Interlúdio
— Desculpe por tomar seu tempo.
— Está tudo bem. Eu não me importo. Ainda não conheço a cidade.
Duas beldades chamativas caminhavam pelas ruas da maior cidade de Liberis — Baltrain. Uma delas era a comandante da Ordem de Liberion, Allusia Sitrus. Apesar de sua juventude, ela ocupava o posto mais alto entre os cavaleiros renomados da nação. Ninguém a olhava com desdém. Ela possuía um carisma que podia ser descrito como uma combinação ímpar de dignidade e serenidade, igualado apenas por sua natureza bondosa e habilidade incrível com a espada. Era imensamente popular entre o povo. Muitos até a invejavam.
A outra beldade era a subcomandante da Santa Ordem da Igreja de Sphene, Rose Mabelhart. Uma mulher de presença calma e modos graciosos. O escudo branco em formato de pipa preso às suas costas chamava atenção, mas seu cabelo azul quase translúcido e sua expressão gentil e afável se destacavam ainda mais.
Faltavam poucos dias para a visita real de turismo a Baltrain, em homenagem ao primeiro príncipe de Sphenedyardvania. Rose era a subcomandante da Santa Ordem, e havia preocupações sobre ela não conhecer bem a geografia de Baltrain. Por recomendação de Allusia, as duas estavam passeando pela cidade.
Rose mantinha um semblante amigável. Afinal, não seria educado demonstrar descontentamento quando a própria comandante da Ordem de Liberion se ofereceu para acompanhá-la.
— A cidade é realmente encantadora — comentou Rose. — Que inveja.
— Obrigada. Fico feliz em ouvir isso.
Apesar de ter sido quem convidou Rose, o estado mental de Allusia era um tanto complicado. Naturalmente, ela não via problemas em se aproximar da subcomandante da Santa Ordem. Pensando nos benefícios diplomáticos futuros, era algo positivo. No entanto, as palavras "a pupila favorita do Beryl" se destacavam em sua mente mais do que qualquer outra coisa. Ela sabia, é claro, que Beryl havia treinado muitos discípulos. Também não era arrogante a ponto de se considerar a melhor entre eles — embora tivesse confiança de que sua posição estava entre os primeiros, se contasse de cima para baixo. Ainda assim, não poderia se declarar como a favorita de Beryl.
Diante de uma mulher que dizia isso com tanta naturalidade, Allusia sentia uma mistura de sentimentos — tanto de interesse quanto de incômodo.
— Então, hã... Lady Mabelhart... — Allusia não sabia bem como se referir a ela, então optou pela forma formal.
— Sim?
— Ouvi dizer que você treinou com o Mestre Beryl.
— Isso mesmo. Mas não foi por tanto tempo assim — Rose levou um dedo ao queixo, relembrando. — Na época, eu estava viajando por várias nações e cidades. Aconteceu de eu passar por... Beaden, acho. Quando o vi, pensei: "Uau, a forma como ele maneja a espada é incrível" — e fiquei encantada na hora.
— Entendo... — Allusia não podia negar que também havia se encantado pelo estilo de luta de Beryl. Qualquer um que aspirasse dominar a espada reconheceria a habilidade dele. — Quando foi isso? — perguntou ela.
— Hmmm... Acho que há uns cinco ou seis anos? Quando o conheci, ele já tinha aquela mecha branca no cabelo.
Nesse caso, tecnicamente, Rose era uma pupila mais nova que Allusia. Parte da franja de Beryl era branca. Allusia reconheceu aquilo como um sinal da idade e sentiu o peso do tempo desde que se afastara dele. Não presenciara essa mudança acontecer.
Cinco ou seis anos atrás era mais ou menos a época em que Allusia havia se alistado na Ordem de Liberion. Naquele tempo, empunhava sua espada pensando apenas em divulgar o estilo de Beryl pelo mundo. Nunca havia pensado em prestígio pessoal. Allusia não tinha certeza do quanto havia alcançado esse objetivo — ainda estava no processo —, mas as coisas não pareciam ruins. Se Beryl conseguisse aproveitar essa maré para se tornar um mestre espadachim sem igual, isso já bastaria para ela. Mas ainda havia muito a fazer.
