formaram um círculo em volta do príncipe e da princesa. O choque tava estampado no rosto de cada um deles. Eu me perguntava se os dois nobres conseguiriam sequer fugir, caso fosse necessário. Parecia que nossa única escolha era resolver tudo aqui e agora, do jeito que desse.
— Hmph!
Depois da curta trégua, voltamos a rebater uma chuva de adagas. O cara que estava na minha frente era realmente forte. Teria sido ótimo conseguir desarmá-lo, mas ele sabia muito bem como girar o corpo e dissipar o impacto. A forma como ele manejava a espada lembrava mais a de um assassino do que a de um espadachim. Também era absurdamente rápido, mas de um jeito diferente da Selna ou da Allusia. Ao contrário dos duelos de treino, ele mirava os pontos vitais sem piedade — qualquer hesitação podia resultar num ferimento mortal. E agora que eu via a lâmina dele de perto, percebi um brilho suspeito no metal.
A adaga do inimigo estava estranhamente úmida. Eu ainda não tinha sido atingido, então não era sangue. Só havia algumas razões pelas quais uma lâmina estaria coberta de líquido antes de um ataque.
— Tch! É veneno! As lâminas deles estão envenenadas! — gritei.
— Droga! — Gatoga praguejou. — Que merda!
Cara, isso é péssimo. Eu não tava usando armadura, então até o menor arranhão podia ser perigoso. E como os alvos eram membros da realeza, era quase certo que o veneno fosse letal.
Derrotar inimigos desse nível sem levar nenhum golpe ia ser osso. Mas também não dava pra escolher. Se não derrubássemos esses caras, o príncipe e a princesa iam morrer. Eu fui nomeado como guarda nessa missão, então era hora de dar tudo de mim.
— Seu...!
Aproveitei uma brecha entre os ataques e desferi uma estocada, mas o desgraçado desviou por pouco. Já esperava por isso, mas ele se esquivou com ainda mais agilidade do que quando empunhava a arma. Era mesmo um assassino — pegá-lo seria um baita trabalho. Se possível, seria bom manter alguns deles vivos pra interrogar depois, mas me segurar agora podia me custar a vida. Ainda mais sabendo que só um arranhão bastava pra matar. Vencer sem levar um único golpe e ainda poupar o inimigo... era botar o sarrafo alto demais.
Com uma espada de madeira talvez fosse possível deixar o cara vivo, mas o que eu tinha em mãos era uma lâmina afiadíssima. Até poderia tentar usar o cabo como porrete, mas não dava tempo pra esse tipo de coisa agora. Fazer o quê... Não quero matar ninguém, mas vocês vão ter que aguentar a dor. Aposto que nenhum desses assassinos esperava sair vivo depois de um ataque tão ousado, de qualquer forma.
— Hah!
Desviei uma adaga com a minha espada e usei o impulso pra girar no lugar. Meu corpo já tinha batido num limite físico — eu sentia, no instinto, que não tinha muito mais espaço pra crescer. Mas ainda havia muito o que aprender sobre a espada. Esse golpe giratório era um exemplo disso.
Coloquei toda a minha força nele. Se conseguir bloquear, então me mostra. Quando meus braços completaram o giro, senti claramente a lâmina rasgando carne.
— Gyaaaaaah?!
O assassino tinha se mantido em silêncio desde o começo, mas agora gritava de dor. Ele tentou aparar minha espada, mas eu cortei tudo do pulso pra baixo. Usei o fio absurdo da espada forjada com partes do Zeno Grable, somado à força centrífuga total do meu giro. Uma arma comum jamais conseguiria bloquear um golpe assim. Eu nunca teria apelado pra isso se estivesse tentando capturar o inimigo sem feri-lo, mas a situação não me dava esse luxo.
De qualquer forma, eu já tinha terminado do meu lado. Olhei pros outros pra ver como estavam se saindo.
— Haaah!
Virei quando ouvi um grito potente — Henbrits estava descendo a espada com toda a força. Sua armadura tinha vários arranhões, mas, à primeira vista, nenhum ferimento na carne. Ele também não estava em condições de fazer prisioneiros. Seu golpe rasgou o inimigo em diagonal, do ombro até a cintura. O assassino caiu no chão em meio a um poço de sangue, sem nem soltar um gemido.
— Hmph!
Allusia cravou a espada com a velocidade do Deus Veloz, fincando-a no ombro de um dos assassinos. Olhando mais de perto, ele já tinha ferimentos de perfuração na coxa direita e na lateral esquerda. Allusia estava mirando com precisão em pontos não vitais, tentando capturá-lo com vida. Sua esgrima refinada era uma técnica elegante que eu não conseguiria reproduzir.
