Capítulo 3: Um Velho Caipira Derruba a Mão do Mal
Eu estava caminhando pelas ruas de Baltrain durante o dia. Minha saída foi meio inesperada, dado o horário. A cidade estava no meio de um festival, mas grandes ondas de comoção ainda corriam pela multidão por causa da recente tentativa de assassinato. Enquanto ouvia as vozes dos transeuntes, percebi várias pessoas espalhando uma mistura de fatos e boatos.
Era da natureza humana amar rumores. Qualquer fofoca ou assunto sensacionalista com certeza estaria na boca do povo. Depois de uma confusão tão pública, não adiantava tentar abafar o caso. Tinham testemunhas demais pra isso.
Entre as conversas que ouvi, algumas elogiavam a Ordem de Liberion e viam nossos esforços de forma positiva. O comportamento habitual dos cavaleiros, que era bem visto por muitos em Baltrain, provavelmente contribuía pra essa visão mais cor-de-rosa. Também considerei que esse ponto de vista otimista podia ser fruto de algum movimento mais discreto. Afinal, vai saber o que poderia acontecer se alguém criticasse os cavaleiros numa hora dessas.
Além disso, muitos comentários faziam referência à Allusia. E assim devia ser. Ela era realmente muito popular. Seria ridículo estarem focando num velho como eu.
— Talvez eu compre algo no caminho de volta... Ou não. Talvez não seja uma boa ideia levar um agrado pra casa, dadas as circunstâncias...
Eu estava com mais tempo livre do que imaginava, então considerei dar uma passada numa loja no caminho, mas a notícia que eu precisava dar à Mui era séria. Desisti de comprar qualquer coisa e resolvi ir direto pra casa.
Enquanto pensava em como abordar o assunto, meus pés me levaram até lá. Quando percebi, já estava abrindo a porta da frente. Droga, ainda não pensei direito no que vou dizer.
— Voltei — anunciei.
— Mm. Bem-vindo de volta.
— Yo, com licença.
— Hm?
Fui recebido por uma voz familiar e outra que não deveria estar ali. Era estranho — o tom da segunda voz me deu um mau pressentimento. Mesmo assim, fui correndo pra sala. Sentada numa cadeira, com o queixo apoiado nas duas mãos, estava alguém ainda menor que a Mui.
— Ah, oi, Lucy.
Nada menos que a comandante da tropa mágica de Liberis, Lucy Diamond. Ela se endireitou quando entrei e acenou pra mim.
— O que você tá fazendo aqui? — perguntei.
— Não dá pra adivinhar? — ela disse. — A cidade inteira tá comentando.
— As notícias voam, hein.
Pelo visto, ela tinha algo a discutir sobre o ataque da tarde. Eu não estava particularmente empolgado com o assunto, mas também não podia ignorar. Suspirei por dentro e me sentei em frente à Lucy. Não que fizesse muita diferença, mas fiquei feliz por termos cadeiras o bastante. Normalmente, só eu e a Mui ficávamos aqui, então eu não tinha preparado nada pra receber visitas.
— Espera aí — falei. — Bem, é meio tarde pra perguntar, mas...
Lucy inclinou a cabeça. — Hm? O que foi?
Não era estranho a comandante da tropa mágica saber do incidente. No entanto, uma dúvida básica sobre a delegação me veio à mente.
— Por que você — ou a tropa mágica como um todo — não foi chamada pra escoltar?
A tropa mágica era o orgulho de Liberis — uma força militar que rivalizava com a Ordem de Liberion. Não tinha como serem ignorados num evento diplomático tão importante quanto a visita de uma delegação de Sphenedyardvania. Não era hora pra líder da tropa, Lucy, estar de pernas pro ar aqui.
— Magos não são ideais pra missões de escolta — explicou Lucy, coçando a cabeça. — A gente é mais especializada em missões de extermínio.
— Aaah... faz sentido, eu acho.
Mal consegui segurar a piada “acho que só você é especializada em extermínio”. Lucy era a única maga com quem eu já tinha lutado, mas considerando a natureza da magia, provavelmente ela não era adequada pra proteger outras pessoas. Mesmo durante nosso duelo, Lucy se conteve em não usar magias de área. Se tivesse se soltado, teria danificado os prédios ao redor e talvez machucado gente inocente. Magos tinham chance de acabar queimando quem deveriam proteger. Eles eram, sem dúvida, poderosos, mas seu uso precisava ser bem pensado.
— E mesmo deixando isso de lado, a tropa mágica não pode agir publicamente nesse caso — acrescentou Lucy.
— Hm? Sério? Por quê?
Lucy era uma maga pura, mas praticantes de magia com espada como a Ficelle, que eram boas em combate corpo a corpo, podiam muito bem ser utilizados. Mas parece que a coisa era mais complicada.
— Por quê...? — Lucy disse, surpresa. — Já esqueceu no que aquele país acredita?
— Ah...
A Igreja de Sphene era a religião oficial de Sphenedyardvania. A crença deles via os milagres de Sphene — outro nome pra magia que cura ferimentos e fadiga — como o maior presente de seu deus. Foi assim que o Ibroy me explicou. Em contraste, a tropa mágica não fazia distinção entre milagres e magia. Isso fazia com que os dois lados não se dessem muito bem.
Parece complicado. Ainda bem que este velho aqui não tem que lidar com essas coisas.
— Parece que a coisa tá difícil pra você — comentei.
— Já me acostumei. Temos nossos próprios jeitos de lidar com isso.
— É assim mesmo?
— É.
Não fazia muito sentido pra mim, mas a Lucy provavelmente sabia do que estava falando. Resolvi não me aprofundar. Não era algo que me dizia respeito, afinal.
— Desculpa mudar de assunto do nada, mas você não disse que tinha algo pra tratar comigo? — perguntei. Já que fui eu quem desviou o papo, resolvi voltar pro foco.
— Ah, é mesmo. — Lucy bateu as palmas e então foi direto ao ponto, com uma expressão mortalmente séria. — Aconteceu um incidente hoje, não foi?
— Foi, sim.
Não fazia tanto tempo assim, mas Lucy já estava sabendo. A informação chegou a ela tão rápido que me perguntei se não estava assistindo ao passeio real só por diversão. Mas duvido que ela tivesse tanto tempo livre assim.
— Que incidente? — perguntou Mui.
Virei-me pra ela, franzindo a testa. — Ah, você ainda não sabe?
Tinha sido um baita alvoroço por causa do ataque, mas como estávamos no meio de um festival, a cidade já estava em clima de festa. Ela não teria como saber o que estava rolando estando dentro de casa.
—Você lembra que eu tava acompanhando a princesa como escolta? Então... fomos atacados.
—Hã? Tá tudo bem? —perguntou Mui, com os olhos arregalados. Uma reação compreensível. Eu também fiquei bem chocado com aquilo.
—Sim. O príncipe e a princesa estão seguros, pelo menos.
—Bom, você é super forte mesmo.
—Ha ha ha. —Sorri pra ela. —Você me honra com seus elogios.
Qual será a minha colocação no ranking mental da Mui? Eu tinha quase certeza de que a única vez que ela me viu empunhando uma espada foi contra aqueles bandidos do Crepúsculo.
—Sobre isso... —interveio Lucy. —Tava pensando em compartilhar umas informações com você.
—Hmmm...
Como eu estive diretamente envolvido nesse incidente, sentia que sabia mais do que ninguém sobre o que rolou. Se houvesse qualquer outra informação, provavelmente seria sobre os bastidores do ataque, e não o ataque em si.
Droga. Eu realmente não quero ouvir isso. Não me arrastem pra problemas internacionais. Sei que é inevitável depois de tudo que já aconteceu, mas mesmo assim...
—Quem lançou o ataque... provavelmente foi o pessoal de Sphenedyardvania —disse Lucy.
—Sério?
—Eu disse provavelmente. Mas a informação veio de uma fonte relativamente confiável.
Era a Lucy falando, então duvidava que ela estivesse muito errada, mas fiquei curioso sobre como ela chegou nessa conclusão.
—Posso perguntar quem é a fonte?
—Ibroi.
—Aaah...
Então aquele velho tá envolvido? Merda, agora fiquei com um pressentimento péssimo.
—Pensando bem... Você chegou a ver o Ibroi no meio disso tudo? —perguntou Lucy.
—Hmmm... —Voltei mentalmente ao que aconteceu no dia. —Não, não vi.
O visual e os traços dele eram inconfundíveis, mas ele nunca apareceu no meu dia a dia, tirando as reuniões que tivemos.
—No fim das contas, sou só um guarda-costas da princesa... —falei. —E até esse título me foi enfiado à força.
—Suponho que seja isso mesmo quando você não tem nada a ver com o governo —comentou Lucy.
—Nem fui autorizado a entrar no palácio, inclusive.
—Faz sentido. —Lucy suspirou.
Sem acesso ao palácio, era óbvio que eu não tinha participado da reunião com os figurões. Allusia ou Henbrits talvez tenham visto o Ibroi, mas eu só acompanhei o príncipe e a princesa fora do palácio.
—Então, o que o Ibroi disse? —perguntei.
—Certo, de acordo com ele—
—E-ei, peraí um segundo —disse Mui, interrompendo Lucy, meio desesperada.
Virei pra ela, confuso. —O que foi?
—É que... Eu devia estar ouvindo isso?
—Ah...
Ela tinha razão. O Ibroi já tinha dito pra Lucy que não precisava manter segredo absoluto sobre isso, mas isso não significava que a gente podia sair espalhando por aí. Minha nova vida com a Mui já era tão natural que eu nem tava mais prestando atenção à presença dela. Na verdade, ela merecia elogios por ter percebido isso sozinha. Era uma das virtudes da Mui.
—E aí, Lucy? —perguntei.
—Hmm... É, a gente não pode deixar isso vazar —confirmou Lucy, como eu suspeitava.
—Então eu vou sair um pouco pra passar o tempo. —Mui se levantou sem ninguém precisar pedir e foi em direção à porta.
—Hmmm... Desculpa, Mui —falei. Foi meio constrangedor ter uma criança tão nova sendo tão atenciosa comigo.
—Tudo bem —respondeu ela como se não fosse nada demais. —Isso é trabalho, né?
Ela era mesmo uma boa menina. Quer dizer, tirando o passado como batedora de carteiras... Mas de coração, ela era pura.
—Vou aproveitar pra fazer umas compras enquanto isso —disse Mui.
—Beleza.
—Desculpa, Mui —disse Lucy enquanto a garota saía.
Agora só restavam duas pessoas na sala: um homem de meia-idade e uma garota que parecia uma criança, mas era na verdade bem mais velha que ele.
—Certo, vamos direto ao ponto —disse Lucy, voltando ao assunto.
—Uhum. —Endireitei a postura. Definitivamente não era um assunto que dava pra ouvir com desatenção.
—Vamos começar com uma introdução —continuou Lucy. —Sphenedyardvania tá passando por uma espécie de guerra civil no momento.
—O quê? —quase gritei de surpresa.
Já começamos pesado assim? O príncipe Glenn não tinha dado nenhuma pista disso, mas fazia sentido—seria problemático se alguém do nível dele deixasse os estrangeiros perceberem o que tava pensando.
—Quer dizer, não tem uma guerra de verdade acontecendo —corrigiu Lucy, tentando disfarçar um bocejo. —É mais uma disputa de poder político, sabe?
Me pegava totalmente desprevenido toda vez que a Lucy falava sobre algo sério desse jeito tão despreocupado. Eu nunca sabia como reagir.
—Disputa de poder? —perguntei. —Sphenedyardvania não é um estado religioso?
Em Sphenedyardvania, o chefe da igreja—provavelmente o papa ou algo assim—estava acima de todos. Se havia conflito interno, significava que havia interpretações diferentes das escrituras ou algo do tipo?
—Não sei todos os detalhes, mas parece que é um conflito entre duas facções: os papistas e os realistas —explicou Lucy. —E aparentemente a coisa só vem piorando.
—Hmmm...
Isso era comum em um país? Meu mundo era tão limitado que eu não tinha nada com o que comparar essa situação.
—Pera aí —interrompi. —Quem tem mais poder? O papa ou o rei?
Lucy soltou o maior suspiro do dia. —Temos que começar por aí...?
Eu era ignorante sobre o mundo—como é que eu ia saber alguma coisa sobre política, assuntos nacionais e religião? Seria ridículo esperar que eu conseguisse prever qualquer coisa assim. Eu nem sabia há quanto tempo Sphenedyardvania existia como nação. E também não precisava saber disso pra viver em Liberis.
—O papa tem mais autoridade —explicou Lucy. —Mas o rei é quem detém todo o poder político de fato. Só que, pela doutrina nacional, o rei é seguidor da Igreja de Sphene, então ele não pode simplesmente ignorar o papa.
—Entendi...
Já tava começando a parecer aula de história. Mas isso fazia sentido. O rei, ou melhor, os realistas, tinham o poder político real. No entanto, por ser um estado religioso, toda a família real precisava seguir a Igreja de Sphene, o que dava autoridade ao Papa sobre eles.
Hmmm, é complicado. Eu sou péssimo com essas coisas. Mas dava pra perceber quem ia sofrer mais com essa disputa de poder: o povo. Quando os figurões brigam, quem apanha são os de baixo.
Voltando ao que tá acontecendo agora, os realistas e os papistas estavam em conflito, e alguém tinha tentado assassinar o príncipe. Nesse caso, o culpado era óbvio.
—Você quer dizer que os papistas estão tentando enfraquecer os realistas? —perguntei.
—Muito provavelmente —confirmou Lucy. —Ele é o primeiro príncipe, afinal. Isso faz dele o herdeiro óbvio.
Fazia sentido, mas ainda parecia pouco.
—Mesmo que tivessem conseguido, o segundo príncipe não viraria o herdeiro e deixaria tudo na mesma?
—O segundo príncipe... Bom, Sua Alteza o Príncipe Falx é um seguidor extremamente devoto da Igreja de Sphene.
—Hmmm...
Agora sim, tava entendendo o quadro geral. O príncipe Glenn estava prestes a se tornar o rei. Isso era um problema pros papistas. Nesse caso, seria preferível assassinar o primeiro príncipe e colocar o super devoto Príncipe Falx no lugar. Assim, os papistas sairiam fortalecidos. O objetivo final deles provavelmente era governar com um governo fantoche, usando o segundo príncipe como figura simbólica.
Eu não fazia a menor ideia da direção que os figurões de Sphenedyardvania queriam tomar com o país deles. Na real, eu nem sabia como andavam os assuntos internos de Liberis. Vai saber, talvez os cidadãos de lá já estivessem caminhando rumo a uma democracia.
De qualquer forma, eu não conseguia fechar os olhos pra tramas tão nefastas, especialmente estando numa posição onde eu podia fazer algo a respeito. Mas ainda tinha algo que não fazia sentido pra mim.
— Mas... por que fazer questão de lançar o ataque logo em Liberis?
Se tudo o que eles queriam era matar o príncipe, teria sido bem mais fácil fazer isso antes de ele chegar à Ordem de Liberion. Se fosse o caso, eles podiam ter feito isso ainda dentro das fronteiras de Sphenedyardvania, antes de qualquer outra nação ter chance de se meter. Isso até ajudaria nas relações diplomáticas futuras.
— Tô só chutando aqui... — disse Lucy. — Talvez forçar o cancelamento da turnê real fosse um dos objetivos deles.
— Como assim?
— Quero dizer que o primeiro príncipe tá perto de herdar a coroa.
— Hmmm...
A delegação de Sphenedyardvania era um evento anual. Era a minha primeira vez presenciando isso, mas me contaram que era de praxe algum membro da família real acompanhar a delegação durante a visita. Realeza basicamente nunca sai dos castelos. Não importa quantos assassinos incríveis você contrate, chegar perto deles é difícil, e o coração de qualquer nação é, obviamente, o ponto mais bem protegido.
Considerando tudo isso, causar um escândalo durante um evento importante e forçar o cancelamento era bem mais simples do que assassinar um membro da realeza. Se os assassinos tivessem sorte e conseguissem matar alguém, ótimo. Se não, bastava causar um incidente. Pensando por esse lado, lançar o ataque no meio da turnê fazia sentido. Mas se esse for o caso...