Enquanto reconsiderava seus planos, o sorriso de Rose se aprofundou.
— A propósito...
— O que foi? — perguntou Allusia.
— Suponho que você também tenha treinado com o Mestre Beryl, certo?
— Sim. Embora já faça alguns anos.
Rose havia enfatizado que Allusia devia ter treinado com Beryl, e o fizera com um tom e expressão neutros. Allusia se perguntava por que ela havia perguntado daquela forma. Não sabia exatamente o quanto estava sendo observada, mas seu afeto por Beryl era algo fácil de perceber. Rose havia a encontrado pela primeira vez na sede da Ordem de Liberion, mas aquele breve encontro bastou para entender boa parte dos sentimentos de Allusia.
— Hehehe. Eu adoraria ouvir histórias do passado do Mestre Beryl — disse Rose.
— Bem... se não se importar com o pouco que eu sei.
Allusia não se opunha a relembrar. Na verdade, apesar de ser mal compreendida por conta da aparência e do tom de voz, Allusia não era ruim de conversa, nem era antissocial. Pelo contrário, gostava bastante de uma boa conversa. Costumava medir as palavras de acordo com a ocasião, mas era bem falante quando se sentia à vontade.
E essa era uma dessas ocasiões. Ela começou a falar sem quase nem respirar.
— Vamos ver... Uma das minhas trapalhadas do passado foi quando feri um aluno de outra escola durante um duelo. Fugi do dojo, e o Mestre Beryl veio me procurar. Ele analisou com calma o meu estilo de espada. Não ficou bravo, nem decepcionado... Explicou tudo com sinceridade. Naquele momento, ele me disse: “Tenho certeza de que você vai se tornar uma grande espadachim.” Até hoje, guardo isso como uma das minhas memórias mais preciosas.
— Hehehe. Dá pra ver que você realmente ama o Mestre Beryl.
Rose ouviu a história com naturalidade. A maioria das pessoas ficaria surpresa com a torrente de palavras repentina de Allusia, mas Rose não se abalou nem um pouco. Ainda teve presença de espírito suficiente para acompanhar o ritmo. Isso fazia parte de sua personalidade, mas o tema da conversa também influenciava bastante.
— Mestre Beryl sempre foi assim, não foi? — disse Rose.
— Sim. No passado e no presente, sua natureza gentil continua a mesma.
Rose ficou intrigada com essas informações sobre a juventude de Beryl, coisas que ela provavelmente nunca saberia de outra forma. Ela escutava Allusia com prazer, imaginando como Beryl era antes de seus cabelos ficarem brancos.
— Eu também tenho várias lembranças do Mestre Beryl no dojo que posso compartilhar— Oh. Oh, céus...
Justo quando Rose estava prestes a contar suas próprias histórias, ela se interrompeu de repente. Seus olhos se fixaram na lateral da movimentada rua de Baltrain.
— Hm? Aconteceu alguma coisa? — perguntou Allusia.
Rose saiu correndo sem responder. Ela chamou uma criança que olhava ansiosamente ao redor, inquieto.
— Está tudo bem, garotinho?
— Hic! Quem é você, moça?
— Hehe, ninguém suspeita.
O menino tinha uns cinco anos de idade. Quando Allusia correu atrás de Rose, ela se lembrou das muitas crianças com mais ou menos essa idade que frequentavam o dojo de Beryl.
A criança olhava nervosa para a multidão de estranhos que passava e, de algum modo, se segurava para não chorar.
— Eu... não consigo achar minha mãe... — murmurou ele.
— Puxa vida, então você está perdido.
Seria indigno de um cavaleiro abandonar uma criança perdida. Qualquer um que fosse capaz de ignorar alguém em necessidade, não teria o temperamento necessário para se tornar um cavaleiro em primeiro lugar. Então, Allusia ofereceu a forma mais garantida e prática de resolver aquela situação:
— Vamos levá-lo até a estação mais próxima.