— G-Grrr!
— Ei, onde pensa que vai?
Aproveitando minha breve distração, o assassino que eu tinha atingido tentava escapar segurando o toco do braço. Estava surpreendentemente animado pra alguém que tinha acabado de perder a mão — animado, tirando o tanto de sangue que jorrava dele. Agarrei-o quando ele virou pra correr. Já que ainda estava vivo, minha intenção era estancar o sangramento pra interrogar depois.
— Aqui também terminamos — disse uma voz tranquila e despreocupada.
Virei em direção à voz. Rose guardava sua estoc, o escudo ainda manchado de sangue. O assassino que a atacou já estava morto, com um buraco bem no topo da cabeça.
Hmm… Com a habilidade e o equipamento da Rose, ela devia ser capaz de capturar o oponente — talvez não ileso, mas ainda assim vivo. Um pensamento um tanto inapropriado me passou pela cabeça: será que ela ficou nervosa e isso atrapalhou sua mira? Bom, de qualquer forma, era melhor do que vê-la perder.
— Desculpa... Não consegui capturá-lo — murmurou Rose, abaixando a cabeça enquanto me observava estancar o sangramento do assassino capturado.
— Tá tudo bem — eles eram fortes — falei. — Não tinha muito o que fazer.
Esses assassinos estavam longe de ser bucha de canhão. Era perfeitamente razoável matá-los pra vencer o combate. Talvez o certo fosse elogiar por ter vencido uma luta tão difícil.
Henbrits também havia matado o dele. — Tive que dar tudo de mim pra vencer... — disse ele. — Me envergonha ter tido esse desempenho.
Hmm, o importante é que a gente não perdeu pros assassinos. Protegemos o príncipe e a princesa — isso por si só já é uma vitória.
— Princesa Salacia, Príncipe Glenn, estão feridos? — perguntou Allusia.
—N-Não. Estamos bem. Muito obrigado...
Allusia segurava o assassino — aquele que ela tinha transformado em peneira — com o braço torcido pra trás. O príncipe e a princesa não conseguiram reagir ao ataque repentino, mas também não havia muito mais que pudessem fazer. A realeza existe pra ser protegida. Cabe aos cavaleiros impedir que a lâmina dos assassinos chegue até eles.
Mas esse não era momento pra curtir um teatrinho como se nada tivesse acontecido. A gente ia precisar rever todo o cronograma agora. Uma tentativa de assassinato era mais do que motivo pra encerrar esse passeio turístico de uma vez.
Também não dava pra ficar parado por aqui por muito tempo. A comoção entre os civis estava saindo do controle. Eu estava tão concentrado nos assassinos que nem prestei atenção no povo durante a luta, mas agora dava pra ouvir gritos e berros vindo de fora do perímetro de segurança.
— Comandante... Comandante?
Rose chamava por Gatoga. Agora que parei pra pensar, será que ele conseguiu repelir o assassino dele? Ele ainda estava de pé, então obviamente não tinha perdido, mas eu não via o homem de preto com quem ele lutava. Será que deixou o inimigo escapar?
Gatoga estava parado, meio que em transe, com o corpo ali mas a mente distante. As palavras da Rose entravam por um ouvido e saíam pelo outro. Estranho. Eu não o conhecia tão bem, mas não parecia o tipo de cara fraco que ficaria catatônico por causa de algo assim. O olhar dele estava fixo em um único ponto — um beco. Provavelmente o assassino fugiu por ali.
Gatoga não perseguiu o inimigo nem foi derrubado. Só ficou ali parado, com a estoc em uma mão e os olhos mirando o horizonte distante.
— Hinnis...? — murmurou Gatoga.
Eu me lembrava de ter ouvido esse nome recentemente.
— Gatoga? — chamei.
— Ah! — ele finalmente voltou a si. — A-Ah... Desculpa. Ele escapou.
O nome que ele murmurou ficou na minha cabeça, mas aquele não era o momento pra perguntar. Por ora, com todo mundo vivo e os assassinos derrotados, era hora de restaurar a ordem.
Virei pra nossa comandante dos cavaleiros. — Allusia.
— Sim, já entendi.
Ela era experiente em lidar com emergências e já tinha plena noção da situação. Não dava mais pra seguir com o cronograma original. A segurança do príncipe e da princesa era a prioridade agora. E, pra acalmar os ânimos da população, precisávamos sair dali o quanto antes. Allusia entregou o assassino capturado a outro cavaleiro e então se virou pra princesa.
— Princesa Salacia, diante das circunstâncias, por favor, retorne ao palácio com o Príncipe Glenn por enquanto.