— Se esse incidente não for o suficiente pra cancelar tudo... pode haver outros ataques — concluí.
— É bem provável — Lucy concordou.
Se os papistas estavam dispostos a ir tão longe, não iam desistir depois de uma tentativa só. Era quase certo que tentariam de novo. E se eu e a Lucy conseguimos chegar a essa conclusão, o Príncipe Glenn e sua comitiva também deviam ter percebido isso.
— Pelo que ouvi, cancelar a turnê seria o melhor a se fazer — comentei.
— Mas não somos nós que decidimos isso — disse Lucy, apoiando o queixo nas mãos e os cotovelos na mesa.
Ela tinha razão. Meu conselho nunca moveria uma nação. Meu título me colocava numa posição com pouca autoridade pra tomar decisões, e agora que eu sabia de tudo isso, me sentir impotente deixava tudo ainda mais angustiante.
Foi nesse momento que Mui voltou do passeio. Bem na hora.
— Tô de volta.
— S-Seja bem-vinda — disse eu, desviando o olhar pra ela.
— Já terminaram? — ela perguntou.
— Sim, acabamos agora. — Olhei pras mãos dela. — O que é isso?
— Espetinhos. Um carrinho do lado de fora tava vendendo.
— Você ama carne, hein.
— Cala a boca.
Ela voltou com espetinhos pra todo mundo. Apesar da pouca idade, comprou pra mim e pra Lucy sem ninguém pedir nada. Talvez o passado difícil dela tenha ajudado a moldar esse tipo de sensibilidade. Eu já tava começando a sentir fome mesmo, então foi o lanche perfeito.
Crianças que comem bem e dormem bem crescem bem.
◇
— Prestem atenção, todos.
No dia seguinte, a voz firme de Allusia ecoou no escritório da ordem. Já era uma cena familiar, mas sua voz parecia carecer de um pouco da ambição ou força que normalmente tinha. Fiquei me perguntando por quê. Pelo jeito, ela não parecia doente, então dava pra assumir que algo inevitável tinha acontecido.
— Vou direto ao ponto. A turnê real do Príncipe Glenn vai continuar como planejado.
— Hã?
Sério? Soltei um som de surpresa sem querer. Os cavaleiros também ficaram agitados. Depois do turno de guarda de ontem, Allusia e Gatoga deveriam ter ido a uma reunião. Eu já tinha ido embora nessa hora, então não fazia ideia do que foi discutido. Mas a gente imaginava que tudo fosse ser cancelado. Como é que chegaram à conclusão de que dava pra continuar?
— Todos sabem o que aconteceu ontem. Fiquem ainda mais atentos e cumpram seu dever.
— Sim, senhora!
Os cavaleiros responderam com o mesmo vigor que tiveram no primeiro dia da missão. Se alguém sob escolta fosse ferido ou morto num ataque, seria porque a Ordem de Liberion falhou. O orgulho que tinham pela ordem alimentava essa determinação—eles não podiam perder pra uma tentativa de assassinato qualquer. Essas emoções estavam claras na resposta confiante deles, e era bom ver que todo mundo via seu trabalho como algo que valia a pena.
Então sim, o moral estava alto, mas eu podia sentir no ar que os cavaleiros estavam se coçando pra fazer a pergunta. Todo mundo ali era forte em combate, mas força bruta não bastava para ser um cavaleiro. Os membros da ordem tinham cabeças boas, e como todos eram inteligentes, era natural que quisessem entender o porquê de uma decisão dessas.
— Em formação!
Houve um leve murmúrio, mas a voz de Allusia restabeleceu a ordem. Os cavaleiros imediatamente voltaram ao trabalho como sempre faziam.
— Allusia — chamei, sem nem pensar direito.
Parte de mim só queria entender a situação. Com base no que a Lucy tinha explicado sobre as circunstâncias de Sphenedyardvania ontem, essa decisão não fazia sentido.
— Foi um pedido do Príncipe Glenn — explicou Allusia. — Não posso dizer mais do que isso.
— Entendi... Beleza.
Ela não queria entrar em detalhes. Então foi o Príncipe Glenn quem pediu que a turnê continuasse...
Fiquei tentando entender por que ele estava sendo tão teimoso. Do ponto de vista de qualquer um de fora, não fazia o menor sentido seguir com a turnê depois de uma tentativa de assassinato. Independente das implicações políticas, qualquer um valorizaria mais a própria vida do que o sucesso de um evento—ainda mais alguém da realeza.
Ou seja, o Príncipe Glenn estava sendo obstinado de propósito. Eu não fazia ideia do que a Princesa Salacia achava de ter que ir junto com esse pedido dele, mas isso não importava muito—o dever da ordem era garantir que nenhum mal acontecesse a ela ou a qualquer membro da família real.
Mas ainda assim... Por que o Príncipe Glenn insistiria em continuar com o tour turístico? Eu não conseguia encontrar uma resposta com o pouco conhecimento que tinha.
O que a Lucy me contou no outro dia continuava me incomodando. Ela tinha previsto que o Príncipe Glenn herdaria a coroa em breve. O tour real estava programado para durar vários dias, mas a Ordem de Liberion só atuaria como escolta até o penúltimo dia — não precisaríamos acompanhar no último porque a delegação não sairia para lugar nenhum. Aparentemente, todos os eventos do dia aconteceriam dentro do palácio, mas eu não sabia mais do que isso.
Sabendo disso, estava claro que eles encerrariam a visita com algum tipo de assunto político. Isso batia com a previsão da Lucy, e também explicava por que o Príncipe Glenn estava forçando todo mundo a continuar. Eu não conseguia pensar em outra explicação. Não podia ser só pra impressionar a Princesa Salacia — se fosse isso, alguém já teria impedido, e ele não parecia ser esse tipo de imbecil. Ainda era jovem, mas dava pra ver que era do tipo que sabe considerar o que está ao redor.
Então, se a motivação dele não era pessoal, ele tomou essa decisão pensando em questões internacionais. É, eu odeio isso. Eu ia cumprir meu dever como me foi confiado, mas ainda assim não conseguia entender o que se passava na cabeça dos figurões. Se eu fosse da delegação de Sphenedyardvania, já teria voltado correndo pro meu país com o rabo entre as pernas. Qualquer um priorizaria a própria vida. Não faz sentido correr riscos quando você sabe que tem alguém atrás de você.
Espera aí, pera um pouco. Se a Lucy e eu estivermos certos, o Príncipe Glenn ainda estaria sendo visado mesmo no próprio país. Isso significaria que seria relativamente mais seguro ter a Ordem de Liberion por perto pra protegê-lo? Hmmm, ainda assim isso não soa certo. Meu raciocínio partia da ideia de que o alvo era o Príncipe Glenn. Mas a história muda se o alvo for a Princesa Salacia e, mesmo assim, o príncipe continua insistindo com o tour turístico.
Nada feito. Eu não entendo. Não consigo ligar os pontos. Não sou inteligente o bastante pra isso. Melhor focar em cumprir as ordens que me foram dadas.
— Mestre? — perguntou Allusia. Sua voz me trouxe de volta dos devaneios aleatórios.
— Ah, foi mal. Tava só pensando aqui.
Era um péssimo hábito meu ficar viajando nos pensamentos. Nada vai mudar se esse velhote ficar filosofando. Hora de trabalhar.
— Então, o que será que vai rolar hoje? — murmurei.
— O ideal seria se nada acontecesse — disse Allusia. — Mas se acontecer, temos que impedir.
— Você tá certíssima.
Depois de um incidente como aquele, seria ótimo se conseguíssemos terminar esse tour real sem mais problemas. Não dava pra esperar mais que isso. Mas se algo acontecesse, caberia a nós resolver. E, segundo nossas previsões, as chances de encrenca eram bem altas.
◇
— Eu preferia não me meter em mais uma dor de cabeça — murmurei, minha voz se perdendo no céu limpo.
Ignorando completamente o caos político, o dia estava lindo — o tempo tava ótimo, sem nenhuma nuvem no céu. O sol brilhava com força. Seria perfeito, se não tivesse nada acontecendo.
— Conto com você mais uma vez hoje — disse a Princesa Salacia.
— Sim, Alteza.
Estávamos agora em frente ao palácio. Assim como no dia anterior, cumprimentamos a Princesa Salacia e o Príncipe Glenn. Mas, diferente de ontem, os rostos deles estavam um pouco mais fechados. Não eram burros o suficiente pra ficar sorrindo à toa sabendo que tinham alguém querendo tirar a vida deles. Sinceramente, eu ainda achava que eles podiam ter jogado toda a programação no lixo, se estivessem mesmo com medo.
— Gardinant.
— Hm? Aaah, Gatoga.
A partir de hoje, eu me juntaria ao pessoal lá fora. Não era hora de ficar de boa numa carruagem. Eu tava até pensando, sem noção nenhuma, que caminhar era melhor pra minha saúde, quando Gatoga falou comigo. A expressão dele também tava bem diferente hoje — pior que a do príncipe e da princesa, pra ser honesto.
— Preciso trocar uma palavrinha com você — disse ele.
— Hm?
Ele abaixou a voz, tentando não ser ouvido. Se essa era a intenção, podia ter escolhido um lugar melhor, mas não tínhamos outro canto pra conversar mesmo.
— É só um palpite meu — começou, meio hesitante — mas acho que o agressor de ontem era um antigo camarada meu.
— Hmm. Você tá falando do Hinnis?
— Isso mesmo. O cara que era meu tenente antes da Rose.
Depois de ouvir o que ele resmungou ontem, essa conclusão fazia sentido pra mim. Mas que tipo de mundo é esse onde um ex-comandante da Ordem Sagrada é suspeito de tentativa de assassinato? Não adiantava muito questionar o Gatoga agora. Saber o nome do possível culpado não ajudava muito na missão de segurança.
— Se ele aparecer, eu assumo a responsabilidade e cuido dele — disse Gatoga. — Só achei que devia te avisar.
— Entendido.
A postura dele provavelmente tinha a ver com orgulho de cavaleiro e com imagem pública. Nada disso me dizia respeito, mas dava pra entender o sentimento.
— A Allusia também sabe disso? — perguntei.
— Sim, sabe. A gente conversou ontem.
Bom, se ela já tava por dentro, então não era da minha conta. Os dois comandantes estavam de acordo, então eu só precisava seguir o plano. E eu entendo esse desejo de resolver com as próprias mãos a bagunça deixada por um subordinado antigo.
Assim que terminamos de conversar, o Príncipe Glenn e a Princesa Salacia subiram na carruagem. Estávamos prontos pra partir. Eu não sabia exatamente o que o Gatoga tava passando, mas também não podia me descuidar. Um possível inimigo podia surgir de qualquer canto.
Hora de trabalhar.
◇
— Bom trabalho hoje, Allusia.
— Você também, Mestre.
O sol já começava a se pôr. Estávamos protegendo o príncipe e a princesa há alguns dias sem nenhum problema, e depois de mais um dia tranquilo, estávamos de volta ao escritório da ordem. Após agradecer a todos pelo trabalho, já era quase hora de encerrar o expediente.
— Enfim... Hoje foi incrivelmente calmo de novo.
— Sim, assustadoramente calmo — concordou Allusia.
Mais uma vez, nada fora do comum havia acontecido. O que era algo bom, claro, mas considerando o ataque do segundo dia, também era um pouco misterioso. Absolutamente nada havia acontecido — nem sequer senti olhares estranhos. Apesar do incidente inicial, o passeio real ainda era um evento gigantesco, então havia muitos curiosos por perto. No entanto, mesmo em meio àquela multidão, não percebi nem o menor traço de hostilidade como naquele primeiro dia. Isso foi um choque pra mim e pros outros cavaleiros. Era quase anticlimático. Passamos os últimos dias tentando entender qual tinha sido o propósito daquele ataque.
— Bem, acho que um dia sem incidentes é o melhor cenário... — comentei.
Era óbvio que todos preferiam um dia calmo a outro marcado por uma tentativa de assassinato da realeza. Mas, depois de termos sido atacados uma vez, a chance de algo mais acontecer era tão alta que esse silêncio dos últimos dias acabava sendo decepcionante.
A propósito, desde o segundo dia, todos estavam em alerta, mas ninguém tanto quanto o Gatoga. Ele passou os dias encarando tudo ao redor. Aquilo, somado à sua aparência, era seriamente intimidador. Dava até pra acreditar que ninguém tentou mais nada por causa da cara de poucos amigos dele. Em contraste, Rose continuava agindo como sempre — sorridente e despreocupada. Bom, esse era o jeito dela, então eu sabia que não era descuido.
— Pensar que não conseguimos nenhuma informação relevante... — murmurei.
A expressão da Allusia ficou um pouco mais séria.
— Não posso negar que fomos um pouco negligentes, mas conseguir tão pouco...
A conversa era sobre os prisioneiros que tínhamos capturado vivos após a tentativa de assassinato. Assim como no caso do Reveos, eles estavam presos no subsolo da ordem. Esperávamos conseguir informações sobre o porquê de estarem mirando na realeza, quais eram seus objetivos e de onde vinham. No entanto, todos os prisioneiros cometeram suicídio quase ao mesmo tempo.
Foi um choque e tanto pra ordem. Pelo que ouvi depois, não conseguiram extrair nenhuma informação, deixando o incidente completamente envolto em mistério. Sem pista alguma sobre os objetivos dos atacantes, só nos restou redobrar os esforços na proteção da turnê real. Chegamos a considerar a possibilidade de que aqueles que atacaram no outro dia fossem todo o grupo, mas de qualquer forma, Gatoga deixou um deles escapar, então não podíamos baixar a guarda.
Faltava apenas mais um dia para o fim da turnê real, então parte de mim estava aliviada por saber que em breve eu estaria livre dessa tensão toda.
— Amanhã é nosso último dia, né?
— Sim. Não haverá guarda no último dia da visita da delegação — confirmou Allusia.
Era estranho que nada tivesse acontecido nesses últimos dias — se algo estivesse por vir, seria amanhã. Todos preferíamos que nada ocorresse, mas duvidava sinceramente que eles desistiriam depois de virem com tanta sede de sangue e determinação.
Bom, não adiantava ficar remoendo isso mais do que já estava. Acontecesse algo ou não, não era minha escolha — não precisava me preocupar com todos os detalhes. Só tinha que lidar com o que viesse. Um dia tranquilo seria motivo pra comemorar.
— Certo, vou pra casa — disse.
— Muito bem. Obrigada pelo esforço de hoje.
Os relatórios entregues por cada equipe no dia não apontaram nenhum problema, então não havia muito o que discutir. No máximo, aquela loja de acessórios que o Príncipe Glenn tinha visitado no primeiro dia continuava atraindo muita gente, então ainda precisava de segurança por perto. Fora isso, era só ir pra casa, jantar e dormir.
Bom, havia mais uma coisa — eu tinha a importante missão de conversar com a Mui sobre o dia dela. Precisava saber se algo na vida escolar dela estava decepcionante ou faltando. Mui ainda era tímida, então não era do tipo que se abria com facilidade, mas eu estava trabalhando com paciência pra criar esse canal de comunicação. Era divertido à sua maneira. Eu já tinha experiência com crianças na época do dojo, então estava tentando, aos poucos, me aproximar mais dela.
Saí do escritório da ordem e encontrei o distrito central de Baltrain tão barulhento quanto sempre — no bom sentido. O festival ainda estava rolando, então a cidade estava animada do amanhecer até tarde da noite. As coisas ficaram bem caóticas no dia do ataque, mas essa agitação negativa foi se dissipando ao longo desses dias pacíficos.
Rezei por um amanhã tranquilo e segui meu caminho de volta pra casa.
— Conto com vocês de novo hoje.
— Alteza.
No dia seguinte, mais uma vez estávamos recebendo o Príncipe Glenn e a Princesa Salacia em frente ao palácio. Era bom ver que suas expressões estavam um pouco mais leves. O incidente os abalou no começo, mas parecia que os efeitos estavam se dissipando aos poucos.