— Não. — Rose balançou a cabeça. — Pela aparência, duvido que ele esteja separado da mãe há muito tempo.
— Por que você acha isso?
— As roupas dele não estão sujas e ele não parece cansado. E, acima de tudo, ele ainda nem chorou. Duvido que a mãe dele tenha ido muito longe.
— Hmmm...
Fazia sentido para Allusia. Uma criança separada dos pais naquela confusão toda acabaria chorando. Allusia não tinha filhos, mas já tinha lidado com várias crianças no dojo. Embora, pensando bem, muitas daquelas crianças eram bem agitadas. O dojo, afinal, era um lugar pra aprender a manejar a espada.
— Tenho certeza de que a mãe dele também está procurando por ele — continuou Rose. — Ela deve estar por perto.
— Entendo.
Isso significava que seria mais sábio procurá-la ali por perto do que levar o menino ainda mais longe até a estação.
— Qual é o seu nome, garotinho? — perguntou Rose.
— Ritter...
— Certo. Ritter, você sabe que tipo de roupa sua mãe está usando?
— Uhm... Algo vermelho e fofinho...
— Então vamos procurar por uma moça vestida de vermelho. O cabelo da sua mãe é comprido?
— Mhm. É comprido.
Allusia observava enquanto Rose rapidamente conseguia fazer o garoto se abrir. Ela o acalmava enquanto reunia as informações necessárias para encontrar sua mãe. E fazia isso tudo com um belo sorriso no rosto, sempre falando com um tom suave, fazendo Ritter baixar completamente a guarda. Allusia admirava silenciosamente aquela habilidade — ela sabia que não conseguiria fazer o mesmo.
— Você parece bem acostumada com isso — disse Allusia, lançando um olhar pela multidão.
— Aham. Eu gosto da companhia de crianças — respondeu Rose, agora segurando a mão de Ritter. — Então vamos lá... A mãe do Ritter está por aqui?! Consegue me ouvir?!
Antes que Allusia pudesse dizer qualquer coisa, Rose ergueu a voz e começou a andar devagar pela rua com o garoto. Por trás do sorriso de Rose, seu olhar era afiado. Ela observava atentamente o entorno, sem deixar passar nenhuma mulher vestida de vermelho com cabelo comprido.
— Impressionante...
Gritar no meio da cidade era mais embaraçoso do que parecia. Naturalmente, Allusia já tinha feito isso de vez em quando. Mas não se lembrava de ter gritado em meio a uma multidão fora de eventos ou cerimônias.
— Anda, você também, Lady Allusia.
— Hã? Ah, certo... Uhm... A mãe do Ritter está por aqui?!
Allusia levantou a voz por insistência de Rose. Seus chamados começaram a ecoar pela multidão. Afinal, uma das pessoas gritando era a respeitada comandante da Ordem de Liberion. A notícia se espalhou bem rápido.
— Aaah! Ritter!
Demorou cerca de dez minutos para a notícia da criança perdida se espalhar entre a multidão. Como a comandante dos cavaleiros estava procurando por uma mulher de roupa vermelha e cabelo comprido, os cidadãos se sentiram compelidos a ajudar a espalhar a informação.
De repente, uma mulher surgiu correndo em direção a eles, ofegante.
— Mamãe!
O rosto do menino se iluminou na mesma hora. A mulher tinha traços simples e sardas. Provavelmente estava procurando por ele desesperadamente o tempo todo. Gotas grandes de suor escorriam por sua testa.
— Obrigada! Muito obrigada! — repetia a mãe sem parar, abraçando o filho com força.
— Está tudo bem, não precisa nos agradecer — respondeu Rose, sorrindo como sempre.
Apesar de ser de outra nação e de outra ordem, ela agia exatamente como um cavaleiro deveria agir. Allusia acreditava que nenhum dos pupilos de Beryl seria tão imprudente a ponto de agir de forma diferente, mas mesmo assim passou a ver Rose com ainda mais admiração.
— Obrigado, moça! Tchau-tchau! — gritou o menino, acenando animado para Rose.
— Tchauzinho — respondeu Rose alegremente. — Não vá se perder de novo, hein?