— Sim... Entendi.
O palácio real de Liberis era o lugar mais seguro de Baltrain. A sede da Ordem era outra opção, mas seria meio inconveniente levar um príncipe estrangeiro pra lá. Por ora, o melhor era voltar ao palácio e discutir os próximos passos.
— Henbrits. Assuma o comando aqui e restaure a ordem.
— Senhora!
Parece que Henbrits ficaria para trás para assumir o comando enquanto o resto de nós continuava com a escolta. Bom, também não faria sentido me deixarem para trás. Precisavam de alguém experiente ali.
— Sitrus. Vamos continuar protegendo o príncipe — disse Gatoga.
— Esse era o plano — respondeu Allusia. — Por favor, Razwon, conte com isso.
Gatoga já tinha voltado ao seu estado normal e parecia animado para agir. Rose sorria como sempre. Ela nunca deixava transparecer qualquer nervosismo, não importava a situação.
— Vamos voltar pelo caminho mais curto — disse Allusia. — Mestre, me perdoe, mas posso pedir que nos acompanhe do lado de fora?
— É claro.
Não dava pra ficar de boa dentro da carruagem depois de uma situação dessas. Era um alívio que os cocheiros e os outros civis não tivessem se ferido—os assassinos estavam completamente focados em seus alvos. Não fazia sentido usar um chamariz agora. Todos os guardas experientes, com exceção de Henbrits, cercavam a carruagem com o príncipe e a princesa.
Os dois camareiros também estavam dentro da carruagem. Dava pra ver claramente a ansiedade e o choque em seus rostos. Eles até sabiam lutar, mas na hora do vamos ver, experiência faz toda a diferença. E nesse sentido, não eram lá muito confiáveis.
Fiquei ao lado de Allusia enquanto as carruagens começavam a se mover.
— E aí, o que foi aquilo? Algum palpite? — perguntei.
Claro que eu não tinha ideia de quem tinha nos atacado. Eu era meio tapado pra essas coisas. As décadas enfiado no fim do mundo garantiram isso... não que seja algo de que eu me orgulhe.
— Ainda não dá pra dizer — ela respondeu.
— É... imaginei...
A vida seria muito mais fácil se a gente pudesse fazer alguma previsão aqui. Precisávamos encontrar um lugar seguro onde pudéssemos conversar com calma—de preferência, o quanto antes.
Será que o ataque foi direcionado ao príncipe ou à princesa? Em outras palavras, o problema era com Liberis ou com Sphenedyardvania? Os assassinos tinham sido ousados o suficiente pra atacar a comitiva diplomática em plena luz do dia, então devia ter a ver com um dos dois. Também era possível que os dois fossem alvos, mas isso não parecia se encaixar muito bem.
Eu não entendia muito dessas coisas, mas Allusia, Gatoga e Rose com certeza sabiam mais sobre as circunstâncias dos dois reinos. Se eles não conseguissem ao menos levantar uma hipótese, isso podia acabar gerando problemas diplomáticos. Até eu conseguia perceber isso, e olha que sou um ignorante em assuntos internacionais.
Todo mundo mantinha os olhos atentos ao redor, mas, ao mesmo tempo, parecia perdido em pensamentos. Fiquei imaginando que tipo de conversa os membros da realeza estariam tendo dentro da carruagem. Talvez os dois estivessem apenas esperando em silêncio. Era possível que os alvos soubessem exatamente o que estava acontecendo. Pensando bem, essa era a hipótese mais provável. Dito isso, alguém do meu nível não podia simplesmente perguntar “Vocês sabem quem tentou matar vocês?” Só os comandantes da ordem teriam permissão pra algo assim, e ainda assim com certo cuidado. Também não dava pra discutir isso em público. Nunca se sabe quem pode estar ouvindo.
— O que será que vai acontecer com o cronograma agora...? — murmurou Rose, com as sobrancelhas franzidas.
— Provavelmente vai tudo ser cancelado depois de um incidente desses — respondi.
Capturamos alguns assassinos, então a Ordem de Liberion com certeza teria trabalho investigando. Ninguém estava no clima pra continuar com um passeio turístico. Era outro assunto se o Príncipe Glenn ia voltar pro país dele ou ficar por aqui, mas de uma coisa a gente sabia: ele não podia mais sair pela cidade como se nada tivesse acontecido. De qualquer forma, essa decisão não cabia aos cavaleiros—era assunto pra delegação. A gente só ia ficar esperando ordens.
Senti uma pontinha de esperança de que talvez eu fosse liberado desse trabalho sufocante, mas era meio imprudente pensar nisso. Eu não era um cavaleiro e não sentia uma lealdade imensa pelo meu país, mas como cidadão decente, me sentia apreensivo com uma confusão dessas no ar.