Em contraste, os membros da Ordem Sagrada não pareciam nada bem, especialmente o Gatoga. Um dos deles estava sob suspeita de ser o assassino, então não tiveram tempo pra relaxar. Os cavaleiros da Ordem Sagrada tinham músculos e resistência de sobra, mas o cansaço era visível.
— Gatoga, você tá aguentando firme?
— Hm...? Sim, sem problemas — respondeu ele, tentando soar tranquilizador. — Só faltam mais alguns dias. Vou aguentar.
O tom dele não ajudou a aliviar minha preocupação. Diferente da Ordem de Liberion, a missão da Ordem Sagrada não terminava hoje. Mesmo após o fim do passeio do príncipe, eles ainda precisariam escoltá-lo de volta até Sphenedyardvania. Na verdade, o caminho de volta era ainda mais arriscado do que ficar na cidade com a Ordem de Liberion. Talvez, só talvez, aqueles que nos atacaram tenham desistido de fazer algo contra o Príncipe Glenn em Baltrain — e estivessem esperando o retorno dele. Mas, se o verdadeiro alvo fosse a Princesa Salacia, a chance de haver outro ataque contra qualquer um dos dois cairia bastante depois de hoje.
— Estamos partindo.
Será que conseguiríamos passar pelo último dia em segurança? Enquanto ponderava sobre isso, o cocheiro nos avisou que estávamos em movimento. A programação de hoje nos levaria até o distrito sul para vermos as vastas terras agrícolas de Baltrain. Não era um destino chamativo, mas a agricultura sustentava uma nação inteira. Liberis, em especial, era abençoada nesse aspecto, então provavelmente seria algo significativo para Sphenedyardvania testemunhar... talvez. Os países variavam em clima e extensão de terra, e eu não tinha certeza de quanto o planejamento agrícola de Liberis poderia servir de referência.
Ah, não adianta ficar criticando o roteiro turístico da realeza...
— Uau... É tão vasto e bonito — comentou o príncipe Glenn.
— Hee hee, não é? — sorriu a princesa. — Esta região agrícola é o orgulho de Liberis.
Agora no distrito sul de Baltrain, tudo ao nosso redor era verde, verde e mais verde até onde a vista alcançava. Fileiras de plantações se estendiam tanto que me perguntei se passavam do horizonte.
— Que vista... — murmurou o príncipe.
Era minha primeira vez no distrito sul também. Tudo ali era diferente de Beaden. Seria absurdo comparar os campos acolhedores que tínhamos em casa com os imensos terrenos desenvolvidos que sustentavam a capital. Concordava completamente com o príncipe Glenn. Era lindo — bucólico o bastante pra eu pensar que seria um ótimo lugar pra um piquenique. Beaden tinha seus próprios encantos, mas havia algo mais elegante em contemplar os vastos campos dessa grande cidade. Se não fosse pela situação atual, eu estaria realmente encantado.
Mas eu não podia baixar a guarda. Diferente dos distritos central e oeste, não havia prédios altos ao redor. E com tantas plantações, havia inúmeros pontos cegos. Os campos eram muito abertos, então precisávamos ficar atentos em todas as direções. Mesmo com os cavaleiros posicionados formando um perímetro externo, era impossível prever onde um assassino poderia estar escondido.
Ainda não tinha sentido nada suspeito. Mas, se fosse acontecer um ataque, seria agora — enquanto o príncipe e a princesa estavam fora da carruagem. Considerando o cronograma do dia, essa era a única chance. O resto do dia consistia apenas na volta ao palácio.
Justo quando eu desviava a atenção da paisagem para o entorno imediato, ouvi um grito.
— Quem está aí?!
Gatoga gritou de repente, com tensão clara na voz. Ao mesmo tempo, um matagal nos campos se agitou.
De repente...
Um coelhinho de pelos brancos e fofos saltou do mato. Talvez assustado com o grito de Gatoga, ele deu alguns pulos e voltou a se esconder no matagal.
— É... um coelho — falei.
— Desculpa...
A expressão sem graça de Gatoga foi marcante. Ele estava tão atento ao redor — sua reação era compreensível.
A princesa Salacia riu da cena.
— Hee hee hee.
A tensão no ar se dissipou, dando lugar a um clima mais leve. Esse sentimento se espalhou até para os cavaleiros — risadinhas ecoaram entre os guardas ao nosso redor. Bem, isso era melhor do que todos ficarem travados de nervoso. Relaxar um pouco os ombros ajudava na hora de agir rápido se algo acontecesse. Além disso, até onde eu podia ver, não havia nenhuma ameaça por perto. A maioria dos prédios por ali era pequena, então não precisávamos nos preocupar muito com ataques vindos de cima.
— Vamos voltar? — perguntou a princesa.
O príncipe Glenn assentiu.
— Sim, já vi o suficiente por aqui.
Satisfeitos com a visita à zona agrícola, o príncipe e a princesa se viraram para retornar à carruagem. Ela não pôde avançar até o meio do campo, então eles precisavam caminhar um pouco até alcançá-la.
— Espera! Pare aí mes... Ugh?!
De repente, no caminho de volta, um dos cavaleiros da periferia gritou. O príncipe e a princesa se sobressaltaram. Parecia que o incidente do outro dia tinha deixado uma leve sequela.
— Haaah...
Então é agora. Vai acontecer mesmo. Eu já imaginava, mas ainda assim...
Suspirei e me virei para ver várias figuras vestidas de preto rompendo o perímetro dos cavaleiros. Estavam com as mesmas roupas do outro ataque, dificultando a identificação imediata. Porém, dessa vez não era uma emboscada. Estávamos preparados, e eles não podiam nos atacar de cima dos telhados.
Se esses invasores tivessem o mesmo nível de habilidade dos do outro dia, conseguiríamos contê-los. Desembainhei minha espada — feita com os resistentes materiais de Zeno Grable — e a mantive em posição de combate.
Certo, hora de trabalhar. Vamos com calma e fazer nosso papel.
Os assassinos forçaram passagem pelo círculo de cavaleiros. Eram mais do que da outra vez. Será que era porque não tínhamos onde nos esconder? Ou estavam tentando garantir uma vitória esmagadora depois do fracasso anterior? Parecia que mais e mais deles estavam invadindo.
Caramba! Façam seu trabalho direito aí fora! Por que tantos estão conseguindo passar?! Não era só um grupinho — havia tantos que podiam nos cercar se não tomássemos cuidado.
— Hmph!
— Gah!
Cortei o primeiro homem de preto que atravessou o perímetro. Infelizmente pra ele, eram tantos que não dava pra me segurar. Um pensamento me veio à mente enquanto cortava sua carne com facilidade.
Esses caras são bem mais fracos que o grupo anterior. Tinham a vantagem numérica, mas individualmente eram bem menos habilidosos do que os do primeiro ataque. Nem todos deviam ser completos inúteis, mas os homens do ataque anterior foram muito mais difíceis de derrubar. Talvez nossos inimigos não tenham conseguido reunir bons assassinos dessa vez e resolveram apostar na quantidade. Seria um erro bem-vindo da parte deles... mas eu duvidava que fosse só isso.
— Príncipe Glenn! Princesa Salacia! Abaixem a cabeça! — gritei.
— C-Certo!
Evacuar seria complicado, e também não havia onde se esconder. Sendo assim, o melhor a se fazer era manter a cabeça baixa e evitar ser atingido por acidente. Num espaço tão aberto como aquele, até um único projétil podia ser fatal. Da última vez, o confronto tinha acontecido no meio da cidade, o que foi problemático por outros motivos, mas até que tranquilo. Era bom não precisar se preocupar com o que estava fora do meu alcance.
Mas agora, estávamos lidando com um espaço amplo e aberto. Isso, combinado com pontos de cobertura, dificultava muito a proteção dos nossos VIPs. Não seria um problema se os inimigos estivessem apenas com espadas, mas arqueiros eram outra história. Precisávamos ficar atentos a essa possibilidade, então não dava pra nos afastarmos do príncipe e da princesa.
Chegando à mesma conclusão, Allusia e Henbrits também reforçaram nosso círculo defensivo ao redor dos dois. Só que não dava pra formar uma parede totalmente fechada, porque pra conseguir lidar de fato com os atacantes, a gente precisava lutar um pouco mais afastado da realeza.
Essa situação tava muito mais favorável pro lado atacante, e um verdadeiro pé no saco pra gente.
— Opa! — gritei, rebatendo instintivamente um projétil que veio zunindo.
Droga! Eles realmente trouxeram arqueiros! Felizmente, os caras não eram bons de mira, mas o fato de terem meios de atacar à distância já era um baita problema. Isso tornava tudo exponencialmente mais difícil.
— Tsk! Eles têm arqueiros! Cuidado com as flechas! — gritou Gatoga, percebendo a mesma coisa.
Saber do perigo não ajudava muito. Era praticamente impossível rebater fisicamente cada flecha no ar. Se não lidássemos logo com os arqueiros, uma hora ou outra uma flecha ia escapar da nossa defesa e atingir o príncipe ou a princesa.
— Hinnis sabe usar espada e arco! — berrou Gatoga. — Aquele desgraçado!
Pelo visto, o ex-tenente comandante também era bom com arco. Nesse caso, ele provavelmente estava comandando os arqueiros. Ele teve que recuar durante a luta com o Gatoga no outro dia, então talvez tenha concluído que estava em desvantagem no corpo a corpo.
— Gatoga! — chamei.
— O quê?!
Do jeito que as coisas iam, nossa situação só ia piorar. Com os assassinos vindo em massa e agora arqueiros na mistura, a gente logo ia atingir o limite. Nosso grupo de escolta era composto por elites, mas mesmo assim, nossa energia e determinação tinham um fim.
— Vai atrás dos arqueiros! — gritei. — A gente segura as pontas aqui!
— Merda!
Uma das flechas atingiu as costas de um dos encapuzados, fazendo o cara cair rolando no chão. Esses malucos nem se davam ao trabalho de distinguir aliado de inimigo. Só tavam enchendo a área de flechas e torcendo pra acertar alguém.
A coisa tava ficando feia pro nosso lado. A gente mal conseguia conter o avanço dos assassinos. Precisávamos mudar de lugar ou eliminar os arqueiros antes que ajustassem a pontaria. Caso contrário, o príncipe e a princesa iam ser atingidos.
— Beleza! Tô deixando com vocês! — gritou Gatoga.
Sem tempo pra pensar, Gatoga rugiu e avançou direto na linha de frente. Era o melhor a se fazer—ele precisava acertar as contas com Hinnis. Mesmo que não tivesse um motivo pessoal, esse impasse não ia se romper se alguém não entrasse de cabeça na confusão.
Agora, só restava acreditar nas habilidades do Gatoga—confiar no título dele como comandante da Ordem Sagrada. Não podíamos dividir nossas forças mais do que já estavam. Se fizéssemos isso, o príncipe e a princesa iam morrer. A responsabilidade de protegê-los agora era minha, de Allusia e Henbrits. Habilidade não faltava entre nós três, mas número sim.
Não que a gente tenha escolha além de aguentar firme! Hã? Espera aí, cadê a Rose? Pra onde ela foi?
Ela tava por perto quando o Príncipe Glenn e a Princesa Salacia estavam admirando a vista, mas ninguém percebeu que ela saiu do grupo. Conhecendo o jeito dela, era difícil acreditar que tivesse abandonado o posto nessa hora crítica.
— Ah.
Achei. Ela tava posicionada mais à frente, encarando os assassinos na linha de frente. Bom, não adiantava muito a gente só ficar cercando os membros da realeza. Considerando o espaço de combate, não era hora de arrastar tudo pra um caos corpo a corpo. Nesse sentido, o julgamento dela fazia sentido... desde que ela conseguisse segurar os assassinos, claro.
— Hah!
— Ugh...!
Perfurei outro assassino que passou pela Rose. Ela tinha treinado no meu dojo, mesmo que só por um tempo, então eu conhecia bem as habilidades dela. O estilo dela focava em defesa e contra-ataque, então era perfeita pra esse tipo de batalha defensiva. As técnicas da Rose nunca perderiam pra esses assassinos de quinta, mesmo em desvantagem numérica. Ela até derrubou o assassino habilidoso no ataque anterior.
Então por que oponentes tão fracos—que eu consigo cortar com facilidade—estão conseguindo passar por ela?
— Toma essa!
Derrubei mais um. Rebati a adaga que veio contra mim e, no contragolpe, cortei o inimigo do ombro até a cintura. O homem de preto caiu numa poça de sangue sem nem emitir um gemido.
É... Tava estranho demais tantos desses assassinos passarem pelo perímetro dos cavaleiros. Eu até entendia os atacantes do outro dia terem conseguido—mesmo pra um espadachim treinado, eles tinham habilidade. Além disso, pularam dos telhados, onde não havia guardas, e nos atacaram direto.
Mas esses caras eram diferentes. Estavam a anos-luz dos atacantes anteriores. A única vantagem deles era a quantidade.
Só quatro pessoas estavam protegendo os membros da realeza diretamente—bem, sem a Rose, três—mas cavaleiros tanto da Ordem de Liberion quanto da Ordem Sagrada deviam estar ao redor. Não tinha como a Ordem de Liberion fazer um trabalho tão porco. Era impensável um cavaleiro se recusar a arriscar o próprio corpo pra conter assassinos tão insolentes. Se algum deles fosse assim, Allusia ou Henbrits já teriam percebido. Esse tipo de cavaleiro já teria sido expulso há muito tempo.
— Urgh... Tem tantos deles! — resmungou Allusia, derrubando um assassino com um único golpe certeiro.
Agora não era hora de tentar capturar ninguém vivo. Se a gente perdesse tempo tentando imobilizar um, o próximo já podia estar com a lâmina no nosso pescoço. Tínhamos que acabar com eles o mais rápido possível.
— O que tá acontecendo com o perímetro de defesa?! — rugiu Henbrits.
A reclamação dele era justa. Um ou dois assassinos passando até dava pra entender, mas isso aqui já era pura negligência — um monte de vagabundos mal treinados nunca devia ter conseguido forçar passagem.
Só uma explicação me vinha à cabeça: a Ordem Sagrada.
Eles estavam deixando os assassinos passarem. Abrindo caminho de propósito.
Tinha tanto inimigo que até parecia lógico pensar assim. Contra minha vontade, me lembrei do caso com Reveos e da conversa que tive com a Lucy. Os realistas e os papistas estavam em pé de guerra em Sphenedyardvania. Naturalmente, isso devia ter se infiltrado dentro da Ordem Sagrada também.
Se essa série de eventos fosse obra dos papistas... Um cara que já tinha sido tenente-comandante da Ordem Sagrada se rebelar... Não seria nada estranho se ele tivesse aliados escondidos dentro da Ordem, ajudando no plano de matar o Príncipe Glenn.
E se a Rose também for uma deles... tudo começa a fazer sentido.
— Hup!
Interceptei um brilho suspeito que refletiu o sol enquanto voava na minha direção. Uma adaga de arremesso. Como o combate corpo a corpo não tava dando certo, agora estavam partindo pras armas de arremesso. Se eu tivesse demorado um segundo, aquela adaga provavelmente estaria fincada no príncipe ou na princesa agora. Graças ao Gatoga, não tinha mais flecha voando, mas do jeito que estava, a gente não ia sair do lugar.
Eles não podiam ter tropas infinitas. Em algum momento, esse ataque ia perder força. Mas eu não sabia se nós três íamos aguentar até lá. Eu tinha quase certeza de que venceríamos no fim... Mas será que o Príncipe Glenn e a Princesa Salacia sairiam dessa sem ferimentos?
— Allusia! — gritei, desviando de mais algumas adagas.
— O que foi?!
Era uma aposta arriscada, mas melhor do que esperar pra ser cercado aqui. Além disso, mesmo que a Ordem Sagrada não fosse confiável, nossos próprios cavaleiros eram. Se eu estivesse errado sobre isso, então essa missão já estava fadada ao fracasso desde o começo.
— Leva o príncipe e a princesa e corre até os cavaleiros da Ordem de Liberion! Eu seguro as pontas aqui!