Ela continuou acenando até que mãe e filho desaparecessem completamente de vista, então suspirou, aliviada.
— Hehehe... Essa cidade é realmente maravilhosa.
— É mesmo?
— Sim. As pessoas aqui têm um coração tão caloroso. Todo mundo fez o maior alarde por causa de uma única criança perdida.
Allusia quase comentou que isso aconteceu porque Rose saiu gritando no meio da multidão, mas se conteve. Ela já tinha visitado outras nações por motivos diplomáticos por conta do trabalho, mas nunca tinha tido tempo para passear ou observar bem o lugar. Não podia comparar o povo de Liberis — ou de Baltrain, especificamente — com o de outras nações.
Será que a tenente comandante da Santa Ordem estava avaliando Baltrain pelos padrões certos? Será que ela podia mesmo tirar uma conclusão tão positiva da cidade depois de um único incidente comovente? Também era difícil saber com que tipo de lugar ela estava comparando Baltrain.
— Vamos continuar o nosso passeio? — perguntou Allusia.
— Sim, por favor — respondeu Rose, batendo palmas e assentindo.
Essas duas tinham nascido em ambientes completamente diferentes. Ainda assim, ambas admiravam o mesmo mestre e estavam em posições nas quais podiam aplicar seus ensinamentos. Allusia respeitava isso em Rose.
— Você gosta mesmo de crianças, não é? — perguntou Allusia.
— Sim. Só de observar já dá uma paz na alma.
Parte do comportamento de Rose podia ser atribuída ao dever — que era o mesmo tanto para a Ordem de Liberion quanto para a Santa Ordem da Igreja de Sphene. Mas Rose ia além disso. Normalmente, um cavaleiro se limitaria a levar a criança até o posto da guarda, exatamente como Allusia tinha sugerido no início.
— Meus pais ajudavam um orfanato — explicou Rose, abaixando um pouco o olhar. — Por causa disso, desde pequena eu sempre tive muitas oportunidades de conviver com crianças.
— Ouvi dizer que Sphenedyardvania trata bem os órfãos.
— Sim, trata — respondeu Rose, após uma breve hesitação. — As crianças são tesouros de uma nação. É nosso dever, como adultos, protegê-las acima de tudo.
— Concordo plenamente.
Não importava o país — os adultos moldavam o presente. Mas as crianças... elas moldariam o futuro. Allusia entendia bem isso.
— E é por isso que meu corpo se move sozinho quando vejo uma criança precisando de ajuda — disse Rose.
— Isso é algo bom. Eu não consegui agir com tanta rapidez no calor do momento.
— Hihi. Obrigada.
O ideal seria que nenhuma criança passasse fome, e num mundo perfeito, todas seriam criadas sem dificuldades e com acesso igual à educação. Allusia entendia que isso era apenas um sonho. Aquela garotinha que Beryl cuidava agora era o exemplo perfeito de como a realidade era diferente do ideal. Apesar de ter talento para magia, ela tinha sido manipulada por canalhas. Por mais medidas que fossem tomadas, sempre haveria crianças que escapariam da rede de proteção de uma nação. A única questão era quantas e até que ponto.
— Ah, mais uma coisa — disse Allusia, mudando o assunto com um sorriso.
— Sim?
— Me conta mais histórias sobre o Mestre Beryl.
— Com todo prazer.
Allusia ainda estava um pouco presa àquela fala da Rose sobre ser a pupila favorita do mestre, mas não a via como alguém ruim. Além disso, ninguém que tivesse aprendido a manejar a espada com Beryl poderia se tornar uma má pessoa.
— Isso aconteceu pouco depois de eu começar a frequentar o dojo dele...
— Uhum.
Allusia deixou de lado todos os pensamentos por enquanto e escutou com atenção a história de Rose. Eram relatos preciosos sobre a vida recente de Beryl — histórias que ela dificilmente conseguiria arrancar dele diretamente. E estava empolgada demais para ouvir cada uma.
E assim, a sessão de "babar ovo" por um certo mestre — disfarçada de passeio pela cidade — continuou até o cair da noite.
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