Depois da breve conversa com Rose, seguimos escoltando a carruagem em silêncio. Fiquei pensando no ataque durante o caminho, mas não tinha conhecimento o suficiente pra chegar a qualquer conclusão. No máximo, achei mais provável que o alvo tivesse sido a princesa. Teria sido mais fácil atacar o Príncipe Glenn antes de ele ficar sob a proteção da Ordem de Liberion. Não sei qual foi a rota que o príncipe usou pra vir de Sphenedyardvania até Liberis, mas durante a viagem com certeza teria sido mais fácil emboscá-lo. Duvido que tenha sido uma estrada totalmente plana e aberta, então devia ter rolado alguma chance. Pensando por esse lado, fazia mais sentido que tenham mirado na princesa, agora que ela estava fora do palácio.
A não ser que saiam disfarçados, são bem raras as oportunidades de ver membros da família real entre o povo. Como morador de Beaden, óbvio que nunca tinha visto nenhum, mas mesmo depois de me mudar pra Baltrain, essa era a primeira vez que via com meus próprios olhos.
Mas tinha uma coisa que me incomodava: o Gatoga ter murmurado o nome “Hinnis” antes. Se minha memória não falha, esse era o antigo vice-comandante da Ordem Sagrada. Se for isso mesmo, então a Ordem, ou até mesmo Sphenedyardvania, está passando por alguma situação complicada. Isso era algo que talvez conseguíssemos descobrir com os assassinos capturados. Um bom interrogatório era o caminho mais rápido pra entender o que estava rolando.
Passou um tempo enquanto eu andava e pensava nessas coisas. O sol ainda estava alto no céu. Era bem mais cedo do que o horário previsto pra voltarmos ao palácio, mas aqui estávamos nós, de volta ao distrito norte.
— Princesa Salacia, Príncipe Glenn.
Assim que chegamos aos portões do palácio, Allusia ficou atenta ao redor e se dirigiu aos dois dentro da carruagem. Depois de uma breve pausa, os camareiros desceram com cautela—logo em seguida vieram o príncipe e a princesa. Ela estava visivelmente assustada, enquanto ele fazia o possível pra manter uma postura firme.
— Allusia, pode vir conosco? — perguntou a princesa.
— Sim, é claro.
— Gatoga, gostaria que viesse também — disse o príncipe.
— Deixa comigo.
Era aqui que a gente devia se separar, mas o príncipe e a princesa escolheram seus respectivos comandantes de cavalaria pra acompanhá-los. Eu entendia o lado deles. Depois de um incidente desses, era mais que natural querer alguém de confiança por perto. E os comandantes eram perfeitos pra esse papel. Afinal, não dava pra deixar civis comuns entrarem no palácio.
— Princesa Salacia, com licença por um momento... Mestre.
— Hm? O que foi?
Depois de receber permissão da princesa, Allusia veio até mim.
— Provavelmente vai haver uma reunião em breve — disse ela. — A missão de escolta acabou, então pode voltar—não precisa me esperar.
— Aaah, isso. Entendido.
Ou seja, eu tava liberado pra ir embora. Pensei em esperar no escritório, mas não dava pra saber quando a Allusia ou o Henbrits iam voltar. Também não podia me esgotar pensando no dia de amanhã, então resolvi seguir o que ela disse.
— Rose, você também pode voltar. Depois eu envio as ordens.
— Beleza, entendido.
Pelo visto, a Ordem Sagrada tava na mesma sintonia. Os dois comandantes mandaram seus cavaleiros se dispersarem e desapareceram pelos portões do palácio.
— Bom, então...
Me espreguicei sob o sol. O dia tava só pela metade, mas depois de tudo que aconteceu, eu já me sentia exausto. Allusia e Gatoga ainda tinham reuniões pela frente, mas eles eram jovens—não se cansavam tão fácil.
— Me retiro aqui — disse Rose.
— Beleza. Bom trabalho hoje.
Considerando a personalidade dela, até imaginei que fosse soltar um “Agora que temos tempo, me mostra a cidade”, mas ela não era tão irresponsável assim. A Ordem Sagrada ia precisar ficar em alerta por um bom tempo. O mesmo valia pra mim, mas o posto dela era bem mais importante que o meu. Não era exatamente certo pensar assim, mas eu me sentia aliviado por meu título facilitar as coisas em momentos como esse.
Enfim, parecia que eu ia chegar em casa mais cedo do que o normal. Agora fico pensando em como vou explicar isso pra Mui.
Com esses pensamentos na cabeça, peguei o caminho de volta pra casa.
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