— O quê?! Mas—
— Só vai! Vamos ser cercados se continuarmos assim! Precisamos abrir passagem em algum lugar!
Se a gente fosse cercado por todos os lados por assassinos e lâminas voadoras, não dava pra imaginar um desfecho onde saíssemos vitoriosos. Era melhor reunir os cavaleiros da Ordem de Liberion espalhados pelo perímetro, formar um grupo de confiança e escoltar nossos VIPs de volta pro palácio.
— Príncipe Glenn! Princesa Salacia! Sigam a Allusia e o Henbrits! E mantenham as cabeças abaixadas!
— E-Entendido!
Era vida ou morte, mas os dois assentiram com firmeza. Seria um problema se perdessem a coragem agora, então eu precisava que eles reunissem toda a força que tivessem e seguissem em frente.
— Urgh... Henbrits, vamos! — gritou Allusia.
— Sim, senhora!
Aceitando meu plano, Allusia e Henbrits começaram a se afastar. Não dava tempo de subir na carruagem. Aliás, carruagem nem era meio de transporte rápido — dava pra alcançar correndo fácil. Então, a única escolha era fugir correndo e encontrar os cavaleiros da Ordem de Liberion no caminho. Isso ia ser puxado pro príncipe e pra princesa, mas se quisessem viver, teriam que aguentar.
— Hah!
— Guh...!
Agora que não tinha mais ninguém pra proteger, eu finalmente podia lutar do meu jeito. Sem nenhuma preocupação pesando minha mente, eu não pretendia ser empurrado para um combate difícil.
Desculpem aí, mas hoje não tô no clima de ter piedade com vilão. Vou cortar todo mundo.
— Hmph!
Eu não podia deixar nenhum assassino passar, então acabei virando algo tipo um espadachim maluco testando sua lâmina nova, cortando qualquer um que aparecesse. Me fazia sentir o vilão da história. Bom, eles é que são os vilões de verdade, mas ainda assim...
Continuei balançando a espada para todos os lados. Um tempo depois, a zona agrícola tinha se transformado num inferno de sangue e tripas.
— Phew...
A onda humana finalmente tinha parado. Respirei fundo e me perguntei se o príncipe e a princesa tinham conseguido escapar. Eu não sabia — só me restava confiar na habilidade da Allusia e do Henbrits. Não faço ideia de quantos eu matei, só sei que foi um número absurdo de assassinos. Fiquei surpreso da minha lâmina ainda estar afiada depois de cortar tanta gente. Uma espada normal já teria quebrado.
— Agora sim, podemos conversar — falei, virando pra cavaleira de armadura completa à minha frente.
Ela não se mexeu. Mesmo depois que o Príncipe Glenn e a Princesa Salacia escaparam, ela continuou ali, como se nada tivesse acontecido. Mas, conhecendo as habilidades dela, percebi que tinha algo errado desde o começo. Agora era praticamente certo... Mas ainda me faltavam informações sobre os verdadeiros motivos dela.
— Que tal me contar suas razões pra isso tudo, Rose?
Como esperado, Rose sorriu como sempre fazia.
— O senhor é mesmo forte, Mestre.
Ela falou com a maior naturalidade do mundo — como se estivesse passeando no parque. Mas o cenário ao nosso redor estava longe de ser pacífico. As roupas novas que comprei pra essa ocasião estavam destruídas, cobertas de sangue. Nem sei se lavar isso vai resolver.
— Bom, contra inimigos desse nível, acho que é verdade mesmo.
Até eu tinha conseguido lidar com aquela multidão sem dificuldade. Eles eram fracos — só tinham quantidade. Enquanto falava, sacudi o sangue da lâmina. Acho que minha espada tá afiada demais pra apontar contra alguém que conheço. Não é certo que isso vá acabar em luta... mas tô com um pressentimento ruim.
— Por que você deixou os assassinos passarem?
Essa foi a primeira pergunta que saiu da minha boca. Mas o que eu esperava com isso? Que a Rose negasse? As evidências circunstanciais já deixavam a verdade bem clara.
— Hihi, do que você tá falando? Eu lutei direitinho.
A atitude da Rose continuava a mesma. Ela manteve seu sorriso habitual. Ainda assim, eu duvidava que ela realmente acreditasse que aquela desculpa ia colar. Ela tinha uma personalidade despreocupada, mas não era burra nem nada do tipo. A armadura imponente da Rose era imaculada e elegante, condizente com seu cargo de tenente-comandante da Ordem Sagrada — e não havia um único amassado ou mancha de sangue. Isso, mais do que tudo, era prova de que ela não havia lutado de verdade.
— Mesmo com a sua armadura intacta e limpinha?
Ela piscou, confusa, e só então olhou para baixo. Era como se tivesse percebido esse detalhe só depois de eu apontar.
— Ah, eu mandei tudo voando com meu escudo — respondeu num tom quase infantil.
— Entendi.
Parei pra pensar um pouco. Repetindo: a Rose podia ter um jeito leve, mas não era burra. Na verdade, ela era mais esperta que a média, e também tinha um ótimo faro para entender as pessoas. Se faltasse qualquer uma dessas qualidades, ela nunca teria chegado ao posto de tenente-comandante.
E mesmo assim, ali estava ela, dando desculpas esfarrapadas apesar da verdade estar escancarada. Será que ela tava escondendo alguma coisa porque não podia contar pra ninguém? Ou era só porque não queria contar pra mim? Será que era egoísmo querer saber o verdadeiro motivo?
— Bom, mesmo usando o escudo, você deixou um monte deles passar — falei.
— Eu só tive um dia ruim. Aposto que você também tem os seus de vez em quando.
Ela estava com a estóc em mãos, mas ela também estava limpinha — sem uma gota de sangue. Em outras palavras, ela não enfrentou nenhum assassino de verdade.
Essa linha de perguntas não tava dando em nada, então resolvi puxar o assunto que a Lucy tinha me contado.
— Vai ser tão ruim assim se o príncipe Glenn herdar a coroa?
O sorriso da Rose sumiu na hora.
— Vejo que, além de forte, você também é bem informado — disse ela.
— Ah, foi só algo que ouvi por aí...
Eu não fazia ideia do que realmente estava rolando em Sphenedyardvania, nem sabia se os realistas ou os papistas estavam com a razão. Pra falar a verdade, nem sabia direito pelo que cada lado lutava. Talvez (e só talvez) os papistas tivessem um motivo justo que eu simplesmente não conhecia. Mas mesmo levando isso em conta, eu não conseguia fechar os olhos diante de uma tentativa descarada de assassinar o príncipe.
— Eu achei que eles não seriam páreo pra você... — murmurou a Rose. A expressão dela mudou, talvez por ter percebido que se fazer de boba não ia funcionar mais.
— Vou tomar isso como um elogio.
Nossos inimigos só tinham vantagem numérica. Além disso, a Allusia e o Henbrits estavam protegendo o príncipe e a princesa, então eu não tinha com o que me preocupar nesse sentido. Levando tudo isso em conta, não tinha como eu perder pra bandidos de quinta como os de hoje. Mas se fosse um grupo de assassinos habilidosos, como no primeiro ataque... aí seria outra história.
— Mestre...
— Hm?
O tom da Rose tinha mudado.
— Se sua terra natal se encontrasse em uma encruzilhada... o que você faria?
Essa era uma pergunta difícil pra um velho do interior. Eu não entendia nada de política. Mesmo que eu estivesse em posição de virar rei ou algo assim, não tinha a menor confiança de que conseguiria governar um país.
— Sou só um caipira velho... — respondi. — Política não faz sentido pra mim.
Essa pergunta provavelmente era o que estava deixando a Rose tão confusa. Então, mesmo que minha opinião fosse meio fora da curva, eu precisava dizer como instrutor dela.
— Primeiro... não seria melhor perguntar ao povo o que tá incomodando?
Foi só o que me veio à cabeça. Depois de entender os problemas dos cidadãos, os líderes podiam pensar em soluções e ir resolvendo um por um. Era o máximo que eu podia imaginar.
— É... talvez seja isso que um bom governante faria. — O sorriso da Rose sumiu mais uma vez. — Mas... e se os governantes estiverem ignorando o povo e brigando entre si? E se o país estiver empobrecido por anos de disputas pelo poder? Se tudo só estiver piorando cada vez mais? E se for necessário purificar o coração do Estado o quanto antes? Se os figurões só estiverem pensando em quem vai sentar no trono e brigando feito ratos...? O que você faria, Mestre?
A expressão dela era cheia de angústia.
— Eu sei lá... Como você sabe, não sou exatamente brilhante — falei.
Provavelmente minhas palavras não iam ser o bastante. Eu não conseguiria fazer com que ela se abrisse comigo — não do jeito que ela estava agora. Por trás do sorriso dela, tinha uma decisão terrível. E foi isso que nos trouxe até aqui.
Como a Lucy tinha previsto, os papistas estavam tentando resolver tudo matando o príncipe. Não havia garantia de que isso traria estabilidade pro país, mas talvez alguns acreditassem que uma queda repentina fosse melhor do que apodrecer devagar. Pelo visto, a Rose concordava com essa ideia. Eu não fazia ideia de quanto sofrimento e conflito interno ela teve até chegar nessa decisão... mas duvidava muito que tivesse sido algo fácil. A expressão torturada e dividida dela dizia tudo.
Mesmo que ela tivesse chegado a essa conclusão depois de pensar, e pensar, e pensar mais um pouco—
— Tudo isso pode até ser verdade... mas você ainda é minha ex-aluna, e eu não consigo simplesmente ignorar enquanto você se desvia do caminho certo.
— Não tem como eu simplesmente ver você dando um golpe de estado e ficar parado.
— Entendi... Você é mesmo uma boa pessoa, Mestre.
—Você está sorrindo de novo, Rose... mas se eu não estiver enganado, parece o sorriso de uma criança tentando segurar o choro.
—Acho que você também é uma dessas “pessoas boas” — falei.
—Hee hee. Será mesmo?
No dojô, Rose sempre cuidava e se preocupava com as crianças menores. Ela tinha um jeito muito próprio de cuidar dos outros, bem diferente da Allusia. O dojô tinha muitos alunos pequenos, então ela acabou virando uma espécie de irmã mais velha para todos. Naquela época, meus pupilos pareciam adorá-la.
—Eu tinha a impressão de que te ensinei a usar a espada para proteger os outros — reclamei, com um leve tom de censura.
Não era uma questão de estilo ou técnica. Era questão de espírito. A espada é uma arma — existe pra matar. Eu mesmo tinha acabado de matar um monte de gente, e não pretendia fingir que minha lâmina era pura. Mas uma coisa eu nunca deixaria de lado: os motivos pelos quais eu pegava numa espada. Quanto mais forte a pessoa, maior a responsabilidade que vem junto. Era esse o tipo de esgrima que eu ensinava.
—Essa espada também serve para proteger muitas pessoas — Rose insistiu. A resposta que ela tirou do tempo dela no dojô parecia ser diferente da que eu esperava. — Vai haver derramamento de sangue. Muitas pessoas vão morrer. Mas isso é salvação.
—Você está errada, Rose.
Como eu já disse, eu não entendo nada de política. E, sinceramente, nem tenho interesse. Se minha espada, as espadas dos meus pupilos e todos ao meu redor estiverem em paz, já é o suficiente pra mim. Mesmo assim, por mais ignorante que eu fosse, havia algo que eu entendia.
—Uma verdadeira revolução não pode ser construída em cima de um mar de sangue.
A adaga de um assassino sempre deixa rancores. Eu escolho com cuidado quando e onde usar minha espada justamente pra evitar isso. Do contrário, um mestre espadachim não passaria de um assassino.
—Tem outra coisa me incomodando — falei.
—E o que seria?
Rose queria alcançar algum tipo de salvação, mesmo que para isso tivesse que cometer atos desumanos. As particularidades disso — e da situação do país dela que a levou a essa decisão — me preocupavam, mas havia algo ainda mais inquietante.
—O que você quer? — perguntei.
—Como eu disse, estou aflita com o estado atual do meu país...
Cortei antes que ela continuasse.
—Não, digo depois disso.
Eu entendi que ela estava angustiada com a situação da nação. Até dava pra entender que esse atentado contra o herdeiro do trono era, na cabeça dela, uma forma de resolver a situação, por mais que eu não concordasse com os métodos.
Mas e depois? Suponhamos que eles conseguissem assassinar o Príncipe Glenn, e os papistas tomassem controle total do país. E aí? Talvez Rose fosse exaltada como a cavaleira da salvação. Talvez ela ganhasse ainda mais poder do que já tinha. Ou talvez fosse executada como traidora, culpada por um banho de sangue.
—O que te levou a ir tão longe? — perguntei. —Você quer poder como a cavaleira que trouxe a salvação? Ou é só sede de massacre? Nenhuma dessas opções parece combinar com você.
Eu não conseguia imaginar qual seria o futuro depois de tudo isso. Ter uma grande causa pela qual lutar é admirável — eu mesmo nunca tive uma. Às vezes, perseguir seus ideais de cavalaria a qualquer custo pode ser algo nobre. Mas, ainda assim...
—Rose, acho louvável ter uma causa tão grande quanto a salvação. Mas isso é só o meio — não o fim. Que felicidade você espera alcançar ao salvar seu país?
O que havia além dessa grande causa? Sinceramente, não conseguia ver um futuro onde Rose fosse feliz. Talvez ela quisesse morrer como uma cavaleira fiel cumprindo seu dever — mas ela nunca foi esse tipo de pessoa. Pelo menos era o que eu achava, e essa impressão só ficou mais forte depois da conversa que tivemos outro dia. Até mesmo entrar na Ordem Sagrada parecia ter sido uma escolha que ela fez só porque Gatoga mandou.
—Mestre... você me ouviria? — ela perguntou, hesitando.
—Claro.
—Sabe... Eu amo crianças.
—É, eu sei.
Aprendi isso na época em que ela treinava no dojô. Rose era como uma mãezona, sempre cuidando dos outros. Devia haver muitas crianças que se salvaram por causa do carinho e da dedicação dela.
—Crianças morrem de fome e frio todos os dias em Sphenedyardvania — ela disse.
—Entendo...
Salvar todos os cidadãos — esse é o ideal de qualquer nação. Mas esse ideal não passa de um sonho distante. Até eu sabia que não era algo realista. Sempre haveria aqueles que ficariam de fora da proteção do Estado. Mui era um exemplo.
Rose segurou meu olhar.
—Sua Santidade me disse que, se o controle do país for entregue a ele, a ordem será restaurada e o sofrimento acabará. Disse que nenhuma criança mais morrerá diante dos meus olhos.
—E você acredita nisso?
Seria fácil dizer que ela estava sendo usada como uma ferramenta. Mas falar isso agora não adiantaria nada. Parecia que ela já sabia disso.
—No que mais eu posso acreditar? — perguntou. —Tenho fé na Igreja de Sphene.
—Deveria haver um caminho sem derramamento de sangue. Você poderia ter buscado poder pra seguir por essa via.
O que ela estava tentando alcançar estava indo rápido demais. Mudar uma nação não é tão simples — é preciso tempo, planejamento. Mesmo que a guerra civil fosse encerrada agora pela força, a verdadeira paz ainda estaria muito longe.
E essa paz só será possível se quem vencer a guerra for uma pessoa virtuosa. Mas eu duvido que alguém que criou um plano de assassinato seja capaz de formar um governo justo.
— A menos que a gente faça algo drástico, não vai dar tempo... — disse Rose com um sorriso. — Não dá pra ficar de braços cruzados. Enquanto estamos aqui conversando, a desigualdade em Sphenedyardvania só piora. Mais e mais pessoas estão morrendo.
— Então você vai derrubar os realistas e forçar o sistema inteiro a mudar?
— Isso mesmo.
Tinha tantos furos no raciocínio dela. Até eu conseguia perceber, então a Rose com certeza já tinha notado também. Provavelmente passou noites em claro, sofrendo até chegar a essa conclusão amarga.
— Até eu sei que seu plano não passa de um sonho — falei. — Como é que você vai cuidar das crianças com essas mãos sujas de sangue? Ainda acho que você está cometendo um erro.
Mesmo com toda a determinação dela, eu me mantive firme. Ela estava errada, e precisava entender isso.
— Mas... — Rose começou a falar, mas se interrompeu. — Não. Acho que não adianta.
— A gente continua essa conversa em outro lugar mais apropriado — falei, dando um passo à frente.
Ela me encarou, sem nem tentar fugir. Apenas segurava seu estoque e o escudo cônico em uma postura de combate meio desanimada.
— Hihi. E se eu disser que não quero ir a lugar nenhum com você?
Por um instante, sua expressão sumiu, mas logo voltou ao normal. Falou com a voz alegre de sempre, sorrindo daquele jeito habitual.
— Desculpa, mas não tem outro jeito — falei.
Empunhei minha espada. Se depois de tudo isso ela ainda não ia parar, então conversar era perda de tempo. Rose não ia mudar por conta própria. Nesse caso, só restava a mim pôr um fim nessa loucura.
Minha espada, forjada com os materiais de Zeno Grable, ainda brilhava em vermelho sob o sol, mesmo depois de estar encharcada de sangue opaco.
Eu vou cortar uma ex-aluna. Se eu puder evitar isso, quero evitar. Honestamente, nem sei se vou conseguir. Afinal, Rose frequentou meu dojo, mesmo que por apenas um ano e meio. Sempre foi uma devota da Igreja de Sphene, e rezava sempre que podia. Nem sei quantas vezes já fiz cara feia pra pregação fervorosa dela. Mas, mesmo com todos aqueles dias corridos, as lembranças que tenho dessa garota sempre sorridente são boas.
Mas agora... tudo isso é passado.
— Hihi... Então vou resistir com tudo o que tenho.
Observei bem minha oponente. Ela estava com armadura completa, então, na velocidade máxima, eu era mais rápido. Rose sabia disso. Ela assumiu uma postura baixa, cobrindo metade do corpo com o escudo e abaixando a ponta do estoque. No dojo, ela não usava escudo. Ainda assim, lembrando dos nossos treinos, ela era ótima em se defender e contra-atacar. Tinha certeza de que ela aperfeiçoou ainda mais essas habilidades. Com um escudo ao lado, a defesa dela agora era mais sólida do que nunca.
Agora, será que minha força era suficiente para atravessar essa defesa? Eu conseguiria empunhar minha espada contra ela de verdade? Já tinha feito muitos combates de treino com espadas de madeira, mas nunca havia usado uma de verdade contra um pupilo. Queria pará-la, mas só de pensar em matar uma aluna cheia de potencial, minha determinação vacilava.
— Hah!
E, com a resposta ainda indecisa dentro de mim, Rose avançou, dando início ao combate.
— Hup!
Desviei a estocada dela pro lado. Rose era especializada em defesa, mas isso não significava que era ruim no ataque. Ela tinha técnica de sobra para tomar a iniciativa, se quisesse. Na verdade, aquele golpe foi muito mais afiado do que eu esperava, considerando o peso da armadura.
— Hyoo!
Rose não lutou contra a força que desviou seu estoque — em vez disso, usou o pulso para transformar o golpe em um corte horizontal com maestria. Seus sons de respiração estranhos ecoavam no ar enquanto o estoque dela atacava de novo e de novo.
— Guh!
Comecei o trabalho interminável de bloquear a lâmina fina dela. Droga! Eu já sabia disso, mas ela é forte demais! Os golpes dela eram incrivelmente rápidos e pesados para alguém usando armadura completa. Já tinha visto esse tipo de força numa batalha recente também. A técnica dela lembrava a de Spur — o cara que enfrentei antes de capturar Reveos. Sem precisar colocar o peso inteiro nos ataques, ela usava a rotação dos ombros e do quadril para lançar golpes velozes. Eu até conseguia me defender, mas era difícil repelir a lâmina dela.
Então, pra sair dessa, só me restava uma opção: partir pro ataque.
Talvez percebendo que eu ainda não tinha me preparado mentalmente pra batalha, Rose ergueu a voz em provocação.
— Hihi! Qual é o problema, Mestre?! — Ela continuou atacando com o estoque.
— Ugh!
Tanto eu quanto Rose éramos especialistas em defesa. Tecnicamente falando, eu era do tipo que desviava e devolvia os golpes, enquanto ela era mais do tipo que bloqueava tudo completamente. De qualquer forma, nenhum de nós era muito ofensivo por natureza.
Mas a Rose que eu ensinei se focava demais em se defender e não treinava o ataque o suficiente. Os golpes dela também eram meio desleixados. Por isso, o que mais ensinei a ela foi como atacar e como usar melhor a parte inferior do corpo. E agora, ela estava usando tudo isso — tinha evoluído tanto que me fazia acreditar que realmente aprendeu.
— Não vai lutar, Mestre?!
Eu não conseguia atacar por causa da minha hesitação. Rose, por outro lado, não tinha mais nada a perder, então partiu pra ofensiva. Era uma situação estranha. Nossos combates no dojo eram tão mais tranquilos, quase elegantes.
— Eu endureci meu coração pra chegar até aqui! — ela declarou.
Desviei um golpe largo do estoque dela. Aquela era a chance perfeita pra contra-atacar. Se eu atacasse agora, podia acertar um golpe que não fosse fatal.
Mas minha espada se recusava a se mover.
— Não vai me deter?!
Os ataques de Rose continuavam vindo. A técnica dela era linda, mas esse ataque era completamente diferente da Rose que eu conhecia.
— Se você pode me parar, então faça isso! Mostra do que você é capaz, Mestre!
Ela desceu a estocada com um grito. Eu desviei para o lado, interrompendo o impulso da Rose. Aproveitei a brecha e recuei dois passos.
— Rose, você está—
— Hihihi... Acho que me empolguei demais.
"Rose, você está hesitando?" — era isso que eu ia perguntar, mas a resposta animada dela me cortou no meio. Mesmo que eu perguntasse, ela não me responderia com sinceridade. Se eu tivesse a capacidade de convencê-la a recuar, essa luta nem teria começado.
Combates inflamam o espírito. Não é raro os verdadeiros sentimentos virem à tona nessas situações. Até nas minhas lutas com Henbrits e Selna, eles gritavam pensamentos e admirações no calor do combate.
Talvez, só talvez... a Rose queira que eu a detenha. Pode ser só uma esperança boba da minha parte. Pode ser um mal-entendido. Mas a Rose que eu conheço nunca levantaria a voz daquele jeito, não importa a situação.
— Hihihi... Você é forte demais, Mestre. Não acho que consigo te vencer.
Apesar do ataque intenso, sua respiração estava estável. Ela ainda tinha bastante energia. Manter esse nível de resistência era impossível sem treino constante — essa luta era a prova de que ela não tinha relaxado nem um pouco em sua dedicação. Fiquei feliz por ver isso... mas detestava ver ela usando essa força para esse tipo de coisa.
— Então vai se render pra mim? — perguntei, por via das dúvidas, caso ela tivesse mudado de ideia.
Seria ótimo se minha influência fosse suficiente pra fazê-la desistir. Talvez tudo terminasse sem feridos — e depois, eu e os outros cavaleiros poderíamos tentar convencê-la com calma a mudar de pensamento.
— Não posso fazer isso — ela respondeu com firmeza, esmagando minha esperança. — Eu simplesmente não posso, Mestre... Tenho certeza de que não consigo vencer você. Cruzar espadas com você deixou isso claro pra mim.
— Então—
— Mas eu não posso parar. Não depois de ter chegado tão longe — Rose sorriu como sempre fazia. — Se eu falhar aqui, as crianças que estão sendo mantidas como reféns vão morrer.
— O quê...?
— Aposto que Sua Santidade tá esperando uma vitória certa — ela acrescentou, com uma expressão serena. — Não que eu fosse pegar leve, mesmo que ele não tivesse recorrido a isso...
Que canalha. As palavras subiram pela minha garganta, mas eu as engoli. Reclamar não mudaria nada. A situação estava clara na minha mente — ela estava agindo assim porque crianças foram feitas de reféns. Eu sabia que ela queria salvar o próprio país... mas isso era demais. Eu não dava a mínima pro caos interno de Sphenedyardvania, mas não podia simplesmente ignorar quando uma ex-aluna adorável era forçada a seguir um caminho tão desumano. Finalmente entendi por que ela se recusava a desistir.
— Mestre.
— O quê...?
— Por favor, me detenha — disse ela, com aquele tom animado. — Por favor, repreenda sua aluna idiota.
Com uma determinação trágica nos olhos, ela ergueu a estoca mais uma vez.
— Haaaaaah...
Soltei um suspiro longo, muito longo. A situação não ia melhorar se eu continuasse hesitando. Não podia deixar essa luta se arrastar por mais tempo. Tomei minha decisão.
— Rose.
— Sim?
Eu a encarei diretamente, segurando minha espada reta à frente.
— Eu vou te matar.
Rose não disse nada. Só sorriu como sempre e levantou o escudo.
Eu não fazia ideia de como ela tinha vivido desde que saiu do dojo. Da mesma forma, ela também não sabia como eu tinha vivido nos últimos anos. Minha força tinha praticamente estagnado — na minha idade, mesmo treinando por anos, não podia esperar um grande avanço. Mas havia algo que eu tinha agora, que não tinha naquela época.
— Hmph!
Dei dois passos à frente e ergui minha espada. Eu nunca fui bom em ataques avançando. Minha velocidade de reação era boa, mas em força bruta, eu era muito inferior a gente como Allusia ou Henbrits. No máximo, era um pouco mais forte que um homem comum da minha idade.
Rose sabia disso, claro. Por isso, não tentou se esquivar e preferiu defender com o escudo. Ela era excelente em defesa. Era impossível superar o escudo dela só com força. Eu sabia disso melhor do que ninguém — e ela também.
Ela planejava bloquear meu ataque e contra-atacar logo em seguida. Era a decisão certa. Com a habilidade dela, isso seria uma vitória garantida em uma luta comum. No entanto, por mais que eu estivesse dentro do nível de um "oponente comum", Rose não sabia nada sobre a lâmina em minhas mãos.
— Hã...?
O sorriso da Rose, apoiado em sua confiança absoluta na defesa, desapareceu de repente. Minha espada manteve o ímpeto e atravessou o escudo como se fosse papel. A armadura pesada também cedeu sem resistência. Abri um corte reto no peito dela — uma cicatriz que nunca ia desaparecer.
— Gah!
Rose cambaleou com o golpe inesperado e caiu de joelhos. Sangue fresco escorria pelo peito. Dessa vez, o sorriso dela tinha sumido por completo, substituído por um olhar de choque e apreensão. Ela provavelmente nunca imaginou que seu amado escudo e sua armadura resistente pudessem ser quebrados com um único golpe. Ela não estava cuspindo sangue, então felizmente o golpe não atingiu os pulmões. Mas a ferida era grave — continuar lutando estava fora de questão. Se não estancasse o sangramento logo, ela corria risco de morrer.
— Essa foi minha vitória...
Eu não tinha me segurado — golpeei sem pensar em poupar. Tive que dar tudo de mim contra uma oponente habilidosa que estava disposta a matar membros da realeza. Nesse momento, consegui entender um pouco como Gatoga se sentia. Rose não era minha subordinada, mas como seu ex-instrutor, eu tinha uma responsabilidade clara.
Eu precisava impedir sua loucura.
— Guh...!
Rose gemeu e tentou se levantar. Eu a encarei de cima. Me perguntei que tipo de expressão eu estava fazendo. Será que eu parecia triste? Não consegui dizer.
— Acabou, Rose.
Fiquei surpreso com o quão fria minha voz soou.
— Haaah... Haaah...!
Apertando o ferimento no peito, Rose continuava tentando se levantar à força.
— É melhor você não se mexer tanto. Se abrir ainda mais esse ferimento, não vai conseguir parar o sangramento.
Rose estava praticamente se segurando na consciência. Qualquer um podia ver a gravidade do ferimento. Ela ia morrer se não recebesse tratamento especializado imediatamente. Fui eu quem a feriu, então parte de mim sentia que nem tinha direito de dizer alguma coisa. Ainda assim, mesmo depois de atacar com intenção de matar, não é como se eu tivesse resolvido todos os meus sentimentos em relação à minha antiga pupila. Será que era egoísmo da minha parte querer que ela sobrevivesse?
— Hee... Hee hee... Eu perdi...
Ela acabou desistindo de se levantar e caiu de costas com um baque metálico. Estava sorrindo, mas completamente pálida. Tinha perdido sangue demais.
— Que espada é essa...? Isso não vale...
— É a minha carta na manga.
Tendo sentido na pele, ela devia saber o quão injusto era o fio daquela espada. Até eu achei meio absurdo que ela tivesse cortado tanto o escudo quanto a armadura daquela forma. Bem, eu tinha me preparado pra tentar exatamente isso, mas mesmo assim. Além disso, mesmo depois de praticamente abusar da espada, a lâmina nem estava lascada. Era uma obra-prima absurda.
— Provavelmente não vou ficar mais forte do que já sou, mas isso também é uma forma de força — falei.
— É realmente... injusto...
— Ha ha ha.
Definitivamente não era o tipo de situação pra rir, mas eu não consegui segurar. Não era uma risada de deboche contra a Rose nem nada. Como eu tinha dito, eu já tinha atingido meu limite. Daqui pra frente, só me restava envelhecer. Mas força não era só sobre técnica. Eu estava finalmente percebendo isso, mesmo que um pouco tarde na vida. Mesmo depois de ensinar aos cavaleiros como usar o próprio corpo pra virar o jogo numa luta, eu mesmo não tinha aprendido essa lição. Espero que me perdoem pela trapaça. Aquela espada era boa demais pra mim, mas já que o destino a colocou nas minhas mãos, seria um desperdício não usá-la.
Não havia mais movimento algum no distrito sul de Baltrain. Só o som fraco do vento e a respiração pesada da Rose podiam ser ouvidos. Nenhum de nós sabia mais o que dizer, então o silêncio dominou o lugar.
— Norad... — Rose murmurou de repente, caída no chão.
— Hm?
— Eline, Sandra, Harvis, Gill, Kennedy, Chilcott, Mary, Horzon... Todos eles morreram.
Não conhecia nenhum desses nomes. Allusia e Henbrits com certeza também não deviam conhecer, mas talvez Gatoga soubesse. Provavelmente eram pessoas que compartilhavam os ideais da Rose. Certas ou não, tinham a mesma paixão.
Será que fui eu quem matou alguns deles? Ou talvez tenha sido a Allusia ou o Henbrits? Tinham cometido o crime grave de tentar assassinar membros da realeza, então eu não sentia muita culpa. O vazio que eu sentia era só o resultado de ter tirado muitas vidas.
— Hak! Gah...
— Rose! Você tá bem?
Pelo rosto pálido, parecia que os pulmões dela estavam mesmo sangrando. Aparentemente meu golpe acabou atingindo-os. Pode parecer estranho eu estar preocupado, considerando que fui eu quem a feriu, mas ainda assim, me perguntava o que deveria fazer. Se a deixasse ali, ela com certeza morreria, mas eu não entendia nada de medicina. Teria sido diferente se eu tivesse uma poção em mãos, mas infelizmente não trouxe nenhuma.
—-M-Mestre... — disse Rose, com a voz fraca, entre tosses e respirações ofegantes. — Por favor... me mate. Quero morrer... pelas suas mãos...
Vi lágrimas se formando nos olhos dela. Duvidava que fossem só por causa da dor.
— Não posso fazer isso — falei.
— Mestre...?
Não havia o que discutir. Ela cometeu um crime — e dos graves. Um simples “desculpa” não bastava. Ela tinha participado de uma tentativa real de golpe de estado. Não sabia qual seria a sentença final, mas ser absolvida estava fora de cogitação. Ela podia até ser condenada à pena de morte.
No entanto, quando me lembrei das palavras que ela disse logo antes de eu cortá-la, decidi que não lavaria as mãos disso — não deixaria que outra pessoa julgasse Rose. E mesmo que ela não tivesse me revelado seus motivos, eu jamais daria o golpe final na minha antiga aluna. Talvez isso seja egoísmo... mas eu não vou fazer isso.
— Você deve viver e encarar os seus crimes — disse. — Além disso...
Meu próprio corpo recusava a ideia. Eu me sentia fisicamente incapaz de causar mais dano a ela. Rose sentia a responsabilidade por suas ações, mas eu não achava certo resolver tudo com a morte dela. Afinal, o plano dela falhou. E ainda havia as crianças que estavam sendo mantidas como reféns. Agora que eu sabia disso, virar as costas pro problema real seria a pior escolha — tanto pra mim quanto pra Rose.
— Parece que ainda tem coisas que eu não te ensinei — falei.
— Tee hee... É mesmo?
Sinceramente, minha intenção sempre foi ensinar a ela a empunhar uma espada para proteger os outros. Como ela virou alguém disposto a participar de uma revolução sangrenta? Só me restava lamentar meu fracasso como professor. Provavelmente nunca mais teria a chance de orientá-la de novo. Mas entendi com clareza que ser instrutor vai muito além de ensinar como balançar uma espada.
— Hak!
— Opa... E agora? O que eu faço com você?
Rose tossiu sangue de novo. Apesar de eu ter decidido não acabar com ela ali, tratá-la estava completamente fora do meu alcance.
O ferimento era muito mais profundo do que eu tinha imaginado. Se continuasse assim, Rose ia morrer.
— Ei! Gardinant! Hã?! O que aconteceu aqui?
— Gatoga...
Foi então que o comandante dos Cavaleiros Sagrados apareceu, vindo até nós com passos pesados. A armadura dele estava coberta de sangue e arranhões, mas ele parecia estar bem. Pelo visto, já tinha lidado com todos os arqueiros. E ainda carregava um homem inconsciente no ombro.
— Cadê o Príncipe Glenn? — perguntou Gatoga. — Aliás, espera... Alguém derrotou a Rose? Quem foi?
— Bom, sobre isso...
Eu não tinha muita certeza de como responder às perguntas rápidas dele. Pensando com calma, o instrutor especial da Ordem de Liberion tinha acabado de derrubar a subcomandante da Sagrada Ordem da Igreja de Sphene. Isso até podia se resolver se a Rose confessasse, mas se ela decidisse resistir até o fim e tentasse jogar a culpa em mim, ia ser difícil sair dessa. Eu duvidava que ela fosse fazer isso, mas, de qualquer forma, não fazia ideia de como explicar a situação pro Gatoga.
— Hak! Comandante, eu só... cometi um errinho...
— Se você diz... Ah, espera só um pouco.
"Errinho", hein? Tecnicamente, não tava errado. Não era uma mentira. Gatoga jogou de qualquer jeito o cara que tava carregando no chão e correu até a Rose. Quem é esse cara, afinal? Gatoga largou ele como se fosse um saco de batatas, mas parecia que só tava inconsciente. Cabelo castanho curto, corpo meio magro. Também parecia mais novo do que eu. Pelo traje todo preto, devia ter feito parte do ataque ao príncipe. Talvez esse fosse o Hinnis.
— Tá bem fundo... — disse Gatoga, colocando a mão no ferimento da Rose. — Não posso fazer muito, mas isso aqui... deve aliviar a dor.
Logo em seguida, uma luz pálida envolveu o corpo da Rose.
— Isso é um milagre? — perguntei.
— É — respondeu Gatoga. — Não é muito minha especialidade, porém.
Agora que parei pra pensar, os cavaleiros da Sagrada Ordem podiam usar milagres. Eu já tinha visto os cavaleiros que protegiam Reveos usando magia pra fortalecer o corpo.
— Rose, você não consegue usar nenhum?
— Eu... não sei usar magia...
— Não fala — Gatoga interrompeu. — O ferimento não vai fechar direito.
— Ah... Foi mal, fiz ela falar.
Eu nunca tinha visto a Rose usando magia. Quando ela aparecia no meu dojo, se apresentava só como uma espadachim. Então nem todos os cavaleiros da Sagrada Ordem sabiam usar magia. Ou talvez a Rose fosse uma exceção.
Por alguma razão, percebi que não tinha mais nada pra fazer ali, então me virei pro Gatoga.
— Hmm? Você não precisa recitar nada? — Os cavaleiros com quem lutei todos recitavam algum feitiço pra fortalecer o corpo. O Gatoga só encostou a mão na Rose.
— A recitação é só uma oração. Dá pra usar milagres sem falar nada. Os fanáticos é que gostam de recitar toda hora.
Então dava pra usar milagres em silêncio. Segundo a Lucy, milagres eram só um tipo de magia, e ela mesma nunca recitava nada quando usava magia. Sabendo disso, o milagre silencioso do Gatoga fazia todo sentido.
— Ufa... Consegui parar o sangramento... — disse ele depois de pressionar o ferimento por um tempo, soltando um suspiro e limpando o suor da testa.
Como eu não entendia muito de magia nem de medicina, não fazia ideia de como a Rose estava agora que tinha parado de sangrar. Eu sabia que a situação ainda era grave, mas não sabia até que ponto o milagre do Gatoga tinha ajudado.
— Então? O que aconteceu, Gardinant?
Provavelmente era seguro assumir que a Rose estava estável — pelo menos por enquanto. Prova disso foi o olhar direto que Gatoga me lançou ao tirar os olhos dela.
— A Allusia levou o príncipe e a princesa — expliquei. — Quanto à Rose... indo direto ao ponto, fui eu quem a derrubou.
— O quê...?
A tensão no ar era tão afiada quanto uma lâmina encostada no meu pescoço.
— Eu suspeito fortemente que a Rose estava envolvida na tentativa de assassinato.
Gatoga ficou em silêncio por um bom tempo.
— Isso é verdade, Rose?
Ele conhecia a Rose há bem mais tempo do que me conhecia. Mas a fé dele na lealdade da Sagrada Ordem já tinha sido abalada pela traição do Hinnis. E ele também devia saber do conflito entre papistas e realistas, então não podia simplesmente ignorar o que eu disse.
Talvez percebendo que não dava pra escapar, a Rose respondeu com sinceridade:
— Tee hee... É, é verdade.
— Entendi... — Gatoga voltou ao silêncio.
— Mas no fim... ela hesitou — falei.
— Eu sei o quanto ela é patriótica... — murmurou Gatoga.
Com isso, parece que o assunto tava encerrado. Gatoga levantou a Rose, e depois, quase como se lembrasse de repente, pegou o cara desacordado também. Ele foi meio bruto, mas não tinha muita opção além de carregar os dois nos ombros.
— Ah, Rose—
— Normalmente, não teria como escapar da pena de morte — disse Gatoga, me cortando. — Esse é o tamanho da gravidade do crime que cometeram.
Fazia sentido. Eu também não esperava que ela fosse absolvida depois de uma tentativa de assassinato contra a realeza. Como Gatoga falou, as ações dela levavam direto à execução. A Sagrada Ordem não tinha motivo pra deixar uma ameaça dessas à segurança nacional solta por aí — especialmente considerando que o país nem estava tão estável assim.
Mesmo assim, por mais que a abordagem deles tenha sido falha, eles realmente lamentavam o estado do país. Eu gostaria que essas circunstâncias atenuantes fossem levadas em conta, mas a realidade era cruel. Dito isso, também não era como se tudo se resolvesse só punindo os traidores.
— Parece que a Rose foi forçada a fazer isso pelo Papa — falei. — Usaram crianças como reféns.
— O quê...?
Se ela foi forçada a obedecer, talvez a coisa mudasse de figura. Duvidava que a Rose tivesse mentido na última hora. Claro que ela não era completamente inocente, mas se fosse feita uma investigação de verdade, dava pra evitar uma sentença de morte imediata.
— Rose, o que tá acontecendo? — perguntou Gatoga.
— Sem comentários... — ela murmurou. — Bom, era o que eu queria dizer, mas acho que perdi, então... são os órfãos.
— Tch.
O quanto o Gatoga sabia? Era bem provável que ele conhecesse os conflitos internos de Sphenedyardvania, mas e sobre os movimentos dos papistas e realistas? Minha informação veio do Ibroy e da Lucy, mas era difícil imaginar que o comandante da Sagrada Ordem estivesse menos informado do que os dois.
— Vamos ter que começar uma investigação... — murmurou Gatoga. — Quanto à Rose... bom, vou ver o que posso fazer.
— Isso é...
Eu estava pessoalmente agradecido, mas... não foi meio imprudente da parte do comandante dos cavaleiros? Se ele tentasse defendê-la, sua imagem pública poderia ser afetada. No pior cenário, Gatoga podia acabar sendo suspeito de traição e executado junto com os outros.
— Não posso garantir nada, é claro — acrescentou Gatoga.
— Pois é...
De qualquer forma, eu não podia me meter em nada do que viesse a acontecer a partir dali. A investigação e o veredito final seriam conduzidos em outro país, por pessoas muito mais importantes do que eu. Fiquei pensando como isso tudo iria terminar. Os crimes que cometeram não eram nada leves. Mas, como a Rose era uma das minhas ex-alunas, eu tinha sentimentos mistos em relação a tudo isso.
— Vamos voltar — sugeriu Gatoga. — Mas olha, tô surpreso que você venceu a Rose com tanta facilidade. Acho que é por isso que ela te considera um mestre tão respeitado.
— Bom, eu tinha uma cartinha na manga.
— Isso é que é assustador.
O distrito sul de Baltrain tinha virado um verdadeiro campo de massacre. Um pensamento meio fora de hora me passou pela cabeça. Vai dar um trabalho desgraçado limpar tudo isso.
Comecei a caminhar em direção ao distrito central.
— E o que exatamente você pretende fazer? — perguntei para Gatoga no caminho.
— Hm? Deixa eu ver...
Gatoga já era um homem enorme, mas com a Rose e, pelo que eu supunha, o Hinnis nos ombros, ele tinha uma silhueta simplesmente monstruosa. Só de andar ao lado dele já era intimidador. Qualquer civil provavelmente congelaria de medo se ele ameaçasse alguma coisa.
— Comandante. Me põe no chão, por favor — reclamou Rose.
— Não. O sangramento parou, mas você ainda tá gravemente ferida.
— Aaaah...
Eu concordava com o Gatoga. Ela realmente não estava com uma aparência muito digna ali em cima, mas considerando o estado dela, era melhor aceitar. Embora... eu tenha sido quem causou esse ferimento, né? Então nem tenho muito o que falar.
— Além disso, se eu te deixar no chão, você pode acabar fugindo.
— Eu... não faria isso.
— Por que essa pausa aí?
Um monte de gente ia se ferrar se a Rose fugisse agora, então Gatoga não podia correr esse risco. Nesse ponto, a maior preocupação era como ela seria punida.
Como o próprio Gatoga já tinha mencionado antes, a pena de morte seria o mais provável. Era praticamente impossível livrar a cara dela. Eu ao menos tinha uma noção vaga da gravidade de uma traição contra a coroa, e no pior cenário, era possível até que a família inteira da Rose fosse executada. Mas também havia a questão dos reféns. Se isso viesse a público, poderia afetar o peso da punição dela.
Infelizmente, eu achava bem improvável que isso acontecesse. Se a história dos reféns fosse divulgada, poderia balançar as estruturas de Sphenedyardvania. E ninguém queria isso. No fim das contas, são sempre os civis que sofrem mais num país instável.
— Primeiro, a gente precisa encontrar as crianças e garantir que elas estão seguras — disse Gatoga. — Nada pode começar antes disso.
— Faz sentido — concordei. — Não que eu possa ajudar em muita coisa...
— Não se preocupe com isso — ele respondeu. — Esse é um problema da Ordem Sagrada. Você não precisa se envolver.
Se a Rose estava dizendo a verdade, então tinham pessoas muito influentes por trás disso tudo, e eu, como indivíduo, não podia fazer nada. E seria bem ruim um estrangeiro se meter — isso só traria ainda mais problemas.
— Rose, tem ideia de onde estão os pirralhos? — perguntou Gatoga.
— Não me contaram os detalhes... Provavelmente foram levados com a desculpa de que estariam recebendo abrigo.
— Aff... isso vai dar um trabalho dos infernos — resmungou Gatoga.
Eu já esperava por isso, mas parecia que nada ia ser simples. Não dava pra saber se o papa ou algum dos aliados próximos dele estava por trás de tudo isso. Eu não conhecia muito sobre Sphenedyardvania, então era um completo estranho nesse assunto. No máximo, eu só queria ajudar a Rose a continuar viva.
— Então, sobre o que vamos fazer com você — disse Gatoga, mudando o foco para a Rose.
O ar ficou tenso por um instante. Não importavam as circunstâncias, a tentativa de assassinar o príncipe não ia ser perdoada. E o comandante da Ordem Sagrada não podia ignorar a confissão dela.
— Por agora... o líder era o Hinnis. Rose, você se envolveu, lutou contra ele e perdeu. Vamos seguir com isso.
— Hã? Mas isso é... — murmurei sem querer.
Ou seja, ele planejava esconder parte da verdade. Será que isso é certo? Acho que não, hein...
— Comandante?
Até a Rose demonstrou claramente que não concordava. Ela tinha hesitado até aquele ponto, mas agora parecia estar decidida. Entendia muito bem as consequências pesadas das próprias ações, e com certeza sabia que perderia a vida se falhasse.
Então, mesmo que o Gatoga tentasse encobrir as coisas, será que a Rose aceitaria? Do jeito que ela era, eu imaginava que talvez preferisse se entregar ou até se matar. Afinal, ela sentia tanta responsabilidade que já tinha me pedido pra matá-la antes. Desde o momento em que resolveu apoiar esse golpe de estado, já tinha aceitado sacrificar a própria vida — tudo em troca das crianças que tinham sido feitas de reféns.
Mas não era isso que mais me incomodava.
— Por que ir tão longe assim? — perguntei a Gatoga.
Pra ser sincero, eu não entendia por que ele queria encobrir a Rose. Ela era sua tenente atual, mas ele estava tratando o antigo tenente com bem menos consideração. Tinha dito que ia derrubar o Hinnis com as próprias mãos, sem chance de perdão. Mesmo a Rose tendo o mesmo cargo e cometido o mesmo crime, ele queria salvá-la. Isso não fazia sentido nenhum.
— Ela é minha irmã... — murmurou Gatoga.
— Hã?
— A Rose é minha irmãzinha — repetiu ele. — Não de sangue, claro. Mas nos conhecemos desde pequenos.
Sério isso? Só faltava essa. Rose e Gatoga são irmãos? Eu nunca teria adivinhado. Ela nunca nem mencionou isso.
—É-é verdade isso, Rose? — perguntei.
—É... É sim... — respondeu ela, sem jeito.
Bem, tecnicamente ela tinha tramado contra o próprio irmão. Eu conseguia entender o porquê de ela estar se sentindo mal com isso. As coisas estavam começando a fazer sentido. Se o Gatoga não tirasse a Rose desse furacão, o status dele também poderia estar em risco — como já comentei antes, era possível que toda a família da Rose fosse executada por traição. Nesse caso, o Gatoga podia acabar sendo arrastado junto, mesmo sem laço de sangue.
—Mas eu posso fazer algo assim de novo, sabia? — disse Rose.
—Ei, dá um voto de confiança pro seu irmão, caramba — resmungou Gatoga.
Ou seja, a Rose tinha ido longe o bastante pra se voltar até contra a própria família pra levar esse plano adiante. A determinação dela era assustadora. Eu só sabia o que a Lucy tinha me contado sobre a guerra civil em Sphenedyardvania, mas parecia que as coisas por lá estavam bem feias. Tinham que estar — ninguém tenta dar um golpe de Estado se o país tá indo bem.
—Rose — chamei.
—Sim?
Mesmo que ela conseguisse sair dessa, a névoa no coração dela continuaria lá. Eu não sabia se minhas palavras iam alcançar, mas queria dar alguma orientação como instrutor.
—Mesmo que demorasse, com certeza devia haver outras maneiras. Você devia ter usado essa força toda pra algo mais positivo. Foi esse tipo de esgrima que eu te ensinei.
—É... Se você tá dizendo, Mestre, provavelmente tem razão.
Minhas palavras pareceram meio vazias, mas eu não manjo nada de política, então era o máximo que eu podia dizer. Ainda assim, queria que ela entendesse que os métodos que usou estavam errados.
—Antes de você mencionar aquelas crianças, eu já tava quase te matando com as minhas próprias mãos — Gatoga se meteu, num tom gelado.
—Eu também já tava preparada pra isso — respondeu Rose.
—H-Ha ha ha...
Soltei uma risada seca, sem querer. Bom, eu mesmo tinha cortado ela, então nem podia falar muita coisa.
—De qualquer forma, será que o Hinnis ali não tá na mesma situação que ela? — perguntei.
Era improvável que o cérebro por trás de todo esse plano — aquele que sequestrou crianças — tivesse coagido só a Rose. Podiam ter outros na mesma posição.
—Rose? — Gatoga chamou.
—Hinnis e eu éramos aliados, mas não estávamos coordenando nada — ela respondeu. —Aqueles que ouviram a mesma coisa que eu... provavelmente já estão todos mortos.
—Entendo...
A Rose tinha murmurado vários nomes depois que eu a cortei. Devem ter sido os que trabalharam diretamente com ela — provavelmente outros cavaleiros. Mas agora não dava pra confirmar nada. Isso quer dizer que o Hinnis apoiava o papa por convicção própria? Nesse caso, ele iria direto pra forca. Eu não o conhecia, então não sentia a menor vontade de defender ele.
—Vamos ter que fazer uma varredura geral na ordem também. Que saco... — reclamou Gatoga.
—Sinto muito por você... — falei com um sorriso sem graça.
Ele tinha muito trabalho pela frente. Agora estava confirmado que tinha inimigos tanto dentro quanto fora da Ordem Sagrada. Era natural sentir uma certa pena dele.
De repente, me dei conta de algo.
—Ah, é mesmo...
—Hm? O que foi? — perguntou Gatoga.
Será que posso perguntar isso? Bah, vamos lá. Se ele não quiser responder, ele não responde.
—Gatoga, você apoia o papa ou o rei?
—Sou neutro... Ou, pelo menos, gostaria de ser. Pessoalmente, quero que o Príncipe Glenn dê o seu melhor. Conheço ele desde pequeno.
Então ele apoia o rei... Um passo em falso e ele teria que cruzar espadas com a Rose.
—Ainda assim, somos cavaleiros que existem para proteger o país — ele continuou. —Ideologias vêm depois. As pessoas vêm primeiro. Essa é minha opinião.
—Uma postura admirável — comentei.
Pelo jeito dele, o Gatoga realmente teria matado a própria irmã se fosse necessário. Isso também era o caminho de um cavaleiro devoto? Eu mesmo não conseguiria.
—Então... isso quer dizer que eu tenho que proteger as crianças também — acrescentou Gatoga. —Elas são os tesouros da nossa nação.
—É... Por favor, proteja... — disse Rose, com a voz fraca.
O ferimento dela era grave. Mesmo com magia de cura, ela não ia estar em condições de lutar tão cedo, e provavelmente ia precisar de um bom tempo de recuperação. Ela não podia ser contada para ajudar a expor o plano dos papistas. Considerando o atentado fracassado, não havia muito tempo pra agir.
Gatoga precisava se apressar e reunir pessoas de confiança se quisesse salvar as crianças. Ele com certeza teria um trabalhão pela frente.
Uma parte de mim queria muito ajudar, mas um estrangeiro não podia se envolver nisso. Eles precisavam agir com discrição e rapidez, e pra isso, tinham que conhecer o território. Eu não podia fazer nada além de torcer pela segurança das crianças. Eu não queria acreditar que o papa, uma das figuras mais poderosas do país inteiro, tivesse bolado tudo isso pessoalmente, mas não dava pra saber a verdade até que as cortinas fossem levantadas.
—Bom, tem um monte de idiota que sai do buraco se você balançar poder político na frente — disse Gatoga. —Se eu encarar isso como uma chance de fazer uma limpeza, até que não é tão ruim.
Ele tinha razão. Esse golpe tinha sido apressado e mal executado, e os papistas deviam estar em pânico. Seria fácil seguir os rastros. Mas, considerando o sangue que já tinha sido derramado — e o sangue que ainda ia ser —, não dava pra dizer que esse conflito era algo positivo.
Política, hein? Poder político... Nada disso tinha a ver comigo, então nunca pensei muito no assunto. Mas era um padrão bem comum — gente boa que muda completamente depois de experimentar um gostinho do poder.
Pensei na minha própria situação. Recentemente, tinha assumido esse cargo inexplicável de instrutor especial. Mesmo sem sentir a necessidade de mudar meu comportamento ou corrigir os erros dos outros, eu queria ter consciência da responsabilidade que carregava — não queria acabar virando só mais um obcecado por poder.
—Ainda assim... eu não consigo confiar no rei atual — murmurou Rose. —O Bispo Reveos foi punido injustamente por ele há pouco tempo...
—Hmm?
Espera aí. Eu ouvi esse nome mesmo?
—Por Reveos, você quer dizer o Bispo Reveos Sarleon? — perguntei.
—Isso mesmo — Rose confirmou. —Você conhece ele, Mestre?
—Hmm...?
Parecia que as peças começavam a se encaixar. A menção inesperada daquele nome bagunçou completamente meus pensamentos.
—Qual é a sua, Gardinant? — perguntou Gatoga.
—Bem... Aquele bispo foi punido, né?
Eu precisava confirmar isso. Sinceramente, não fazia ideia do que tinha acontecido com Reveos depois que a Ficelle e eu o capturamos. Lucy, Allusia e Ibroy provavelmente se esforçaram para esconder tudo, então ninguém sabia pra onde ele foi ou o que houve com ele.
—Foi sim — respondeu Gatoga. —Ele foi acusado de interpretar as escrituras do jeito que queria, fazer lavagem cerebral na população e cometer tabus. Muita gente foi contra isso, inclusive.
Quão graves eram esses crimes nos padrões de Sphenedyardvania? Eu realmente não sabia. Mas, se teve tanta oposição, isso queria dizer que Reveos tinha muitos apoiadores. O que estava rolando do outro lado da fronteira?
—Acredito que seja um plano dos realistas para derrubar a autoridade do Papa — afirmou Rose.
—Não... O Reveos foi punido com razão — retruquei.
—Hã?
Como essa informação ficou tão distorcida? A verdade era justamente o oposto do que a Rose estava dizendo. Os realistas não manipularam nada para enfraquecer os papistas—eles só tomaram a decisão certa, mesmo com os papistas contra.
—Você tá falando como se soubesse de alguma coisa — observou Gatoga.
—Sei sim — confirmei. —Fui eu quem prendeu o Reveos.
—O quê...?
Gatoga e Rose ficaram tensos com minha confissão. Bom, pra ser exato, foi a Ficelle quem prendeu ele, mas esse detalhe nem importava agora.
—O Reveos chefiava uma rede de tráfico humano pra tentar recriar o milagre da ressurreição — expliquei.
—Isso... não pode ser...
Rose ficou sem palavras. A justiça em que ela acreditava foi parcialmente destruída. Não era difícil entender o choque dela.
—O milagre da ressurreição não pode ser recriado. Imagino que você pense o mesmo, Gatoga? — perguntei.
—É... Tem uns malucos por aí que acreditam nisso, mas no fim das contas é só lenda. Normalmente, dá pra ver que é só uma dramatização.
Gatoga claramente compartilhava das crenças do Ibroy nesse ponto. Sinceramente, ainda era estranho ver um fiel chamando suas próprias escrituras de dramatização. Talvez fosse o tipo de coisa que você só percebia quando parava pra pensar com a cabeça fria. Falando nisso, o Ibroy tinha mencionado que o Reveos veio de Sphenedyardvania. Se Gatoga e Rose conheciam ele, então é porque o Reveos tinha sido designado pra lá originalmente.
—Ainda assim, tráfico humano? — murmurou Gatoga. —Agora entendi. Por isso ele veio pra Liberis.
—E não foi só isso — acrescentei. —Ele ainda usou uma magia de ressurreição meia-boca. Mas tudo que conseguiu foi controlar cadáveres como se fossem marionetes.
—Urgh. Filho da puta...
Depois de dizer aquilo, me perguntei se deveria mesmo ter contado tantos detalhes. Mas já era tarde. Já tinha falado. Dane-se. Vamos confiar nesses dois. Isso não é mais problema meu.
—Então... O que Sua Santidade disse era...
A parte importante agora não era o destino do Reveos. A informação deveria ter sido repassada de Liberis pra Sphenedyardvania, mas tinha algo fora do lugar. Alguém adulterou os dados?
Na real, nem precisava pensar muito. A resposta já estava bem clara.
—Não sei exatamente o que contaram pro Papa — falei. —Mas considerando todo esse plano e o fato de que ele fez reféns, é perigoso levar as palavras dele ao pé da letra.
Eu não tava planejando comprar briga com Sphenedyardvania por causa disso. Nesse sentido, eu não ligava muito. Eu era só um velho e cidadão de Liberis—não fazia sentido enfiar o pescoço onde não devia. Mas os acontecimentos tinham feito minha ex-aluna desviar do caminho, então agora o assunto era outro.
—Aí, ouviu isso? Bate fundo, né, Rose? — comentou Gatoga.
—Uhum...
Com essas últimas palavras, o silêncio se instalou de novo. Seguimos andando por mais um tempo. O distrito sul de Baltrain tinha virado um verdadeiro campo de batalha, até mais do que o lugar onde eu tinha lutado. Dava pra ver corpos de soldados de preto caídos aqui e ali, embora não fossem tantos assim. Alguns poucos usavam armaduras completas. Foi um alívio não ver ninguém usando as armaduras da Ordem de Liberion entre os mortos.
Eu não fazia ideia de como exatamente aqueles cavaleiros tinham morrido. Talvez tenham levantado a espada desesperadamente contra o Príncipe Glenn e morrido nas mãos da Allusia ou do Henbrits. Também era possível que tivesse rolado uma briga entre cavaleiros papistas e realistas. Mas isso não era problema meu. Nem de Liberis.
Essa cena de destruição causada pelos problemas de outro país se estendia à nossa volta por um bom tempo. Após um longo silêncio, Rose murmurou algo. A voz dela carregava determinação.
—Eu... ainda não posso morrer.
—Hm?
—Quer dizer, agora eu não posso mais morrer — disse ela. —Não até ver a verdadeira justiça com meus próprios olhos.
—Dito assim, enquanto tá pendurada no ombro de alguém, perde um pouco do impacto — Gatoga comentou com sarcasmo.
Pelo visto, a Rose tinha saído daquele estado de torpor. Os crimes dela não iam desaparecer, claro. Mas senti que o melhor seria ela tentar se redimir, e para isso era preciso estar viva. Talvez fosse parte da crença de Sphenedyardvania matar e encerrar o assunto, mas pessoalmente, eu achava que dava pra levar em conta as circunstâncias atenuantes. Tinha sinal de intriga política no meio também.
—Mesmo assim, você não vai conseguir fazer nada aqui dentro das nossas fronteiras — disse Gatoga.
—Eu sei. Mas com certeza existe algo que eu possa fazer — insistiu Rose.
Seria muito inconveniente pros papistas se a Rose continuasse viva. Os realistas também não iam ter boa impressão dela por conta da tentativa de assassinato. Além disso, Liberis provavelmente ia investigar o envolvimento dela no perigo que a Princesa Salacia enfrentou. Na minha cabeça, só havia uma saída possível: abandonar tudo e fugir do país. Será que ela ia mesmo fazer isso?
—É isso — disse Gatoga, se virando pra mim. —Parece que você vai ter que ficar de bico calado sobre a Rose.
—Acho que vou mesmo.
Não adiantava nada eu sair espalhando o que ela tinha feito. Minha única opção era ficar em silêncio. Eu realmente não queria que ela morresse... mas, ao fazer essa escolha e seguir o fluxo, eu acabava me tornando cúmplice de um encobrimento.
—E então? O que vocês vão fazer agora? — perguntei.
Não parecia que eu podia ajudar em nada, mas queria pelo menos saber o que planejavam. Também era importante alinharmos nossas histórias.
—Por enquanto, vou dizer que ela se feriu na luta contra os atacantes e mandar ela de volta pra casa. De qualquer forma, ela não vai conseguir se mexer com esse ferimento. Depois disso... bom, vou dar um jeito.
Hmm, nesse caso, realmente não tem nada que eu possa fazer. Só preciso tomar cuidado pra não deixar escapar nada.
—Desculpa, não vou poder ajudar depois disso — disse ele pra Rose. —Você que se vira.
—Hee hee... Entendido.
Se Gatoga se envolvesse demais, isso podia acabar traçando o caminho até ele. Melhor não deixar rastros. Era bem provável que Gatoga e Rose nunca mais se vissem depois disso—talvez fosse mesmo o último adeus. Mesmo assim, não senti nenhum pesar entre eles. Em termos de família, eu só tinha meus pais... ah, e agora a Mui também. Se me dissessem que eu nunca mais ia vê-los, duvido que conseguiria manter a calma. Nesse ponto, esses dois eram fortes.
—Mestre... — disse Rose, ainda balançando no ombro do Gatoga.
—Hm? O que foi?
—Muito obrigada. Um dia... eu vou pagar essa dívida.
As palavras da Rose foram levadas pelo vento, e a voz dela carregava uma enxurrada de emoções. Ela tinha me arrastado para uma baita encrenca, jogado um problemão no meu colo — e nada disso tinha sido resolvido ainda. Mesmo assim, senti uma leve satisfação borbulhando no meu peito. Parte de mim estava convencida de que tinha conseguido salvar uma das minhas alunas da beira do abismo.
— Ha ha ha. Não precisa se preocupar com isso — falei. — É dever de um instrutor cobrir a falta de habilidade de um aluno.
E foi só isso que eu disse sobre o assunto.
Aceitando a gratidão meio atrapalhada da Rose, deixei o distrito sul pra trás.
◇
— As coisas acalmaram de verdade, hein?
— Com certeza.
Numa tarde qualquer, eu estava patrulhando os arredores de Baltrain junto com a Allusia. O festival tinha acabado, e a cidade estava voltando ao normal. De vez em quando ainda dava pra ouvir o povo comentando sobre o atentado fracassado, mas no geral, o clima nas ruas já estava bem mais tranquilo. Pra constar, eu tinha passado a manhã treinando com todo mundo como de costume. Baltrain tinha voltado ao normal, e nosso cronograma de treinos também. Esse caos todo do atentado só reforçou como a paz é maravilhosa. Nada melhor do que estar livre de missões ou confusões.
— O distrito sul já foi limpo? — perguntei.
— Até certo ponto. Mas ainda vai levar um tempo para conseguirem voltar a plantar com segurança.
Por iniciativa da Ordem de Liberion, eles e a guarda real estavam cuidando da limpeza da cena horrível que o distrito sul virou. Eu nem podia comentar muito, já que fui quem matou uma quantidade absurda de gente lá, mas parecia que ainda iam precisar de mais tempo até que tudo estivesse operacional de novo. Corpos em decomposição são criadouros de doenças, e tinham que garantir que não ia rolar uma epidemia ou algo assim por causa de uma limpeza apressada. Isso seria um pesadelo — tanta gente morando junta em Baltrain (afinal, é a capital), uma doença se espalhando por ali podia ser fatal para a população inteira.
Nesse aspecto, o corpo mágico estava liderando a operação. A guarda estava removendo os corpos fisicamente, mas aparentemente magia era o melhor jeito de se livrar dos mortos e evitar a disseminação de doenças. Fiquei me perguntando como eles estavam lidando com tantos cadáveres. Baltrain com certeza tinha um cemitério, mas eu não fazia ideia do tamanho. Talvez estivessem só queimando os corpos com magia mesmo.
Pensando bem, a Mui tinha comentado que as coisas estavam bem agitadas no instituto de magia. Talvez os professores estivessem sendo mandados para ajudar também. Só de andar um pouco pela cidade, já dava pra ver magos aqui e ali. A maioria usava mantos como o da Ficelle, então eram bem fáceis de reconhecer. Eu já sabia que Baltrain tinha muitos magos por causa do instituto, mas era impressionante ver tantos assim na rua.
De qualquer forma, só de pensar na Lucy reclamando comigo depois de todo o trabalho feito já me dava um arrepio. Ela basicamente ia pra onde queria, quando queria, então era bem possível que fosse invadir minha casa de novo.
— Parece que os assuntos internos vão se resolver — murmurei.
— Sim — concordou a Allusia. — Agora só falta negociar o incidente com Sphenedyardvania.
Essa parte era meio complicada. Tudo aconteceu dentro das fronteiras de Liberis, mas os principais envolvidos eram de Sphenedyardvania. Para piorar, as autoridades de lá estavam divididas em dois grupos, e mesmo que os papistas estivessem sob suspeita, quem comandava o governo eram os realistas.
Sphenedyardvania, é claro, era responsável por tudo isso, mas era difícil encontrar um ponto de equilíbrio. Os realistas não sabiam que os papistas estavam tramando tudo isso, mas mesmo assim, teriam que arcar com as consequências. Eu não sabia como Liberis pretendia lidar com o assunto, mas com certeza ia ser uma baita dor de cabeça.
De qualquer forma, Liberis não tinha culpa nenhuma nesse caso. Era praticamente certo que Sphenedyardvania teria que pagar algum tipo de reparação, especialmente porque os dissidentes deles colocaram a Princesa Salacia em perigo. Os líderes do outro lado da fronteira provavelmente estavam arrancando os cabelos agora. O ideal seria resolver tudo de forma limpa, mas vai saber no que isso vai dar. Alguém como eu não teria qualquer influência nas negociações internacionais, então, pra mim, até que tava tranquilo.
— Será que a Lady Mabelhart tá bem? — disse Allusia.
— É... espero que sim.
A conversa naturalmente mudou pro cerne do incidente. Nesse ponto, a coisa não era tão simples pra mim. A Rose foi uma das principais envolvidas no atentado, embora ninguém além do Gatoga e de mim soubesse disso. Nem contei pra Allusia. Quando a visita agendada do Príncipe Glenn ao palácio terminou, a Rose já tinha sumido. O Gatoga disse pra todo mundo que ela foi enviada de volta pra Sphenedyardvania por causa dos ferimentos. Como ela realmente tava ferida, ninguém questionou muito.
— Suponho que só nos resta confiar no sistema médico de Sphenedyardvania — comentei.
— De fato. Eles também têm magia de cura.
A Allusia parecia bem preocupada com ela. Talvez fosse porque já se conheciam agora, ou porque a Rose era uma tenente-comandante, ou até por ser uma ex-aluna do meu dojo também. Fiquei feliz de ver que ela se importava, mas isso só tornava ainda mais difícil encontrar as palavras certas — eu não podia deixar escapar a verdade. O Gatoga tinha dito que daria um jeito, mas não havia garantias, então eu também tava preocupado.
— Bom... ela é forte — falei. — Vamos torcer pra que ela se recupere.
— Sim, vamos...
Eu tava falando de algo além dos ferimentos físicos da Rose, mas não era idiota de deixar isso explícito. Eu me sentia como se estivesse enganando todo mundo — na real, era exatamente isso que eu tava fazendo — mas era tudo pelo bem da Rose. Não tinha escolha além de manter o silêncio. Ainda vai demorar pra esse nó no meu estômago desatar. Eu duvidava que a Rose fosse ser mencionada com frequência nas conversas, mas mesmo assim... não gosto de guardar segredos.
—Vamos voltar? —perguntei.
—Sim... Mas não se esforce demais, Mestre.
—Ha ha ha, obrigado pela preocupação.
Hmm, agora até a Allusia tá preocupada comigo. Provavelmente vê minha ansiedade como um instrutor se preocupando com um ex-aluno. Não tá errada... mas também não tá certa. Caramba, meu estômago tá começando a doer de verdade.
A gente se virou e começou a voltar para o escritório, e eu resolvi mudar de assunto.
—De qualquer forma, fico feliz que o Príncipe Glenn e a Princesa Salacia não tenham se machucado.
Allusia assentiu. —Nem me fale. Foi graças a você ter assumido tudo lá atrás.
—É mesmo?
—É sim.
Allusia e Henbrits conseguiram escoltar o Príncipe Glenn e a Princesa Salacia de volta ao palácio com sucesso, enquanto eu fiquei para lutar. Eles avançaram numa marcha forçada, reunindo cavaleiros da Ordem de Liberion pelo caminho. Os dois membros da realeza mostraram ter mais coragem do que eu esperava. Talvez seja de se esperar de quem um dia vai carregar o peso de uma nação nas costas. Depois que tomaram uma decisão, eles se prepararam para o pior muito mais rápido do que um civil comum — e ainda mostraram mais força de vontade.
—Acho que sua moral subiu bastante —acrescentou Allusia.
—Para com isso.
Sempre fugia quando a Allusia tentava me colocar num pedestal. Sério, eu sou só um caipira do interior. Como é que isso acabou assim? Eu não estava infeliz com minha vida atual, mas ainda não conseguia me acostumar com a ideia do meu nome ganhando fama na sociedade.
—Comandante Allusia!
—Evans? O que houve?
Depois de cumprimentar os guardas no portão, passamos por ele e fomos imediatamente chamados por Evans, um dos cavaleiros da ordem. Ele vivia com pressa. Era jovem, mas ainda assim um cavaleiro, então eu achava que ele podia agir com um pouco mais de compostura. Pelo menos, essa era a opinião meio paternal que eu tinha observando ele.
—Uma carta chegou do palácio —disse. —É endereçada à senhora.
—Entendido e recebido. —Allusia pegou a carta que Evans tirou do bolso. —Pode se retirar.
—Sim, senhora!
O selo de cera era da família real —igualzinho ao que eu tinha visto na minha carta de nomeação. Allusia deu uma olhada rápida na carta e, com um movimento suave, rompeu o selo.
—Uma convocação? —perguntei.
Uma carta selada chegando bem nessa hora só podia ter relação com o incidente recente. A Princesa Salacia tinha sido exposta ao perigo, mesmo que escoltada em segurança. Ia ser meio chato se a carta fosse para criticar a Allusia por isso.
—Sim —respondeu Allusia. —Contém palavras de elogio pelo nosso trabalho recente e um convite para um banquete.
—Hmm. Que bom, né? Pode aceitar sem medo.
Pelo visto, a Princesa Salacia não tinha a menor intenção de criticar a Ordem de Liberion. Pelo contrário, receber elogios da realeza, mesmo que por carta, era uma baita honra. O rosto da Allusia se suavizou enquanto lia.
Sim, trabalho bem-feito merece reconhecimento. Fico feliz que Liberis seja um país decente. Já tava até pensando no que faria se a Allusia fosse punida. Bom... provavelmente eu não faria nada, na real.
Um banquete com a realeza provavelmente teria comidas deliciosas, mas eu não queria saber disso. Comer uma refeição com a Mui combinava bem mais com alguém do meu nível do que um banquete pomposo. Enquanto pensava nessas coisas, Allusia continuava lendo a carta com um sorriso lindo.
—Seu nome também está escrito no convite, Mestre.
—Hã...?
Por quê?
◇
—Lady Allusia Sitrus e Mestre Beryl Gardinant, correto? Estávamos esperando por vocês.
Pois é... e agora eu tô mesmo no palácio real. Bom, tecnicamente, eu já tinha vindo aqui durante a escolta, mas na época a gente encontrou o Príncipe Glenn e a Princesa Salacia do lado de fora dos portões. Nem me deixaram passar pelos portões, quanto mais entrar no jardim ou ser escoltado com pompa até o interior do palácio. Me sentia completamente deslocado.
—Sim. Fizemos vocês esperar?
—De forma alguma. Ainda falta um tempo até o horário marcado.
Allusia falou com o que parecia ser um guia esperando por nós na entrada. Eu não fazia ideia de qual era o protocolo certo, então não me restava escolha senão seguir a Allusia. Fiquei me encolhendo, incomodado nas minhas roupas novas — ir com roupa casual ao palácio teria sido loucura. Eu tinha checado minha aparência mil vezes, me certificando de que não tava fedendo nem parecia desleixado, então, no mínimo, não achava que estava sendo mal-educado. Ainda por cima, Allusia e Henbrits revisaram tudo comigo, então eu tinha quase certeza de que estava apresentável.
—Mestre, vamos?
—S-Sim.
Seguindo a Allusia e o guia, coloquei os pés dentro do palácio. Sempre fico nervoso quando entro num prédio novo pela primeira vez, mas o palácio era outra história completamente diferente. Será que era mesmo permitido andar aqui de sapato? Tudo brilhava tanto... Agora que pensei nisso, comprei roupas chiques, mas não sapatos chiques. Será que era falta de educação?
O escritório da ordem e a guilda dos aventureiros já eram espaçosos, mas o palácio era gigantesco. O teto era tão alto que parecia impossível de alcançar, e os corredores eram tão limpos que não se via um grão de poeira. Isso aqui era o verdadeiro domínio dos escolhidos pelos céus. Eu me sentia totalmente fora de lugar andando por esses corredores.
O guia soltou uma risadinha ao me ver boquiaberto. —E então, o que acha do palácio?
—É realmente impressionante... Desculpa ficar encarando tudo.
Poxa, dá pra me culpar? Nunca imaginei que teria a chance de vir aqui.
Depois de andar um pouco, chegamos a uma porta sólida e imponente. Então... onde é isso? Não parece ser o centro do palácio, então não deve ser o salão de jantar.
—Por aqui —disse o guia, abrindo a porta.
—Obrigado por nos acompanhar. —Allusia assentiu antes de entrar.
Uau, é enorme. Tinha mais que o dobro do tamanho do saguão da guilda dos aventureiros. Luzes penduradas nas paredes iluminavam o salão, e no centro havia uma mesa extremamente longa, ladeada por cadeiras luxuosas.
—Pai, o Beryl foi incrível de verdade —disse a Princesa Salacia, cheia de elogios. —Ele enfrentou uma onda de soldados inimigos, um atrás do outro. Eu senti medo... mas também alívio. Acreditei que tudo ficaria bem com ele lá.
—Ah, bom, h-ha ha...
Por favor, pare. A senhorita vai acabar matando esse velho. E qual é a dessa pressão toda da princesa, hein? É verdade que eu me esforcei ali, mas quem escoltou ela de volta até o palácio foram a Allusia e o Henbrits.
—Ouvi a história, mas não soube de detalhes sobre sua habilidade —disse o Príncipe Fasmatio. —Talvez eu devesse pedir um treino com você também.
—Hee hee, acho que você vai acabar estatelado no chão em questão de segundos, irmãozinho.
—Que falta de respeito. Pode não parecer, mas eu até que tenho treinado bastante, minha querida irmã.
—H-Ha ha ha...
Isso é o que chamam de piada real? Eu não faço ideia de como reagir. E mesmo que eu treinasse o Príncipe Fasmatio, nem sei se é apropriado descer a porrada num membro da realeza. Me salva, Allusia.
—Parece que fizemos a escolha certa para instrutor especial —disse o rei.
—Sim. Sou imensamente grata por sua decisão, Vossa Majestade —respondeu Allusia.
Ah, é mesmo. Minha carta de nomeação veio com o selo real. Isso significa que a decisão passou pelo próprio rei. E também explica como a princesa já sabia quem eu era quando nos encontramos pela primeira vez. Eu preferia ter ficado no anonimato. Já estava satisfeito só de poder ensinar esgrima em paz.
Enquanto eu saboreava o vinho e aproveitava em silêncio a comida diante de mim, o Rei Gladio elevou um pouco a voz.
—Ainda não é oficial, mas foi decidido que Salacia se casará com o Príncipe Glenn, de Sphenedyardvania.
—É mesmo?
Isso explica por que os dois se davam tão bem. O Príncipe Glenn parecia ter uma boa impressão da Princesa Salacia, então talvez não fosse algo ruim. Suponho que também possa ser só um casamento político por conveniência. Política realmente não faz sentido pra mim.
—No entanto, fico um pouco preocupado em mandá-la para outro país.
Faz sentido também. Ainda mais considerando a guerra civil em andamento em Sphenedyardvania. Ninguém sabe quando a disputa entre realistas e papistas vai terminar. É natural sentir preocupação como rei —e ainda mais como pai.
—Por isso, decidimos criar a guarda real pessoal de Salacia.
—Nossa, pai, você é tão preocupado...
A Ordem de Liberion era responsável pela proteção do reino, mas a guarda real seria voltada exclusivamente à proteção da Princesa Salacia. Seria um grupo de elite. Mas será que era possível mandar ela pra Sphenedyardvania com um pequeno exército particular? Isso existe mesmo? Bom, se o outro país aceitar, não tem problema.
—Está sendo formada com os melhores da guarnição real como base, mas... —o Rei Gladio fez uma pausa, com um brilho gentil no olhar que combinava com suas feições suaves. —Beryl, se for do seu desejo, não me importo de recomendar seu nome para a guarda real dela.
—Hã...?
Meu cérebro simplesmente travou. Esqueci do nervosismo, da confusão. Como assim? Eu? Guarda real? Da Princesa Salacia? Não! De jeito nenhum! Eu não posso aceitar um cargo tão importante!
—Majestade, com o devido respeito, acredito humildemente que o apoio contínuo do Sr. Gardinant é essencial para o desenvolvimento da Ordem de Liberion e, por extensão, para a prosperidade de Liberis.
Durante o meu curto apagão mental, Allusia fez o possível para conter seu costume de falar rápido —embora ainda tenha falado um pouco rápido— e recusou no meu lugar. Fiquei grato, mas por algum motivo ela parecia desesperada. Não precisava se preocupar tanto. Eu não seria capaz de cumprir esse dever, e sinceramente, o título de instrutor especial já era um peso suficiente. Não queria mais nada que aumentasse essa carga.
Além disso, qual foi essa recusa superdramática? Que história é essa de prosperidade de Liberis? Não joga esse peso todo no meu título, ainda mais quando eu nem consigo interromper pra comentar...
—Hmm. Se a comandante e instrutora dos nossos cavaleiros diz isso, então acho que devo ceder —respondeu o rei, recuando com uma facilidade surpreendente.
A Princesa Salacia fez um biquinho. —Aww. Que pena.
Ela ficava absurdamente fofa assim, mas ter esse velho aqui trabalhando pra ela seria meio incômodo. Escapei por pouco... Eu não quero sair por aí balançando espada em outro país cercado de figurão.
—Então, Beryl, espero ainda mais de você pelo futuro de Liberis.
—Sim, senhor...
Já que a Allusia recusou minha nomeação pra guarda real, eu precisava demonstrar sinceramente meu compromisso com as palavras do rei. Mas... o futuro de Liberis, hein? Duvido que eu tenha algum papel nisso.
O rei sorriu com gentileza. —Agora então, vejo que todos pararam de comer. Por favor, aproveitem a refeição.
—Agradeço a consideração.
Seguindo a sugestão do Rei Gladio, dei uma mordida na carne.
—Diga, Beryl, você já empunha espada há muito tempo?
—Sim, bom... Eu brincava com uma espada de madeira desde pequeno.
Um convite para o palácio de Liberis pra desfrutar uma refeição de luxo deveria ser algo digno de comemoração. Mas, com a Princesa Salacia me bombardeando com perguntas sem parar, a ansiedade e tensão no meu peito não deixavam eu sentir o gosto de nada —nem mesmo da carne.
—Ha ha ha! Parece que a Salacia simpatizou com você —a risada alegre do Rei Gladio ecoou pela sala.
—H-Ha ha... Estou honrado...
Haaah... Eu só queria tomar um drink na minha taverna favorita. Assim que isso acabar, é pra lá que eu vou. Com esse pensamento aconchegante na cabeça, aguentei o banquete de luxo extremamente desconfortável.
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